Ano VII

Visconti – Filmografia

segunda-feira out 17, 2016

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Luchino Visconti: filmografia comentada

Por Sérgio Alpendre

Na preparação para o curso sobre Luchino Visconti ministrado em agosto de 2016 no Cinesesc, surgiu a ideia de fazer esta filmografia comentada de maneira descompromissada, leve, como um bloco de anotações, uma forma de externar como a revisão dos filmes batia em mim, caso a caso, e de como relia ou descobria alguns escritos sobre o mestre: Glauber Rocha, Mariarosaria Fabris, Bruno Villain e, principalmente, João Bénard da Costa, que, como Villain, é a leitura mais recente.

O movimento do realismo em direção ao operístico, sem que o realismo seja anulado, continua evidente nos filmes de Visconti. A quintessência do neorrealismo pode ser vista em A Terra Treme, mas continua, de forma tortuosa e um tanto questionadora, em Belíssima. A partir de Sedução da Carne, o melodramático operístico e o neorrealismo dão os braços, sendo ultrapassados sem serem apagados pelo olhar inteligente e crítico de um dos maiores diretores de cinema. Três obras de transição fazem um movimento curioso, da procura pela modernidade mais epidérmica e fácil em As Vagas Estrelas da Ursa à adaptação forçosamente respeitosa de O Estrangeiro, seu filme mais frágil, e ao interesse pela ascensão do nazismo por meio do retrato de uma família burguesa alemã em Os Deuses Malditos, que prepara a triunfal série de quatro filmes terminais, nos quais o encontro com a morte é inevitável.

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Obsessão

Obsessão (Ossessione, 1943)

Versão livre do famoso romance de James L.Cain, The Postman Always Rings Twice. As versões mais célebres desse romance para o cinema (a de Tay Garnett, 1946, e a de Bob Rafelson, 1981) não superam a de Visconti. Porto das Caixas (1962), de Paulo Cesar Saraceni, supera, mas é uma história de Lúcio Cardoso inspirada (não oficialmente) pelo romance de Cain, não conta.

Um caminhão de entrega chega num posto de gasolina afastado, onde também funciona um bar. De carona no caminhão, o hobo Gino, maltrapalilho, pouco confiável, que logo fica em cima de Giovanna, mulher do dono do bar. As semelhanças com o cinema de Jean Renoir são evidentes, mas Visconti trata logo de colocar um tempero todo próprio à trama.

Visconti acrescenta muitas coisas ao romance, incluindo uma relação homoerótica que ultrapassa o subtexto e por isso causou escândalo à época. O triângulo amoroso entre Gino, Giovanna e o espanhol que o acolhe é a melhor coisa do filme, por sinal. Gino mantém com o espanhol uma relação ambígua, que talvez sua formação machista não o deixe entender totalmente. O espanhol é mais livre, olha para Gino com desejo enquanto este dorme ao seu lado numa cama de casal.

Acrescenta ainda a esse Cain distorcido uma visão rude, crua, da sociedade italiana sob o fascismo, o que causou elogios dentro da esquerda à qual Visconti pertencia, e protestos da direita. Por outro lado, consta que o próprio Mussolini adorou o filme. Vai entender.

Obsessão é considerado o primeiro filme neorrealista. Mas essas coisas são difíceis de se definir. Muitos falam em Toni (1934), de Jean Renoir. Podemos falar também de Almas na Estrada (1925), de Minoru Murata, e até de O Pão Nosso (1933), de King Vidor. Antecedentes não faltam. O marco continua a ser Roma: Cidade Aberta (1945), de Rossellini. E é difícil não notar que A Terra Treme, de 1948, segundo longa de Visconti, é o filme mais neorrealista do diretor. Ainda que a carga melodramática que dominou o cinema fascista esteja menos evidente nestes primeiros longas de Visconti do que no marco rosselliniano (essa carga melodramática está ainda mais presente em Ladrões de Bicicleta, 1948, de Vittorio De Sica, outro marco do neorrealismo)

Obsessão é mesmo fascinante. A fórmula é hollywoodiana, mas tem também uma cara francesa, como notou João Bénard da Costa. Tem também semelhanças com Toni (no qual Visconti trabalhou como assistente de direção), como notou Mariarosaria Fabris. Além disso, suas elipses são tão radicais (a do assassinato lembra coisas que Joseph H. Lewis faria nos anos 50) que não é difícil considerá-lo um dos pontos altos de tal recurso no cinema.

