Ano VII

Entrevista: Bonello

sexta-feira jan 6, 2012

Por Heitor Augusto

Bertrand Bonello é figura carimbada no Festival de Cannes. Porém, ao contrário de outros compatriotas da mesma geração – François Ozon, Christophe Honoré, Gaspar Noé – já abraçados pelos distribuidores, exibidores e cinéfilos brasileiros, Bonello ainda não se tornou uma grife por aqui.

Mas como estamos falando de cinema, não da Tiffany, L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância, o mais recente filme do diretor nascido em Nice, merece ser posicionado em seu devido lugar de bom cinema. Um filme de época que por vezes larga o selo quando é preciso colocar-se como um olhar moderno – que não é sinônimo de hype, precisamos ressaltar – às cortesãs francesas do fim do Século 19.

Bonello encara os fetiches com coragem. Também roteirista do filme, não julga suas prostitutas nem seus clientes. Não é paternalista nem autor de conto de fadas. Mais para cronista do haut monde cortesão e um comentarista das semelhanças da sociedade francesa na alvorada do Século 20 com a do Século 21.

Antes de L’Apollonide, o realizador de 43 anos já falou do próprio cinema (De la Guerre, 2008), da obsessão (Tirésia, 2003), questionamentos morais e tradição (O Pornógrafo, 2001), além do fim de uma relação (Quelque chose d’organiique, 1998) em seu primeiro longa-metragem. Mas seu caminho no cinema começa ao transpor os diários de Pasolini para o cinema, no curta Qui je suis (1996). Trajetória curiosa a do cineasta: fez apenas um curta antes de estrear no longa, porém não abandonou o formato após entrar no longa.

E antes do cinema, veio a música, que até hoje é a principal influência de Bonello como artista e personagem constante de seus filmes, como revela o diretor nesta entrevista exclusiva para a Revista Interlúdio. Bonello interrompeu sua viagem de fim de ano e gentilmente atendeu ao nosso pedido para responder uma bateria de perguntas por e-mail.

Na conversa o realizador fala do hibridismo da trilha sonora de L’Apollonide – Mozart e Lee Moses estão juntos no mesmo filme –, a dramaturgia fechada no bordel fictício, de sexo no cinema e de outros assuntos que você passa a conferir na prosa abaixo.

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Jean-Pierre Léaud em O Pornógrafo

Em qual parte do processo você decidiu que o bordel teria uma dramaturgia fechada nele mesmo? Ao assistir ao filme tem-se a impressão de que os personagens não têm vida fora da mansão e que isso não é necessariamente um problema…

A oportunidade de ter um espaço fechado era parte do desejo de fazer este filme. O fato de que a casa poderia se tornar um espaço inteiramente cinematográfico, com regras próprias e sem conexão com o mundo externo – assim como uma sala de cinema – me empolgou. É um mecanismo fantástico para a imaginação. A casa acaba se transformando num cérebro. Tudo isso pra dizer que essa compreensão dramatúrgica veio logo no começo.

Você tem razão ao dizer que ninguém tem vida própria fora da casa. As garotas não têm permissão para sair e nós não sabemos nada sobre os homens quando deixam a mansão. A câmera sempre fica com as garotas, do lado de dentro.

Há uma bem-vinda contradição no filme que parece ser sua força motor. Para as mulheres, a casa é uma prisão – um diálogo expõe a saída do casarão como um grande evento. Para os clientes, é o passe livre, a autorização para fazer o que quiser. Quanto desse antagonismo está na raiz de L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância?

Sim, toda a compreensão depende do ponto de vista. Pela perspectiva dos homens, é beleza, luxúria, champanhe e sexo. Na visão das garotas, é prisão, doença, pobreza e medo. Eu realmente queria fazer um filme cheio de contrastes que coexistissem. Mas não acredito que se trate de contradição, mas sim de realidade.

A trilha do seu filme é um dos componentes mais importantes, senão o mais, para a aura de modernidade por conta da combinação híbrida de estilo. O que está por trás da sua escolha em colocar Mozart e Debussy ao lado de Lee Moses e o blues “She’s a Bad Girl” além da explicação óbvia de que todos fizeram boa música?

Certamente eles estão lá não apenas porque são bons. Há um sentido, mesmo que afetivo, como em algumas vezes. Para mim, há uma conexão entre a música soul e essas garotas. Uma relação emocional, certamente, mas existe. Existe uma relação também com a escravidão. E claro, algo que também me atrai é a entonação emotiva quando se canta um soul. Mozart era a melhor escolha para a cena do Salon Bourgeois pois dá uma ideia de carga profunda, mas sem cair para uma atmosfera de romantismo.

Momento de descanso em L'Apollonide

Eu não tentei ser um provocador. Não acho que é preciso usar música do começo do Século 20 só porque seu filme é ambientado naquela época. Eu não uso uma câmera de 1900, por que seria assim com a música?! Não vejo como um risco, mas sim uma oportunidade.

