Ano VII

Um Toque de Pecado

domingo dez 15, 2013

Um Toque de Pecado (Tian Zhu Ding, 2013), de Jia Zhang-ke

Última sessão da 37ª Mostra. O pior de ver um filme esperado depois de quase todo mundo já ter visto é que chegamos condicionados pelas impressões alheias (comparações com o cinema mexicano malvadinho ou com o cinema coreano estilizado, reclamações da violência brutal, choque com o desencanto mostrado pelo diretor). Mesmo quando conseguimos evitar de procurar no filme sinais que confirmem ou neguem as afirmações feitas, estas ficam em nossa cabeça, e tal condicionamento pode ser prejudicial, sobretudo se o filme vem sendo muito comentado. Mas o bom de ver um filme nessas condições é que nos despoluímos das apostas erradas e da correria do meio da Mostra e entramos de cabeça naquela que é, afinal, a última sessão do evento. Entrando de cabeça temos mais condições de nos livrarmos desse condicionamento e entrar no filme pelo que ele efetivamente é (não ignorando a possibilidade de entrar por um lado equivocado, possibilidade esta a que todo crítico está sujeito). Posso dizer que dei sorte. Minha programação terminou com um dos filmes mais fortes do ano: Um Toque de Pecado (que está sendo elogiado e odiado em iguais medidas).

Em primeiro lugar, fica evidente desde o início que a maneira como Jia Zhang-ke filma está acima de qualquer (isso mesmo: qualquer) diretor mexicano ou coreano. A modulação dos espaços, os movimentos de câmera mais precisos do que nunca em sua carreira. E mais frequentes também: já que estamos no terreno das referências, tais movimentos promovem uma espécie de cruzamento entre Bellocchio (pelo choque entre os movimentos da câmera e os dos corpos) e Mizoguchi (pela fluidez incansável da câmera que é muitas vezes persecutória), temperado com a estilização focal de Kitano (o filme, por sinal, é coproduzido pela Office Kitano, do diretor japonês), mais o clima de contágio pela fúria herdado de Kiyoshi Kurosawa (via Cure, Pulse). Isso tudo e a estrutura episódica e muito bem desenvolvida fazem de Um Toque de Pecado um filme difícil de esquecer.

Os movimentos de câmera chamam mesmo a atenção. Não que eles inexistissem nos filmes anteriores. Existiam mais discretamente, conviviam de maneira harmônica com os personagens, acompanhando-os nos deslocamentos e fugas. Em Um Toque de Pecado, os movimentos inserem os personagens dentro de torvelinhos morais, aprisionando-os numa ambientação que é em tudo hostil. Uma China arrasada pelo dinheiro, pela cobiça, pelo crescimento desordenado. China arrasada é mais ou menos o que existe no cinema de Jia desde Plataforma. E natural que desemboque tudo na fúria vista neste último filme, uma fúria filmada de maneira exemplar, com os efeitos da violência sendo sentidos em todos os momentos em que ela explode, algo muito distante da violência estilizada de alguns moderninhos do cinema oriental. No filme de Jia, somos agredidos por ela, sofremos os efeitos junto das vítimas. Cada vítima golpeada com tiro, faca, paulada ou o que quer que seja respinga em nós, também porque sentimos que ali ele não fala só da China, mas de uma certa crise da humanidade, da urbanidade, do capitalismo, como queiram. Por isso o filme é muito triste.

Mas é difícil de esquecer menos pela razão óbvia – a violência intensa, crua e seca, inédita até então no cinema do diretor – do que pela maneira como Jia arquiteta os episódios, que vão crescendo até a inevitável explosão. Os personagens se apresentam serenos, vão observando o que acontece ao redor, até que começam a se revoltar com o que veem e a reagir pelo único modo que conseguem, o da violência (ou começam a se dar conta de que a vida não faz sentido – caso do segundo e do quarto episódio). São como animais quando encurralados. Reagem. Primeiro por instinto, depois por um esvaziamento moral de quem já matou e quer mais sangue, quer ir até o fim na cadeia de matanças.

