Ano VII

Um Toque de Pecado – contra

domingo nov 3, 2013

Um Toque de Pecado (Tian Zhu Ding, 2013), de Jia Zhang-ke

Desde o seu primeiro longa-metragem, Pickpocket, de 1997, a preocupação central de Jia Zhang-ke sempre fora os efeitos que as mudanças ocorridas na constante modernização da China causam sobre os seus cidadãos. Após estabelecer uma filmografia essencial para a compreensão do cinema realizado nos anos 2000 (PlataformaIn PublicO Mundo e Em Busca da Vida: qualquer um destes pode ser considerado o filme da década), o cineasta pareceu, a partir do documentário Dong, exibir os limites de sua proposta e os trabalhos mais significativos que o seguiram, 24 City e Memórias de Xangai, surgiram interessantes, porém distantes do vigor de outrora.

Pois Um Toque de Pecado vem sendo amplamente laureado assim: o retorno de Jia à urgência de um retrato do aqui-e-agora de seu país, mas, desta vez, atualizando e humanizando os filmes wuxia e suas personagens, distanciando-se (na forma, nunca no conteúdo) de suas crônicas anteriores. Baseado em quatro notícias recentes, veiculadas em uma popular rede social chinesa (Weibo), sua importância pode prescindir a própria exibição, uma vez que é salutar a censura ter liberado este retrato supostamente cru e realista destas pessoas que, impotentes, encontram na agressividade a única forma possível de expressar suas insatisfações e manifestar qualquer traço de individualidade.

Dividido em capítulos, o prólogo anuncia uma típica produção de gênero ao mostrar um motoqueiro assassinando um trio que pretendia roubá-lo. Na cabeça de tão hábil matador, um gorro do Chicago Bulls, de imediato fazendo uma analogia com os animais (algo que irá perdurar, insistentemente, nas próximas mais de duas horas) para, desta maneira, evidenciar a crítica de Jia à abertura comercial desmedida de seu país e sua consequente influência cultural nos mais jovens. Durante os créditos de abertura, um papel de parede simula uma floresta, e muito do que o diretor gostaria de mostrar já está dado, à transparência do espectador.

Na primeira história propriamente dita, um morador de uma pequena comunidade rebela-se contra uma mineradora de carvão, que se recusa a dividir os lucros com os habitantes do local onde explora. Ele converte-se em assassino justiceiro e, rifle em mãos, caminha ao Audi do investidor responsável para estourar sua cabeça. No percurso – com a arma parcialmente coberta por um lenço com a imagem de uma onça –, elimina também um homem que tínhamos visto antes, covardemente chicoteando um cavalo ao chão.

No próximo momento, retornamos ao motoqueiro da cena de abertura, e ele é provavelmente o único psicótico irrecuperável destas narrativas, alguém capaz de se encontrar apenas nos atos de crueldade. Em um diálogo constrangedor, explica à sua mulher a vontade de viajar apenas para comprar uma arma melhor, mas recusa-se em adquirir um aparelho celular, por considerar o objeto por demais “perigoso”. Tal instante só não é mais patético do que quando, durante a comemoração do ano-novo, sob as luzes da queima de fogos, ao lado de seu filho, saca um revolver e o dispara ao céu, comentando a beleza do gesto com a criança. Festejar, na China contemporânea, aprendemos, é comemorar a sua corrupção e o seu declínio moral.

Ainda neste mesmo segmento, o vemos durante uma viagem de ônibus, rumo à região da Barragem das Três Gargantas, a maior hidroelétrica do mundo. No percurso, um filme de extrema violência é exibido na televisão, distraindo os passageiros. Momentos antes, a imagem de um camponês cortando o pescoço de um pato é seguida por aquela de uma maçã sendo descascada por um canivete. (Se a intenção de Jia era, sobretudo, trazer à tona algumas situações, fica-se improvável falar sobre elas sem recorrer às imagens que as formam, daí o excesso descritivo daqui).

Zhao Tao (esposa e musa do diretor) é a protagonista do terceiro episódio. Ela está envolvida com um homem casado, que deve pegar um trem – a migração interna chinesa, com pessoas sempre procurando um recomeço, é um movimento corrente, e irá fechar o filme imprimindo-o um caráter circular, condenando todos à repetição daquilo que testemunhamos até então.