Dias de Glória (Giorni di Gloria, 1945), direção de Visconti, Mario Serandrei, Marcello Pagliero e Giuseppe De Santis

Documentário dirigido por dois membros do Partido Comunista Italiano, Pagliero e De Santis, com a ajuda de dois homems mais ligados a cinema, Visconti e seu montador habitual até Vagas Estrelas da Ursa, Serandrei. De Santis se tornaria definitivamente um homem de cinema depois, fazendo, por exemplo, o medíocre Arroz Amargo (1949), um dos filmes que jogam o neorrealismo para baixo numa hierarquia imaginária de momentos históricos. Antes de Dias de Glória ele tinha escrito roteiros, além de ter sido assistente de direção de Obsessão.

Nada muito especial, tirando um ou outro momento: a filmagem do julgamento de Caruso, chefe da polícia fascista, reputado a Visconti; a série de fuzilamentos pós-julgamento. O filme se insere no esforço da Resistência Italiana do final da Segunda Guerra Mundial, e por isso não esconde sua vocação panfletária.

A Terra Treme

A Terra Treme

A Terra Treme (La Terra Trema, 1948)

A narração confere ao filme um aspecto ainda mais documental, bem mais que em Obsessão. No entanto, é também uma ficção sobre pescadores em luta contra as más condições de trabalho impostas pelos que ficam com os lucros da pesca. Ntoni é o jovem que se rebela e tenta conclamar outros para seu lado. As portas se fecham, pois os poderosos não querem perder suas regalias. O irmão Cola quer sair dali, tentar fazer fortuna em outro lugar. Ntoni quer lutar pelos direitos ali, onde nasceram. “Quem nasce em Trezza, morre em Trezza”, diz a narração.

Visconti nos mostra que é possível filmar uma questão social sem ser panfletário. Dizer que não se pode mais filmar assim é ignorar o que o filme tem de mais valoroso, e que ilustra a semelhança entre este filme e o que se busca agora: a densidade da dramaturgia, o espantoso drama que o diretor extrai de seus atores amadores. É o que o cinema brasileiro autoral recente tem tentado fazer, quase sempre sem sucesso (talvez porque os novos diretores temem o melodrama, e Visconti não temia). Como fazer, então? Talvez seja necessário nos despoluirmos de imagens ruins, de nossa formação perdida de hoje, quando passamos horas vendo gifs e videos horrendos no YouTube. Buscar o aspecto dionisíaco dos atores. Visconti se apaixonava por eles, filmava-os como deuses. Provavelmente o segredo resida aí.

Mas além de mostrar esse conflito social, Visconti nos mostra como vivem as pessoas nesse vilarejo litorâneo. Como paqueram, como se alimentam, como dormem e o que esperam da vida. O policial militar corteja a moça do lado de fora da janela. A casa da moça está abaixo do nível do chão, então o policial olha de cima para baixo. É uma maneira de Visconti mostrar a sociedade patriarcal italiana. Hoje, para mostrar isso, seriam necessários diálogos explicativos, porque a imagem já não tem mais força.

Em um momento, já na parte final de A Terra Treme, homens que representam os poderosos vão à casa da família de Ntoni reclamar a hipoteca da casa. Batem na porta, mas ninguém responde. Uma vizinha de frente avisa que eles estão ali (‘estão se escondendo”, ela fala, porque os pobres também podem ser malvados). Vemos esse aviso de dentro da casa dessa vizinha, com os homens sendo reenquadrados pela janela de sua casa. Depois, eles conseguem, batendo mais forte, abrir a porta. Vemos, então, a entrada deles na casa da família de Ntoni de dentro de sua casa, pois a irmã abriu a porta de dentro e observa os homens. Quando eles finalmente entram na parte interna da casa, vemos essa entrada do quarto de Cola, pois ele entreabriu sua porta para observar os mesmos homens. Visconti aprendeu com o cinema americano, que por sua vez aprendeu com os europeus, a valorizar janelas e portas como enquadramentos dentro de enquadramentos, reforçando a imagem concentrada dentro deles. Isso seria levado ao extremo em Sedução da Carne, na cena em que Livia vai até o quarto do lado oposto de sua mansão pegar dinheiro para dar ao picareta pelo qual se apaixonou. Em A Terra Treme, essa abertura de portas acontece quando o declínio da família de Cola e Ntoni está em nível máximo. É um momento de incrível poesia e sublimação formal.

