Ano VII

O Mensageiro do Diabo

segunda-feira nov 28, 2011


O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter, 1955), de Charles Laughton

O Mensageiro do Diabo é uma espécie de conto de fadas gótico, no qual Harry Powell (Robert Mitchum) é um assassino em série que, fazendo-se passar por reverendo, casa-se com a frágil Willa Harper (Shelley Winters), cujo marido Harry havia conhecido na prisão. Por trás do matrimônio, está o desejo do falso religioso em descobrir onde seu companheiro de cela havia guardado o dinheiro roubado no crime que lhe havia condenado.

Por sua exuberante plasticidade – onde sombras do cinema noir confundem-se com o clima hipnotizante do expressionismo alemão –, muito pouco se falou sobre o outro pilar no qual o filme se apóia: o som.

Logo nos créditos de abertura, as infinitas nuances expostas no primeiro e único filme dirigido por Charles Laughton, já são sugeridas no sinuoso trabalho da trilha-sonora: sobre o belíssimo céu de uma noite estrelada, uma música sinistra vai rapidamente se impondo. No entanto, rapidamente, tal sensação é interrompida por uma canção de ninar, entoada por um grupo de crianças. Tal variação no tema, por si só, já antecipa o gigantesco jogo de contradições com que O Mensageiro do Diabo irá se construir – como se pode evidenciar pelas tatuagens em cada uma das mãos do protagonista (na esquerda, a palavra “hate”; na direita, seu oposto complementar, “love”).

E durante toda a seqüência de abertura, que segue diretamente dos créditos iniciais, tais instâncias continuarão se misturando, procedimento este que se reflete também nas imagens: dialeticamente, a câmera de Laughton altera-se entre o céu, com as crianças sagradas, e o mundo condenado, habitado por seres ímpios.

No entanto, o que faz de O Mensageiro do Diabo um trabalho singular, também em sua utilização do som, não é sua trilha-sonora, mas o tratamento da banda sonora como um todo. Como “filme de suspense e terror” (pois estes são, também, gêneros nos quais pode-se, de modo simplista, enquadrá-lo), tal aspecto nunca pode ser subestimado. De Alfred Hitchcock a M. Night Shyamalan, tornou-se lugar comum a noção de que aquilo que não está mostrado (o “extra-campo”, o “fora de quadro”) é particularmente importante para criar a sensação de medo e expectativa em quem assiste.

Em O Mensageiro do Diabo tal procedimento é realizado de maneira exemplar, contribuindo para a ambiência (ora ressaltando o idílio de uma pequena cidade às margens de um rio, ora destacando toda a selvageria que se esconde por trás da beleza desta mesma paisagem pastoral) e para o suspense nos momentos propícios.

Outro elemento que pode fugir ao espectador menos atento, é a altíssima incidência de canções, diegeticamente trabalhadas ou não. Neste aspecto, O Mensageiro do Diabo não é mais um thriller do que um musical. Vejamos: logo após Harry (olhando para o céu, conversando com o Senhor), pronunciar o que, no mundo, ele odeia (“… coisas com cabelos encaracolados.”), escutamos uma música de cabaré e somos levados a uma casa de espetáculos.  Plano e contraplano contrastam o desprezo de Harry com a sensualidade da dançarina.

Pouco tempo depois, logo após a morte, pelo Estado, do bandido com quem Harry cumpria pena, sarcasticamente ouvimos crianças cantando em uníssono um tema sobre um assassino enforcado. Só duas crianças permanecem mudas: os filhos da viúva que Harry irá seduzir. Aqui, pela primeira vez, nota-se um artifício que será aperfeiçoado ao longo do filme: as músicas, cantadas pelos próprios personagens, como em um coro grego (e também poderíamos pensar no teatro épico brechtiano), passam a dialogar com o espectador, trazendo temas que convergem para a história narrada.

E é também, através de uma canção, que as duas crianças irão ter o primeiro contato com o psicopata. Momentos antes de dormir, os irmãos notam uma sombra em seu quarto e, ao olharem pela janela, vêem Harry que, ao perceber ser visto, sai tranqüila e ironicamente cantando Leaning on the Everlasting Arms. Além de seu caráter dúbio (já notado no texto e recorrente no filme), uma vez que o conteúdo da canção contrasta com o mal que ela trás (“um lobo em pelo de carneiro”), é perfeita a transição da canção diegética – quando o Reverendo está no portão da casa dos meninos –, e não diegética, meramente dramática: quanto mais o cantor se distancia da casa, mais a música adentra o quarto de suas futuras vítimas.

Em outro momento, nada menos do que sublime, uma sequência como poucas na história do cinema, quando da fuga dos irmãos pelo rio em uma canoa, temos a fusão de pelo menos três fluxos rítmicos: o primeiro, é um tema tipicamente de aventura, com os garotos correndo de Harry; o segundo, é o tema do protagonista, algo amedrontador e, o terceiro, é um ritmo mágico, típico do cinema fantástico, cantado pela pequena garota. Este último, confunde-se com o som dos animais, com os quais agora os meninos compartilham toda a natureza, todo o mundo.

E uma prova de que a música aqui transcende um caráter meramente climático, contando por si mesma a narrativa, se dá em dois momentos: o primeiro, ainda ao final da mística jornada dos órfãos pela correnteza. Eles avistam um aconchegante lar, ainda mais convidativo pela canção que dele emana (será dele mesmo ou “apenas do filme”? Tal questão já não mais importa, tamanho é o êxito de Laughton). No entanto, o casal de irmãos hesita em se deixar seduzir e bater em sua porta, talvez pela sombra de um pássaro preso em uma gaiola.

O segundo momento se dá mais próximo ao final desta extraordinária fábula (a mais americana já vista), quando os meninos encontraram uma protetora. Nesta hora, com o embate do bem (encarnado na senhora Rachel Cooper, interpretada com maestria por Lillian Gish, que havia acolhido os irmãos, sentada com uma espingarda, na sala de sua casa) contra o mal (o reverendo Harry Powell, no cerca da residência), ouvimos a agora aterrorizante Leaning on the Everlasting Arms, como sempre cantada pelo psicopata. As crianças despertam, desesperadas. Mas, agora, o bem irá filtrar todo o sarcasmo da música, com a senhora Rachel restituindo à canção seu caráter original, de fé e esperança.

A partir deste momento percebemos que, contra as evidências, O mensageiro do Diabo irá, ao final, reafirmar o valor da força contra todo o mal. E isto tudo, através de uma simples canção.

Bruno Cursini

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