Ano VII

Dear White People

domingo ago 2, 2015

Dear White People: cinema que não pede licença

Queridos brancos. Estranho um título assim, né? Mas é essa melhor tradução que encontrei para Dear White People, filme de Justin Simien. Leio o título em inglês e penso: OK, que bacana esse título. Leio em português e a reação é de um leve desconforto. Porque na língua original ele me faz remeter a uma cultura, a um processo histórico de quem lidou com a questão racial de uma certa maneira que permite inclusive colocar esse título num filme: Dear White People. Na nossa língua, porém, parece deslocado: deslocado porque ainda temos muito que andar para soar como natural se referir assim, sem tergiversar, pegar atalhos, atenuar: Queridos brancos.

Partindo do título, a inevitável questão: a quem o filme toma como interlocutor? O espectador branco, pois, indica o vocativo. Desloquemos, então, a orientação da pergunta para descobrir a natureza da interlocução: como o filme se dirige aos “queridos brancos”? Pronto: no cinema americano contemporâneo, Dear White People é um exemplar raríssimos de filme que não se comporta como um orador à frente de uma sala apenas com pessoas brancas, clamando que elas lhes deem atenção. Na relação de interlocução entre filme-espectador, brancos são bem-vindos, cheguem mais. Mas com cuidado: sentem lá no canto e escutem. Escutem porque precisamos falar sobre todas as coisas erradas que vocês fazem (não, tocar no meu cabelo black não é legal) e sobre como o esforço, psicológico e físico, de viver numa sociedade branconormativa. E ao colocar os queridos brancos no canto, a escutar, são os pretos que assumem o protagonismo de interlocução, ao contrário do que sugere o vocativo numa primeira leitura. Vamos falar sobre nós e sobre coisas nossas, mesmo que sejam desagradáveis para nós mesmos, seja para esse grande Outro – o branco.

Talvez o que permita ao filme adotar esse tom desafiador seja o caráter independente de sua produção, o que lhe dá menos amarras, menos etapas de negociação e concessão – já falei bastante  no texto de Selma sobre cineastas negros negociando ou nos filmes sobre pretos que pouco fazem além de levantar a moral do branco, como Homens Brancos Não Sabem Enterrar. Não fosse pela liberdade de poder fazer o filme da forma que gostaria, Justin Simien, o roteirista e diretor, dificilmente teria estabelecido uma frontalidade, tanto nos enquadramentos (por muitas vez o espectador adota o ponto de vista da câmera que observa de perto e de frente os personagens, fazendo uma conexão que prescinde atravessadores) quanto nos diálogos. Nesse sentido, o que dizer de um filme que logo no começo já coloca: “Queridos brancos, o número mínimo de pretos num grupo para que este não seja considerado racista acabou de subir para dois. Desculpe, mas o mano que descola a erva, o Tyrone, não conta”?

Que se contextualize o lugar de fala do filme. Dear White People é uma sátira, e a filiação a tal gênero lhe permite alcançar lugares que o drama naturalista não permitiria – quer dizer, permitiria, mas talvez encontrasse mais resistência. Na sátira, o acordo é outro: o espectador aceita ser desconcertado por uma estrutura subvertida na qual personagens acreditam piamente no que dizem e no que fazem, sem enxergar o ridículo de seus atos. E Simien se aproveita muito bem de uma das principais dimensões que o gênero fornece, a crítica social.

O filme começa já estabelecendo um distanciamento no olhar, com uma trilha que remete a cenas de bailes das cortes do Século XVIII (me veio Ligações Perigosas à mente), apresentando, por meio de cartelas e em câmera lenta, os grupos de estudantes de uma faculdade privada conhecida pela excelência acadêmica. Conhecemos Samantha White, a agitadora que apresenta no rádio do campus o programa Dear White People; Lionel Higgins, o quietão ainda traumatizado com a zoação homofóbica do colegial; Troy Fairbanks, o filho que é o orgulho do paizão; Coco Conners, que dos quatro é a única com um projeto estruturado de anulação da própria negritude. Sabemos logo no início, com uma sequência de planos rápidos, da existência de uma festa racista regada a Blackface que aconteceu no campus e que terminou em quebradeira. O filme é, pois, um flashback que acompanha os acontecimentos que levaram a um evento de tamanha violência.

Se comentários ligeiros ou a planificação dos personagens seriam riscos a rondar o filme, eles não se concretizaram. Pelo contrário, tem-se uma investigação profunda dos quatro protagonistas, um esforço em descobrir qual é o recalque que os leva à cisão (Samantha), à negação (Coco), à depressão (Lionel) e à alienação (Troy). É justamente nessa caminhada que Dear White People descola duas cenas com evidente força na forma – no plano e em seu encadeamento.

