Ano VII

cinema negro negociado

segunda-feira mar 16, 2015

selma

Selma – Cinema negro negociado

por Heitor Augusto

 

Se é verdade que qualquer diretor tem de negociar demandas mil – cinema é produção coletiva que envolve uma quantia relevante de dinheiro –, para um artista negro tal negociação é ainda mais complexa. Em suas forças e fraquezas, Selma, crônica dos acontecimentos que levariam às marchas de Selma a Montgomery em 1965 – evento-chave para o desmoronamento das leis Jim Crow, arcabouço que sustentou quase um século de coerção moral e física para vetar a cidadania aos negros –, está embebido de negociação.

Porque foi dirigido por uma mulher negra – Ava DuVernay –, o que ainda é raridade; porque é a história de um protagonismo negro num filme produzido dentro de uma indústria de ideologia branca e heteronormativa; porque tem em seu centro Martin Luther King Jr., um personagem de tamanha relevância que blinda uma crítica aguda (sabemos mais de suas palavras do que das de Charles V. Hamilton, não menos fundamnetais); porque é uma mulher contando a história de homens (conhecemos menos do que deveríamos o ativismo das mulheres pelos direitos civis – por que não falamos de Pauli Murray?); porque ao mesmo tempo que obviamente interessa a um espectador negro, faz um esforço para não divorciar o potencial espectador branco; porque administra uma vontade de sensibilizar para uma violência do passado para gerações que não a viveram (será?); porque sua matéria é a História, mas seu meio de expressão é o cinema.

Esse cardápio de negociações em frontes tão distintos (com o passado, com os meios de produção, com os tipos de público, com os próprios desejos) está impresso em Selma. Mesmo que ele não o traga deliberadamentente para a superfície, basta olhar para ver. Considerando esse peso que, mesmo invisível, é perceptível, DuVernay sobreviveu à ameaça de castração num ambiente negociado. Talvez Selma não pudesse ir além de onde chegou. O problema é que se tem tão poucos filmes sobre negros nos Estados Unidos – menos ainda dirigidos por quem é da própria etnia – que se guarda uma certa expectativa de que cada filme será definitivo, que dará conta de todas as histórias não contadas, incorporará todas as nuances. Expectativa injusta, mas ainda assim inevitável. Não falar dela é ignorar uma variável importante na experiência de apreciação do filme.

De alguns enrosos Selma se livra muito bem. O prólogo com a senhora tendo violentamente negado o seu direito ao voto é um deles. Se eu fosse incumbido da tarefa de explicar o que permite o pequeno poder do burocrata branco racista daquela cena, precisaria voltar ao período imediatamente anterior à Guerra Civil Americana (1861-65), gastar muitas linhas na Reconstrução e me debruçar sobre o acórdão de 1877 que levaria ao vergonhoso cambalacho do “Separado, mas iguais”, como ficou conhecido o regime oficial segregacionista que imperou nos EUA até o Civil Rights Act de 1964. No que eu precisaria de umas dez páginas, Selma faz em uma cena.

De outros, não. Na tentativa de dar profundidade a Martin Luther King Jr. como personagem, o roteiro privilegia os casos extraconjungais do ministro e a postura Coretta, a esposa estoica, em não expô-lo, permanecendo a seu lado, anulando seus desejos em favor da causa maior – e de seu homem. DuVernay abre a porta, mas decide olhar apenas por uma fresta. Prefere ignorar o machismo velado de parte significativa do movimento negro (tanto o mais tradicional quanto a sua resposta crítica, os Panteras Negras), que colocou uma igualdade de direitos entre etnias distintas no espaço público, mas que tem dificuldades em transpôr essa pauta igualitária para o ambiente da casa. Filma lindamente Luther King com um travelling, mas faz vistas grostas que o palco não estava disponível para o negro que não fosse homem ou hétero.

Voltamos, inevitavelmente, à negociação: porque o momento presente é delicado (a direita nos EUA cheira a ovo podre e o racismo institucional avança a passos largos), é preciso voltar aos direitos básicos, lutar para garanti-los para, só depois, permirtir-se ao tom crítico a esses protagonistas. E com isso o cinema negro não avança e ficamos fazendo variações do mesmo filme: negro sofre com brancos opressores e tem esse sofrimento contado de forma a sensibilizar um público branco liberal e/ou sai da condição de oprimido via branco de bom coração. Advinha quem vem Para Jantar?, Histórias Cruzadas e Selma andam de mãos dadas. Sísifo empurra a pedra morro acima, a pedra desce morro abaixo (raras exceções: as obras de Charles Burnett e Spike Lee).

Podemos voltar ao filme e discutir coisas pontuais. A decisão de filmar a violência da polícia em câmera lenta, decisão que sempre será alvo de objeção; os tiques de um filme histórico (o gesto de cada personagem importante carrega um tom de nobreza nos diálogos, como se não houvesse tempos fracos em suas vidas); restringir Lyndon Johnson a um político calculista que só aprovou a lei dos direitos civis por interesses por politicagem; a prisão à convenção da montagem de causa-efeito.

Ater-se a essas questões pontuais ao olhar para Selma funciona se observamos o filme individualmente. Evidente que é um recorte possível e até legítimo numa ou outra plataforma de discussão. Fazê-lo, porém, é manter-se cego ao que está ao redor: a carga invisível que pesa sobre o artista negro de equilibrar expectativas tão distintas ao lidar com sua história. As escolhas do filme de DuVernay passam por essa via.

É preciso voltar sempre a Ganja and Hess (1973), blaxploitation de Bill Gunn. Fazendo guerrilha cinematográfica – Gunn foi contratado para fazer algo na mesma linha de Blacula – O Vampiro Negro –, ele politizou um filme de vampiros. Sai a metáfora do sexo, entra a castração criadora e métodos de resistência: como respeitar meus desejos de autor quando tenho minha força vital sugada pelos meios de produção?

Selma está muito aquém do que pode ser o cinema negro (a saber: aquele que está menos preso às obrigações de negociação, que tem mais coragem em se expressar como quer se expressar e que geralmente é também bom cinema). Dada a conjuntura, triste diagnóstico: talvez seja o máximo que se possa chegar. Torço para que me provem o contrário.

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