Bruno Cursini mencionou Ulrich Seidl, o que considero uma comparação muito mais válida do que com o cinema mexicano ou coreano. Contudo, Seidl não é movido pelo desespero, mas pelo desprezo. E o problema aqui não é o desprezo pelos personagens em si (motivo que sempre causou recusas em boa parte da crítica conteudista), mas por toda uma construção que nos mostre traumas, dificuldade de conviver ou sobreviver ou perdoar; enfim, uma construção de quem saiba confrontar  as contradições humanas, que se interesse por elas, que se interesse, enfim, pelo mais sórdido de cada um. Seidl chegou perto de conseguir algo nesse sentido com Import Export, mas é evidente seu descaso pela ambiguidade e pelo contraditório. Para ele tudo é maniqueísta. Existem aqueles que nasceram para sofrer e aqueles que nasceram para judiar. Mundo simplório de pessoas rasas. Em Um Toque de Pecado, os personagens, com meia hora de presença em cena, já exibem uma construção muito mais rica por trás das interpretações contidas dos atores. A forma é essencial para o que vemos: um desencanto profundo, a continuação lógica daquilo que os personagens de Plataforma, Prazeres Desconhecidos, O Mundo e, principalmente, Em Busca da Vida, não conseguiam esconder. O expurgo de toda a revolta com a condição da China como império capitalista, do dinheiro e do poder como únicas metas possíveis de uma sociedade doente (o que os cineastas gregos tentam falar há anos, sem sucesso).

O leitor deve perdoar o clichê inicial das referências. No cinema contemporâneo, muitas vezes é inevitável se livrar do que os filmes retomam, consciente ou inconscientemente. Um outro clichê será usado agora, este um pouco mais lúdico. Porque existem alguns momentos em que Jia fala a língua dos grandes mestres do cinema (contaminado, é certo, por algo do maneirismo de Raul Ruiz e Johnnie To):

1) o segundo protagonista sai pelas ruas perseguindo um casal. A câmera o acompanha num jogo de foco e desfoco primoroso (poucos sabem trabalhar com essa limitação focal como Jia Zhang-ke), ora inserindo as futuras vítimas num fundo todo borrado, ora abandonando-as no enquadramento e borrando outras coisas, sempre numa steady-cam que persegue o assassino segundo seu próprio ritmo, e continuará perseguindo depois do assassinato de homem e mulher, do roubo da bolsa desta última, e da calma caminhada enquanto se despe da camisa azul-operário que lhe deixava fácil de ser reconhecido.

2) O encontro entre a recepcionista de uma sauna noturna e seu amante, um homem casado. O diálogo é belíssimo. Ela dá um ultimato. Ele acena em direção a ficar com ela. Logo mais, ele pega o trem, ela se destaca frente a um borrão. Estamos com ela, mas ela está sem perspectiva, sem rumo, como os demais protagonistas do filme. Sabe que esse homem não largará a esposa, e que sua vida continuará sem sentido.

3) Mais tarde, essa recepcionista se vinga de dois homens que a assediavam no melhor estilo Johnnie To, com golpes de facas aplicados com imensa destreza. Dá a sensação de que ela sairá dali para se encontrar com as parceiras do Heroic Trio (filme de 1993 de To). Ela sai da sauna toda banhada de sangue, ainda cheia de fúria. Os carros desviam dela na estrada. A violência foi necessária, e serviu momentaneamente. Mas ela está ainda mais perdida.

4) O último protagonista muda de emprego como quem troca de roupa, mas não consegue diluir sua desesperança. No alojamento do último emprego, ele observa um grande mural de pequenos apartamentos com os varais que secam roupas e uniformes. Tudo igual. Nada muda. Desespero. Morte.

É necessário dizer ainda que o primeiro episódio é todo digno de antologia, desde os primeiros planos do filme: o caminhão tombado com os tomates espalhados, o homem que carrega seu rifle enrolado numa toalha estampada com um tigre, as cerimônias que ele insiste em atravessar impassivelmente.

Como Tsai Ming Liang com seu Cães Errantes (já anunciado como seu último filme), Jia Zhang-ke nos entrega, em Um Toque de Pecado, a continuação lógica de sua obra até aqui. E também tem cara de último filme. Fim de um beco sem saída. Espero estar errado.

Sérgio Alpendre

 

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Um Toque de Pecado, por Bruno Cursini  (contra o filme)

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