É o filme mais neorrealista de Visconti, mas o melodrama ainda está presente. Porque não é necessário evitar o melodrama, nem impedir que atores amadores atuem como se fossem profissionais para alcançar um grande impacto cinematográfico. E o impacto do filme fica conosco para sempre. Principalmente porque há, como escreveu José Manuel Costa, uma síntese da perfeição da mise en scène com a “imperfeição, ou, melhor dizendo, a resistência da matéria local”.

A Terra Treme possui também uma forte ligação com dois outros filmes de Visconti:

a) com Rocco e Seus Irmãos, pela história dos irmãos que procuram resistir à exploração financeira de crápulas e à ameaça de desunião familiar (o que lembra que o longa de 1948 era originalmente uma primeira parte de um projeto documental sobre a vida dos pobres no sul da Itália);

b) com O Leopardo, porque mostra como aquela Sicília, que o príncipe de Salinas dizia ser avessa ao progresso, foi afetada pela burguesia inescrupulosa que tomou as rédeas durante o século 19.

Com isso, os três filmes formam uma trilogia informal sobre a vida no Sul da Itália, sendo que o filme do meio, Rocco, se passa no norte e explicita a necessidade de fuga.

Appunti su un Fatto di Cronaca (1951)

Curta de apenas cinco minutos encomendado por Marco Ferreri e filmado por Visconti como um ensaio sobre composição visual. Houve uma versão de oito minutos que, até onde sei, se perdeu. Talvez isso explique a impressão de incompletude após o término deste curta.

Belíssima

Belíssima

Belíssima (1951)

Na terceira visão, Belíssima revela-se estranhíssimo. O mesmo duelo entre o neorrealismo zavatiniano e o pendor operístico de Visconti que podemos ver em Rocco e Seus Irmãos já se encontra aqui, mas de uma maneira menos resolvida. O resultado é um filme um tanto esquizofrênico, sem deixar de ser belo. Pudera, com duas enormes forças como as de Visconti e Anna Magnani seria impossível fazer algo ruim.

Alessandro Blasetti atua como ele mesmo, um diretor de cinema à procura de uma menina para um filme. Blasetti, dizem alguns, foi oportunista o suficiente para surfar na onda do neorrealismo no pós-guerra. Mas era um ótimo diretor de melodramas do regime fascista. Este era muito mais aberto para o cinema do que o regime nazista, algo que se pode comprovar com Obsessão, adorado pelo Duce.

A força de Magnani é tamanha que ameaça desequilibrar o filme o tempo todo. Isso pode acontecer com atores como ela, Brando, Bacall, Lancaster. O que me leva a pensar que talvez Visconti tenha se dado tão bem com Lancaster pelo mesmo motivo que soube usar o talento de Magnani. Também nos momentos mais explosivos e exagerados desses atores, Visconti os aproveita habilmente em favor do filme.

Em comum com Obsessão, principalmente, mas também com A Terra Treme, está o retrato sem concessões do humano, com todos os seus podres se revelando como forma de sobrevivência. Mas é um filme que incomoda pela maneira como mostra com naturalidade um marido bater em sua esposa, e esse ato ser tomado também como natural. É estranho ver Magnani, muito mais forte, espiritualmente, que o ator que faz seu marido Spartaco (Gastone Renzelli), ceder a essa espécie de normalidade na casa (“pode me bater, desta vez eu mereço”), ao que ele responde com carinho, para depois voltar a ameaçá-la (“olha que eu te bato mesmo, hein”) após ela ter falado mais alguma coisa. É de conhecimento geral que Visconti era duro com suas atrizes, mas colocar Magnani num papel desses, submisso a um homem grosseiro e fraco, é um tanto estranho. A crítica está por toda a parte nos filmes de Visconti, então convém deixar a dúvida se esse momento final também não estaria nessa chave crítica. O incômodo, contudo, persiste, principalmente porque nunca poderemos saber ao certo se há crítica, ou se é possível entender uma crítica ali, mesmo que à revelia do diretor. A se notar que Mariarosaria Fabris nada escreve sobre isso no catálogo Luchino Visconti editado em 2002.