Na estação ferroviária, o homem não pode embarcar com uma faca na mala (segundo ele, olhe só!, para descascar uma maçã…). Ela mantém o utensilio, que mais tarde será usado para dilacerar um cliente do local onde ela trabalha como recepcionista: uma destas famosas clínicas de massagem, onde só são aceitos clientes maiores de idade e as sessões são pagas por hora. Esta cena começa com ela sendo chicoteada (tal qual o já referido equino do primeiro capítulo) com um maço de cédulas de yuan. Após sua impetuosa reação, ela busca abrigo em uma espécie de aquário lotado de cobras. Ao sair às ruas, uma serpente cruza o seu caminho e, em seguida, vê o trajeto ser interrompido por touros, que passam pela via.

Se antes estas inserções líricas brilhavam sublimes (lembremos do equilibrista ao final de Em Busca da Vida, ou das mensagens de SMS, em O Mundo), aqui elas servem apenas como perfumaria autorista, forçando a mão em uma metáfora simplista e monocórdica, como no momento em que a câmera para em um idoso com um macaco acorrentado pelo pescoço, sentado em seu ombro.

O último mais-do-mesmo acabará em suicídio, como para dizer que a violência poderá por vezes morder o próprio rabo. Que diferença temos aqui em relação às trajetórias anteriores? Nenhuma, pois por trás de novas viagens e dialetos, velhas acusações aos conglomerados, ao capitalismo desregrado, à bestialização e reificação do ser humano, à injustiça social, à exploração.

A vítima da vez, é um jovem que irá apaixonar-se por uma garota de programa, no puteiro de luxo (chamado “Golden Age”) ao qual por ora dedica-se. Os “bem-vindos” robotizados com os quais os clientes (os homens de poder, a classe dominante, os consumidores terciários da cadeia alimentar) são recebidos, são os mesmos com os quais os chefes de Estado foram saudados no primeiro capítulo (a didática esperneia: são eles quem mantêm um antro como este em pé).

A especialidade do estabelecimento é materializar fielmente as fantasias de seus clientes. As garotas são apresentadas, em um momento, marchando, como se estivessem em uma parada militar, no entanto, vestindo minissaias baseadas nos trajes do Exército Vermelho. Entre esses consumidores degenerados, o próprio Jia Zhang-ke, fumando um grosso charuto e ostentando um colar de ouro capaz de suscitar inveja aos rappers americanos. Seu rosto só será revelado ao final do plano-sequência, que parece zombar daquela magnífica abertura de O Mundo (o ambiente do local também, em sua maneira kitsch, lembra o parque daquela obra-prima).

O rapaz só constatará não ter chance com a menina (não há amor visível em meio ao brilho intenso do consumismo, pois tudo atende tão-somente às ordens mercantis), quando ele a vê fantasiada de condutora de trem, dentro de um simulacro de vagão (como a China, este é corrompido e promíscuo), para satisfazer um cliente bem mais velho, que lhe afirma algo como: “Os jovens de hoje não sabem aonde estão indo. Eles não têm senso de direção.”

O recém encontrado cinismo do cineasta o faz brincar, flertando com a hipótese de um final feliz a este episódio, quando a garota vai a um rio com o jovem para libertar alguns kinguios, que estavam quase mortos, em um saco plástico. Mas zero de surpresa aqui: seus destinos já estavam, há muito, por ele condenados e, se os peixes nadam livres, os pretensos amantes jamais o farão.

No epílogo, uma irreconhecível Zhao Tao busca um novo emprego. A câmera foca um quadro e, se formos capazes, lembraremos que o rosto que o ilustra é aquele do homem morto no começo do filme, dentro do esportivo alemão. É lá (nesta região que não lhe é familiar) que ela presume conseguir mudar a sua vida, e é com essa ironia – pouco surpreendente e um tanto vulgar – que o filme pretende inquietar seu espectador. 

À custa de fazer um cinema malvado (travestindo-se em enfant terrible tardio), Jia Zhang-ke restringe-se a expor apenas a devassidão de um mundo cão. Na desculpa de jogar luzes em um país e momento supostamente particulares, entrega um filme genérico, que poderia ter sido rodado na Rússia, na Áustria, nos Estados Unidos ou qualquer outro lugar. Sua obra, com justiça, já fora comparada àquelas de Hou Hsiao-hsien, Robert Bresson e Roberto Rossellini. Com Um Toque de Pecado, aproxima-se mais àquelas de Sergei Loznitsa, Ulrich Seidl e Oliver Stone.

Bruno Cursini

 

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Um Toque de Pecado, por Sérgio Alpendre

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