Ano VII

As Montanhas se Separam

domingo out 16, 2016

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As Montanhas se Separam (Shan he gu ren, 2015), de Jia Zhang-ke

Em seu filme anterior, Um Toque de Pecado, Jia Zhangke propunha uma releitura de seus temas centrais sob o viés do impacto. Ali, a brutalidade da abertura econômica chinesa era espelhada numa violência gráfica que o aproximava de gêneros até então distantes de sua filmografia. A impressão é que tal gesto foi a maneira por ele encontrada de deixar sua zona de conforto, fazendo pela primeira vez um filme que, em teoria, poderia chegar a um número muito maior de espectadores do que aqueles que o antecederam.

Em As Montanhas se Separam esse sentimento parece confirmar-se: temos, novamente, a obra de alguém disposto a expandir o seu cinema para além de seu público usual, formulando, pela segunda vez consecutiva, uma síntese de suas preocupações usuais. Para além disso e de suas narrativas episódicas, estes filmes não poderiam se diferenciar mais: onde havia cinismo e brutalidade, há ternura e melancolia. Se o risco de um era uma aproximação com o choque pelo choque, do outro é o flerte jeca com um humanismo vaporoso.

Até aí, tranquilo, tudo às claras. A questão é que estamos diante de um cineasta de talento ímpar, que sempre soube fazer da ambiguidade seu trunfo. Contra a malvadeza pura e simples do primeiro, pode-se argumentar a beleza de suas composições, que formavam sequências memoráveis; no segundo, contra as obviedades de metáforas inseridas em um todo intangível, instantes de arrojo capaz de desconcertar o mais cético dos espectadores, pois As Montanhas se Separam beira a imprudência: desde A Árvore da Vida não nos perdíamos tanto entre o maravilhoso e o ridículo, entre o assombro inequívoco e o involuntariamente cômico.

O roteiro parte de um triângulo amoroso imediatamente reconhecível. Shen Tao (Tao Zhao, na interpretação mais exigente de sua carreira), é uma jovem dividida entre a paixão de dois amigos antagônicos. Estamos às vésperas da virada do milênio e ela mostra-se tão entusiasmada com as tradições das festividades chinesas quanto pela iminente ocidentalização de seu país. Zhang Jinsheng (Yi Zhang) é um empresário em assombrosa ascensão, a verdadeira encarnação do capitalismo em sua forma mais tirânica; Liangzi (Jing Dong Liang) é seu exato oposto, humildemente sobrevivendo como operário de uma mina de carvão.

Esta primeira parte, que poderia ser considerada um longo prólogo, acaba com Zhao – como a própria China –, deixando-se seduzir pelas promessas de prosperidade plena. Assim, dá à luz um filho de Zhang, que, ato contínuo, promete ao recém-nascido um monte de dólares. Mais tarde, o apelido do garoto será justamente este: Dollar (Zijian Dong).

Mais problemático é o segundo segmento, em 2014. Seu começo, no entanto, é exemplar: Liangzi posa para um retrato em grupo com outros trabalhadores. Quando todos saem, ele permanece um breve tempo parado, sem saber exatamente para qual direção seguir – para nenhuma, parece ser a resposta.

O que segue, infelizmente, irá apenas reforçar (e diminuir o impacto) desta cena. A trilha-sonora, chorosa ao extremo, sublinha a rotina de um agonizante Zhang, doente pela natureza de seu ofício. Paralelo a isso, acompanhamos a derrocada de Tao, separada de Zhang, que agora mantém a guarda de seu filho. Para piorar, seu pai morre. No velório, Dollar desconhece os antigos rituais da cerimônia. Em seguida, exibe grande domínio de seu iPad ao falar com sua madrasta.

Já em 2024, o registro ruma à ficção futurista, em uma Melbourne transformada em apêndice da China. Rodeado pelas armas e garrafas de bebidas do pai, Dollar é um estudante prestes a abandonar tudo. Sua comunicação com Jiansheng, agora chamado de Peter, não se dá, pois este ainda não fala inglês. Um insólito relacionamento amoroso do jovem com sua professora começa a se formar, e jamais Jia Zhangke se mostrara tão lírico quanto nesta terceira parte. Ao levar esse aspecto reflexivo ao limite, acaba por reforçar esta como sua obra mais assumidamente melancólica: você pode enxergá-la como uma espécie de coletânea para requentar e anabolizar glórias passadas, ou como algo necessariamente vacilante, cuja beleza surge por seu desequilíbrio. Tal divisão decerto não é clara, mas a tensão entre estes polos é que dá ao filme sua personalidade. E uma força inegável.

Bruno Cursini

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Jia na Interlúdio:

Um Toque de Pecado (A favor)

Um Toque de Pecado (Contra)

Sobre Still Life

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