Anna Magnani – episódio de Nós, as Mulheres (Siamo Donne, 1953)

Quatro grandes atrizes italianas merecem um episódio dirigido por quatro diretores diferentes neste projeto de Cesare Zavatini, roteirista e mentor conceitual do neorrealismo, pensado para desglamourizar as estrelas de cinema mostrando-as em sua intimidade.

Ingrid Bergman é filmada por Rossellini, Isa Miranda por Luigi Zampa, Alida Valli por Gianni Franciolini, Magnani por Visconti, com um prólogo, dirigido por Alfredo Guarini, mostrando a seleção de atrizes coadjuvantes para os episódios. Curiosamente, os cinco diretores começaram dentro do regime fascista, sendo que deles apenas Luchino Visconti teve grandes dificuldades de ter projetos aprovados no início (talvez por ser muito próximo do Partido Comunista italiano).

O melhor episódio, a meu ver, é o de Franciolini, curiosamente o que Trigueirinho Neto chamou de mais insignificante (está no catálogo de 2002). Os mais fracos são os de Rossellini e Visconti. Por que isso acontece é um mistério. Rossellini por vezes vai bem em filmes de episódio. Visconti, por outro lado, geralmente é burocrático.

Sedução da Carne

Sedução da Carne

Sedução da Carne (Senso, 1954)

Aqui nasce o Visconti operístico que se tornaria tão amado por cinéfilos, por vezes injustamente eclipsando sua faceta neorrealista, sempre existente na procura por detalhes que fortaleçam uma relação com a realidade (suores e terras nos rostos, figurinos, preferência por locações).

Seu primeiro filme em cores, primeiro drama histórico, único de seus longas com a grande estrela Alida Valli, Sedução da Carne é também um ensaio para o ainda mais ambicioso O Leopardo. Ambos têm como pano de fundo a unificação italiana e mostram o abismo que existe entre classes sociais distintas, a burguesia ascendente e a nobreza decadente (Visconti, filho de pai nobre e mãe burguesa, sentia-se muito bem entre essas classes).

Desde que a Condessa Livia (Valli) encontra pela primeira vez o oficial Franz Mahler (Farley Granger) temos vontade de avisá-la: “não vá por essa estrada, minha cara, eis um cafajeste sem caráter”, impressão reforçada pelos parcos talentos de Granger. O que fica claro ao espectador, contudo, não é perceptível a uma pessoa apaixonada. Eis a crueldade de Visconti.

Livre do neorrealismo até certo ponto (Senso é todo filmado em locações), Visconti pode se exercitar naquele que é seu filme mais operísticamente melodramático. É também, e disparado, seu filme mais caro até então, com uma fidedigna reconstituição de época, praxe em seus trabalhos, e muita mobilidade da câmera (a escola Jean Renoir, onde aprendeu muita coisa sobre cinema).

Livia abre as portas da casa (e de seu coração, definitivamente) para Franz, na cena mais emblemática do filme, quando ele a convence a custear o suborno de um médico para que ele seja declarado inválido e obtenha a dispensa no exército. Livia sai da sala e vai, literalmente, abrindo as portas até uma outra sala, do outro lado do casarão, onde estão escondidas as economias que iriam custear o grupo unificador de seu primo.

Fecho, então, com as palavras de João Bénard da Costa:

“Entre o ponto limite das encenações propostas pelos autores do Método e o início da revolução operática da era Callas, ficou, como ponto de confluência e como ponto de divergência, este filme chamado Senso. Filme que tanto representa o apogeu de uma certa ideia de “mise-en-scène”, como o ponto de partida para a desconstrução dela em que, de resto, ainda não se avançou muito mais do que tudo que está nos dez minutos iniciais no La Fenice ou nos minutos que decorrem entre Farley Granger falar a Alida valli dos 3.000 florins e esta lhos trazer. Depois de atravessar, correndo, as sete portas de toda a história da perspectiva e da humana perdição nos meandros dela.”

