Ano VII

L’Apollonide

sexta-feira jan 6, 2012

L’Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância (L’Apollonide – Souvenirs de la Maison Close, 2011), de Bertrand Bonello

Dizem-me alguns amigos que a excitação com que saímos de L’Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância não é a mesma dos outros filmes de Bertrand Bonello. Não tenho contra-argumentos, já que este é o primeiro filme dele a que assisto. Acredito no que me contam os colegas, mas não deixo de achar curioso que alguém tenha dirigido produções desinteressantes e, pimba, faça algo tão extasiante quanto L’Apollonide.

O filme supostamente está na França em algum lugar entre o fim do Seculo 19 e o início do 20. Toda a ação se passa num bordel do haut monde. Está aí o primeiro atrativo dessa produção: não é figura de linguagem dizer que a encenação é limitada pelas paredes da mansão de tolerância.

Bonello articula seu filme para justamente passar a sensação de espaço fechado e de passagem cíclica de tempo. Tão forte é essa percepção que o diálogo expõe como um grande evento a saída de uma das prostitutas para fora das paredes da casa com um cliente. É um acontecimento deixar os muros de L’Apollonide.

Não é por capricho, então, o começo à Elefante do filme. Somos convidados a acompanhar um período de tempo pela perspectiva de diferentes mulheres que lá trabalham, entrelaçando passagens e espaços em comum por ângulos diversos. Um comentário da característica circunspecta do enredo e do caráter paralelo de uma casa de tolerância na alta sociedade francesa. Paralelo porque moralmente recriminado, mas inteiramente incorporado a ela, mesmo que por debaixo dos panos.

Existe um trecho, porém, em que saímos – elas, as prostitutas, e nós, espectadores com olhos de clientes para seus corpos – da casa e vamos para fora. Ar livre, um rio, o vento gostoso que bate na pele. Muitas mulheres nuas, felizes porque peladas sem que isso signifique oferecer-se ao cliente que paga por momentos de prazer.

Naqueles momentos a palavra liberdade é encenada com gratidão rara.

Voltamos, porém – elas e nós –, à casa, ao espaço fechado, pois a diversão foi apenas uma tarde de verão. Não que o bordel seja melancólico em L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância. Não há um julgamento moral, felizmente, por parte do filme. Todavia, a melancolia é um sentimento que se faz presente porque lida-se com a frustração delas, as putas, e deles, os clientes. Porque o sexo, momento ímpar de cumplicidade, tem hora para acabar. E quando o fim chega, para o homem é a volta ao mundo; para a mulher, ou o fim do tormento (pois tem clientes que…) ou do sonho (pois na casa fala-se de sexo, mas também, como indica o título do filme, de amores).

O sexo e o tempo

Em tempos caretas, de novas gerações que admiram o vampiro que só aceita transar depois de casado – e escondendo o corpo da câmera –, e comparado com a longa tradição de filmes sobre sexo sem o dito cujo, L’Apollonide é um filme devasso. Ótimo, pois precisamos de devassidão no cinema, de mulheres e homens cujos corpos não são evitados pela câmera, mas sim elogiados por ela.

Iliana Zabeth, peitos redondos e beleza cândida, não é atalhada pela câmera. Nem Alice Barnole, que leva o fetiche de um cliente ao limite e protagoniza a cena mais dura e atroz do filme. Nem Céline Sallette, em sua magreza, ou Hafsia Herzi, para qual a visão eurocêntrica reserva a classificação “beleza exótica”.

De todos os elementos do filme que nos deixam atordoados após a sessão, sem ter muito claro na mente que tipo de produção acabamos de assistir, são dois que especialmente causam a confusão: o sexo e a definição temporal.

O primeiro, pelos fetiches e a falta de pudor de L’Apollonide em mergulhar neles. Um dos clientes só consegue ter prazer se transar com uma mulher dentro de uma banheira de champanhe. Outro, precisa experimentar o orgasmo da fronteira entre a projeção do poder e a execução da violência. Outro, pede que uma das mulheres se comporte como boneca, literalmente. Outro – não à toa, interpretado por Jacques Nolot, e quem conhece os filmes dele como diretor sabe do que estou falando – amam, ao seu modo, mas amam. Outro, um pintor, pouco se importa com as aparências e estabelece com as prostitutas um acordo sexual claro.

Ou seja, são tipos, o que aproxima o filme de Bonello a La Chatte à Deux Têtes, filme de Nolot que já foi objeto de ensaio na Revista Interlúdio. Homens que, num espaço fechado e paralelo à sociedade, desabrocham seus desejos. Os homossexuais parisienses de 1998 do filme de Nolot são iguais aos heterossexuais da alta sociedade do início do Século 20 do filme de Bonello.

Além do abraço aos fetiches, outro aspecto de L’Apollonide que desconcerta é o hibridismo da localização temporal do filme. A direção de arte é típica de um filme de cortesãs, mas a colocação de várias cenas paralelas dentro do mesmo plano dá outro tom ao filme. A música abre espaço para as esperadas peças sinfônicas de um filme de época, mas é entrecortada por rock e blues moderno – Mozart anda ao lado de Lee Moses.

De que período histórico estamos mesmo falando? Essa associação cheia de ruídos entre tempo e estilos dão um caráter atemporal a L’Apollonide. Mas não se trata de atemporalidade como commodity do mercado cinematográfico – tão valorizada nos bastidores da produção quanto “história universal” –, mas da amplitude sincera que esse filme proporciona para a interação.

Um inclassificável jogo de contradições é este longa de Bonello. Previsível porque deixa claro o arco dramático de casa de tolerância, da alvorada ao seu crepúsculo. Imprevisível porque nos momentos em que esperamos delimitação clara ou contenção na condução, Bonello ou embaralha ou vai mais a fundo.

L’Apollonide fica nesse limiar entre mais um filme de época e um grande filme sobre o desejo e seus alimentos, seja no haut monde cortesão parisiense ou nos becos de uma metrópole cosmopolita do Século 21, e como suas respectivas sociedades o recebem. Ora de um lado da ponte, ora de outro.

Heitor Augusto

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