Ano VII

Camille Claudel, 1915

sexta-feira ago 9, 2013

Camille Claudel, 1915 (2013), de Bruno Dumont

À aprisionada Camille observada pelo cinema de Bruno Dumont em Camille Claudel, 1915 não é oferecido o contraplano, o horizonte.

Quase tudo se dá no plano. Juliette Binoche percorre uma extensa partitura para dar uma cara às emoções. Mas o que olha o rosto dessa mulher? Qual ponto da paisagem – se é que há um – lhe chama a atenção? O que está nesse contraplano oculto que completaria o que vemos no plano?

Dumont sonega o contracampo. Quando o entrega, é a imagem do desespero. Uma árvore desavergonhadamente seca. Uma colega de hospício dizendo coisas desconexas. Uma enfermeira com olhar de falsa caridade. Há também, por vezes, o horizonte, a natureza, a vegetação bem distribuída. Mas Camille Claudel, 1915 se concentra tanto na personagem a observar algo que consolida, deliberadamente, a incômoda sensação de que esse lugar que ela enxerga fica mais e mais inalcançável.

Acontece, então, uma pequena inversão de sentido. O plano geral, que poderia ser o signo da liberdade dada a imensidão do horizonte, torna-se a representação do difuso. A paisagem é tão grande que se torna inatingível: como chegar àquela montanha no topo do quadro se é preciso atravessar tantas árvores?

Quando essa significação do plano geral fica clara e a percepção do descompasso na relação plano/contraplano se aguça, não há outro caminho: Camille está definitivamente presa.

Presa, diz a impressão inicial, em sua loucura. Afinal, está num hospício. Mas até mesmo essa afirmação inicial da insanidade é questionada. Novamente, o embate se dá no plano. Camille prepara a própria comida, pois tem permissão por causa do medo do envenenamento (“eles querem me ver morta”, “é um complô do Rodin”). Ao comer, senta-se à extrema esquerda do quadro; à direita, outra interna do hospício; ao centro, uma lastra (aparentemente um exaustor) repartindo o quadro ao meio, explicitando a divisão entre ela e as outras.

Camille, nos diz novamente o plano, não pertence àquele lugar.

Se o asilo de Montfavet não é o seu habitat, então porque está presa? Entra em cena seu irmão, Paul Claudel, um escritor católico fervoroso apaixonado pela poesia de Rimbaud – se é que tal combinação é realmente possível sem implicar contradições. Paul é a peça que oferece os dados biográficos que faltavam: Camille Claudel foi uma grande escultora. Tão fenomenal que quebrou o machismo numa atividade artística exercida por homens. Chamou a atenção de Rodin, de quem se tornou aprendiz. Amaram-se, mas o parceiro não quis assumir oficialmente a relação. Camille perdeu coesão mental.

Se Camille é o plano, Paul é o contraplano. Se Paul é o horizonte que Camille olha, a esperança de se ver liberta, certamente não há saída. Outrora apegado à irmã, na época que se desenrola o filme ele já é ressentido pelo protagonismo de Camille, crítico a seus “pecados”.

Se até então a direção de Dumont trabalhava com a sugestão de fatos e sensações, explorando o desequilíbrio no plano/contraplano, quando a visita de Paul à irmã é anunciada o diretor de Camille Claudel, 1915 torna-se mais incisivo. Paul é um hipócrita que desfruta de poder numa sociedade voltada ao privilégio do homem. Camille sofrerá tanto como a heroína de Bellocchio em Vincere.

Basta atenção aos detalhes, especialmente ao diálogo entre irmão e irmã, para perceber rachaduras no relato de Paul sobre os fatos da vida de Camille. Pois Paul veste cada vez menos o personagem do irmão, de forma a dar espaço ao do juiz divino. E como tal é imperioso condenar Camille por seus “pecados” na Terra: permanecer solteira, amar um homem casado, cultivar independência, brigar pelo direito sobre o próprio corpo, esculpir homens nus.

Presa a memórias antigas, Camille enxerga Paul como seu irmão. Paul enxerga Camille como uma pecadora.

Num brilhante procedimento narrativo, Dumont suprime o tempo e condensa num único plano, o final, a partitura de emoções percorridas pelo rosto e pelo corpo de Juliette Binoche durante o filme. Não fosse, talvez, a existência de uma cinebiografia tradicional e linear – Camille Claudel (1988), dirigida por Bruno Nuytten com foco na relação Camille/Rodin no período de surgimento e auge da escultora –, Dumont poderia sequer ter chegado à liberdade não só de escolher esse recorte de uma biografia extensa (falar dos mecanismos de aprisionamento), mas também de encontrar a síntese num único plano: o da elegância brutal.

Heitor Augusto

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