Noites Brancas

Noites Brancas

Noites Brancas (Le Notte Biancchi, 1957)

Nesta adaptação de Dostoievski, Mastroianni é o homem que persegue um cachorro que só lhe dá bola na hora que ele desiste para perseguir Maria Schell, que só lhe dá bola quando a fábula que inventou para si a partir de um encontro real se encerra num inesperado final feliz com o retorno de Jean Marais. Assim, Mastroianni, abandonado, reencontra o fiel cachorro branco que ele esnobou no começo, depois de ser esbobado, e parece condenado a viver só, por acreditar em contos de fada e não atender aos chamados da carne que lhe aparecem durante o percurso.

Noites Brancas, anteriormente intitulado, no Brasil, Um Rosto na Noite, é uma fábula. Faz sentido que Visconti tenha reconstruído uma Livorno expressionista em estúdio e tenha contado com a genialidade do ainda jovem Giuseppe Rotunno, que pode, então, mostrar seus dons na direção de fotografia.

Uma resposta a Sedução da Carne, diz o crítico Lino Miccichè nos extras do DVD. No lugar do painel histórico realista em cores, o intimismo artificial em preto e branco. O denominador comum de ambos os filmes é o melodrama, ainda mais exacerbado pela música de Nino Rotta em Noites Brancas e pela neblina conseguida com cortinas no teatro que serviu como cenário para todo o filme. E pelo choro de Mastroianni, antítese completa dos homens viscontinianos até então. O que não o impede de ser bruto como os de antes, na cena em que rejeita a prostituta interpretada por Carla Calamai (de Obsessão). No fundo, um filme tão desconcertante quanto belo.

Rocco e Seus Irmãos

Rocco e Seus Irmãos

Rocco e Seus Irmãos (Rocco i suo Fratelli, 1960)

Entre 1954 e 1955, logo após terminadas as filmagens de Sedução da Carne, Visconti encenou óperas que catapultaram Maria Callas a uma constelação raramente atingida. Visconti, apaixonado por óperas, desejava aproximar essa arte do cinema sem abrir mão de sua procura por realismo. Fez isso, de certo modo, nos longas anteriores. Mas é em Rocco e Seus Irmãos que consegue fundir um ao outro de forma a torná-los inseparáveis.

Assim, ao fundo neorrealista – família do sul pobre e rural vai tentar melhorar de vida no norte industrializado – Visconti acrescenta o tom operístico, melodramático, folhetinesco (a admiração de Visconti por Balzac era notória), que burilou com tanto esmero nos anos anteriores – família é abalada pela tragédia e os irmãos seguem caminhos diferentes. De Lucânia aos condomínios da periferia de Milão, onde são confinados os emigrantes, vão Rocco e seus familiares.

Personagem trágico, Simone, o segundo filho, é sempre perdoado por Rocco/Cristo, o terceiro filho, enquanto o quarto filho, Ciro, representa a consciência crítica (segundo Glauber Rocha, o próprio Visconti). Outra personagem trágica: Nadja, a prostituta vivida por Annie Girardot, cujo assassinato é um dos inúmeros pontos fortes do longa e é sem dúvida o ponto máximo do projeto de união ópera-filme de Visconti.

O filme é dividido em cinco episódios, respeitando a hierarquia, do primogênito ao caçula, entre os cinco irmãos. Cada irmão é “apresentado”, ou destacado, de um modo especial, contextualizando suas posições dentro do drama: a) Vincenzo é visto com Claudia Cardinale, sua noiva, e a família dela, indicando nele uma capacidade de adaptação (foi antes para Milão); b) Simoni é visto com a prostituta Nadja, que Vincenzo levou à casa anteriormente, despertando olhares de tensão sexual dos irmãos. Isso já o une a ela, antecipando a ligação trágica que eles terão no filme; c) a legenda que destaca Rocco surge enquanto ele está no serviço militar, no momento em que ele recebe uma carta da mãe. Isso indica uma forte ligação com a família, a perspectiva conciliadora do irmão que está bem no meio da hierarquia; d) Ciro surge mascarado no episódio dele, com uma namorada burguesa e sendo aprovado pelo pai dela. Estamos no carnaval, o que de alguma forma o liga a uma juventude festiva, antecipando o “cada um por si” que vingaria na década de 70; e) o episódio de Luca começa com a família comemorando a vitória de Rocco, agora um boxeador de sucesso (mas condenado ao boxe, para salvar Simoni das dívidas).