A mistura não foi para “quebrar” alguma regra, mas para colocar juntas duas coisas a fim de criar uma terceira, que pertenceria especificamente a esse filme.

Percebe-se pelos seus filmes que você tem uma relação próxima com a música. O que passa pelo seu iPod, computador, aparelho de som, gramofone? E pensando na História da Música, como você se definiria em termos de gosto e preferências?

Muito soul dos anos 1960. Mas meu gosto é amplo, de JS Bach a Plastikman. Nos últimos tempos tenho ouvido muita ópera italiana e um pouco de música eletrônica abstrata.

L’Apollonide tem no elenco dois atores que também são diretores e autores, Jacques Nolot e Xavier Beauvois. Por que você coloca Nolot no papel do único homem que realmente ama (à sua maneira, mas ama) e Beauvois como o homem que leva um fetiche bizarro da alta sociedade ao extremo?

Eles são diretores, sim, mas também atores, e dos bons. No Xavier em sempre gostei da mistura de delicadeza e pavor que ele provoca. E acho que Jacques é um ator tocante. Sempre pensei nele como a voz que leria a carta para Julie. Mas é claro que eles também são diretores e isso também é um comentário sobre a relação de clientes e prostitutas.

Em algumas entrevistas anteriores você disse que não era cinéfilo na infância. E possível construir um alto nível como cineasta e construir um estilo na realização sem passar pelos clássicos?

Essa é difícil… Penso que não há regras ou “a boa escola”, exceto aquela que você escolhe como sua. Não era um cinéfilo quando pequeno mas desde então assisti a muitos filmes. É complicado se comportar como se o cinema não tivesse uma História.

De alguma maneira, seus filmes sempre lidam com sexo, sexualidade e fetiches. Você considera que já estamos liberados para tratar desses assuntos no cinema? Em 2012, qual é nosso nível de conservadorismo?

Tudo depende de como e por que você mostra as coisas… sim, nós ainda somos muito conservadores e nenhuma amarra foi realmente rompida. Intimidade é um assunto privado. Mas já se fez tantos filmes com cenas de sexo, então filmar uma apenas por filmar não me interessa, é estéril. Em L’apollonide, que é um filme sobre bordel, não se tem uma cena clássica de sexo.

Saindo de L’Apollonide e indo para seus trabalhos anteriores, uma questão sobre O Pornógrafo, lançado no Brasil em 2002. Como foi dirigir dois atores de gerações diferentes: Jean-Pierre Léaud, que apesar de ter feito tanta coisa é sempre identificado com Antoine Doinel, e Jérémie Renier, então um jovem ator recém-descoberto pelos Irmãos Dardenne em A Promessa?

Quando se dirige alguém como Jean-Pierre, é verdade que vemos, junto com ele, toda a História do cinema, especialmente para quem é francês. Para mim, a intenção foi mostrar uma faceta dele que ainda não tínhamos visto. Espero que tenha sido bem sucedido. Dirigir Jérémie foi muito fácil: ele é muito talentoso.

Mathieu Amalric, em De la Guerre

De certa maneira, acredito que tudo que faço são homenagens não aos filmes, mais ao cinema. Nesses dois que você citou, isso fica mais óbvio. A homenagem é algo que me move, então…

Olhando para alguns dos seus conterrâneos também na casa dos 40 anos (François Ozon, Christophe Honoré, Bruno Dummont, Gaspar Noé…), você acredita que ainda faz sentido pensar no cinema de autor como algo a ser defendido na França?

O cinéma d’auteur é uma expressão estranha. O que isso significa? Realmente não sei. Que o diretor é o autor do filme? Se sim, claro, óbvio que é algo a ser defendido.

Como brasileiro, não dá para ignorar essa curiosidade: por que a transexual em Tiresia (2003) é brasileira? Algum motivo em especial?

Na verdade, é um fato que 75% das transexuais em Paris são brasileiras. Realmente não sei o porquê. Quando busquei por respostas com amigos brasileiros, simplesmente não conseguiram responder. Além disso, também gostei da ideia de que a personagem Tiresia vinha de um país longínquo, que ela/ele estava distante.

Duas perguntas clichê para encerrar: quais são suas influências como cineasta? Quais são seus próximos projetos?

Minhas influências estão mais na música e na literatura, mais até do que filmes. Tento trazer isso para as minhas produções. No cinema, não tenho uma influência específica. Acho que tudo que vi até hoje pode significar uma influência. Sobre os próximos projetos, acabo de finalizar um filme sobre terrorismo em Paris.

*Entrevista concedida por e-mail a Heitor Augusto.

Leia também: crítica do filme L’Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância (L’Apollonide – Souvenirs de la Maison Close, 2011), de Bertrand Bonello

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