Cena 1: Um produtor negro de um reality show conversa com Coco e explica que está na universidade à procura de personagens para o programa. Coco deixa escapar que seu nome verdadeiro é Colandrea e que veio de uma certa rua em Chicago. Em tom cômico, ele a lembra que tal endereço pertence a uma vizinhança historicamente identificada com os negros. Coco, veemente, nega que nela tenha restado algo do gueto. Entre eles, uma mesa e, numa das extremidades, uma televisão rodando imagens do vlog de Coco.

dear white people coco e produtor

Em um plano, toda uma leitura. À esquerda, diz-se: “sim, somos ambos pretos”. À direita: “não, eu posso deixar de ser negra”. Ao centro, na televisão: “olha como eu já deixei de ser negra!”

dear white people coco tv

Cena 2: Lionel olha para o mundo com a mesma ânsia de uma Juliette Binoche, em Camile Claudel 1915. Como me encaixar nesse mundo? Primeiro, Lionel imagina esse encaixe de forma a dar conta de uma de suas dimensões – homem gay. Dissonância. Lionel tenta, então, resolver a outra dimensão – homem preto. Dissonância.

dear white people lionel olha1dear white people lionel contraplano1dear white people lionel olha2dear white people lionel contraplano2

Novamente, o plano e seu encadeamento. Tudo lá. Com um adendo que torna a experiência estética mais dolorida: ao idealizar o que constituiria o contraplano, Lionel é enquadrado por entre dois corpos que passam apressados pela escada. Lionel está espremido no plano. Lionel é um garoto preso.

A essa altura, é até óbvio dizer, mas talvez ainda assim necessário: Dear White People não é centrado no racismo, mas na (re)construção da identidade e na fricção em cada etapa desse processo. Intensificando os assuntos de identidade e pertencimento, Simien faz uma crítica aguda ao anulamento da subjetividade para se incorporar, ser aceito. A parte que dói da crítica: não se fala exclusivamente do arquétipo Sydney Poitieriano do negro que se desdobra para se incorporar à sociedade branca (Troy e Coco), mas também aos próprios grupos negros, às suas expectativas e demandas (Samantha e Lionel).

Sobre os primeiros, a tragédia. Coco batalha por um embranquecimento alucinatório [1], o que só poderá levar evidentemente à solidão [2]; Troy está na encruzilhada de atender a expectativa do outro para existir. Nem fumar maconha pode (oh, que rebeldia!) porque, se pego, será visto automaticamente como “olha lá, mais um crioulo maconheiro bandido vagabundo”; estuda ciência política, mas gosta mesmo é de comédia: claro que não pode viver esse desejo porque “como assim ousas cultivar algo inútil como a comédia? Não sabes quantos pretos queriam ter essa chance que você tem de estudar?”.

Sobre os outros dois, o esforço não menos neurótico de se encaixar – desta vez com os próprios pretos. Samantha e Lionel, a imagem invertida de Coco e Troy. Primeiro, Samantha: aspirante a cineasta, seu perfil de agitadora é cooptado por um grupo militante que cobra dela um concordância total com suas táticas. Se o grupo coloca a política à frente da estética, Samantha prefere uma dialética entre elas. Basta observarmos a diferença entre os dois filmetes que ela faz na faculdade. Ambos interessantes, mas com distinção de prioridades. No primeiro, ser ouvido a todo custo; no segundo, fazer o que se deseja, sem abdicar da compreensão política do que limita esse mesmo desejo.

Quando se fala em filme de um diretor negro e protagonizado por pretos, pronto, Spike Lee vem automaticamente à cabeça. Não da minha (há tão mais que Lee desde meados da década de 1910!), mas dos que tem pouco vocabulário e/ou interesse em pretos no cinema. Mas se quisermos encontrar um semelhante para Samantha ele não é americano, nem preto. Vejo a personagem e lembro do garoto Gilles em Depois de Maio (Après Mai, 2012). O que une os protagonistas de Simien e de Assayas é a angústia de bancar o estético num contexto político, de propor que suas intervenções no mundo se darão utilizando ferramentas do segundo para se expressar com o primeiro.

dear white people samantha cameradepois de maio

No momento de tomada de decisão, ambos correm para o cinema. Samantha para empunhar a câmera; Gilles para dentro da sala de cinema.

Dear White People é um filme desconcertante. Evidentemente para os brancos, que são confrontados com a desnaturalização de situações sociais, especialmente com as pérolas de verdade-bem-aqui-na-sua-cara que Samantha solta no rádio (“Queridos brancos, sair com um negro para fazer birra aos seus pais é sim uma forma de racismo”; “Queridos brancos, por favor, parem de tocar nos nossos cabelos”). Mas também para os pretos, que tem de lidar com um filme que não adota um caminho paternalista e que, em vez de representar “o negro” ou “a questão do negro”, abre um leque de possibilidades de estar no mundo (algumas nada confortáveis e tensionadas).

Heitor Augusto

[1] “Se ele se encontra a tal ponto submerso pelo desejo de ser branco, é que vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de inferioridade, em uma sociedade cuja consistência depende da manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a superioridade de uma raça; é na medida exata em que esta sociedade lhe causa dificuldades que ele é colocado em uma situação neurótica.

Surge, então, a necessidade de uma ação conjunta sobre o indivíduo e sobre o grupo. Enquanto psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não mais tentar um embranquecimento alucinatório, mas sim a agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais”. Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas, p. 95.

[2] Recomendo a leitura do breve texto Síndrome de Cirilo e a solidão da mulher negra, publicado no Blogueiras Negras.

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