Fácil encontrar defeitos em Rocco, o filme, como é fácil sentirmos raiva da passividade cristã de Rocco, o personagem de Alain Delon. Mas os exageros são todos justificáveis num mundo em que a mise en scène domina. O erro, aí, é cobrar de Visconti uma fidelidade ao neorrealismo, quando o neorrealismo é só um ponto de partida prontamente abandonado em favor do operístico, do exacerbado, do espírito mais apaixonado do sul da Itália que não abandona esses moços na subida para o norte.

Os paralelismos enriquecem o filme: Rocco começa a namorar Nadja no mesmo momento em que seu irmão perde a luta de boxe; Rocco é visto ganhando a luta, enquanto Nadja e Simoni tem um último e fatal encontro, numa montagem paralela de grande impacto.

Rocco e seus Irmãos é um filme sem igual, impossível de ser imitado.

O Trabalho – episódio de Bocc accio 70 (Il Lavoro, 1962)

Burocrático talvez não seja uma boa palavra, mas é certo que o Visconti dos episódios pode ser comparado apenas com O Estrangeiro, nunca com um de seus outros filmes. O Trabalho mostra Romy Schneider e Tomas Milian como um casal movido mais pelo negócio e pela manipulação recíproca do que pelo amor. Os viscontinianos Paolo Stoppa e Romolo Valli marcam presença, mas o filme demora demais para chegar ao final de grande impacto. O melhor episódio desse longa coletivo é o de Fellini, As Tentações do Sr. Antonio.

O Leopardo

O Leopardo

O Leopardo (Il Gattopardo, 1963)

Visconti é o outro lado da moeda do Príncipe Salinas. Filho de um aristocrata com uma burguesa, Visconti tem um lado na toga, outra no mundano. Fabrizio, o príncipe vivido por Burt Lancaster, é o nobre que vai a um prostíbulo, é o homem que não acredita e não confia nos burgueses, mas apoia a revolução promovida por eles. Sabe que a Sicilia é terra de conservadores, de um povo que não aceita mudanças. No longo diálogo com o emissário do governo de Turim e a recusa a uma vaga no senado, a explicação: a vista é maravilhosa justamente porque as estradas de acesso são ruins. Uma coisa é derivada da outra. O elogio do rústico, da alma siciliana, é o que faz Fabrizio. Nada mais distante de Visconti, aristocrata do norte, mas ao mesmo tempo, nada mais próximo, em espírito.

Ambos são livres para ações que aparentemente não são de fácil compreensão. Em um flashback de O Leopardo, dois oficiais (interpretados por Giulliano Gemma e Terence Hill) acompanhados de Tancredi (Alain Delon) vão ao castelo do Príncipe para ver os afrescos. Este os recebe com educação, mas em momento algum o vemos em cena. Só ouvimos sua voz (ou seja, a voz de Burt Lancaster dublado). Tancredi observa, olhando para o público, que um dos oficiais, contrariando a norma de Garibaldi, trata o príncipe com um “excelência”. Olhando para o público? A que se deve essa ousadia aparentemente inconsequente de Visconti, em dissonância com o restante do filme? A essa liberdade que só conquistam os autores que nada mais precisam provar.

Na longa e antológica cena do baile, Tancredi, que nos é apresentado, no início, como um reflexo – uma continuação – do seu tio príncipe, com seu rosto enquadrado pelo pequeno espelho onde o príncipe faz a barba, cede ao desejo de Angelica (Claudia Cardinale): dançar com o príncipe. O ciúme de Tancredi é válido. Se há um rival à altura de sua beleza, este é seu tio. Um homem de meia idade incrivelmente charmoso e galanteador. Cardinale, Delon e Lancaster formam um trio de belezas da natureza em flertes na bela e solar Sicilia.

Visconti é o diretor do realismo, da poeira das estradas cobrindo os rostos dos nobres, do suor escorrendo pelo rosto, das latrinas enfileiradas num quartinho ligado ao banheiro. É também o esteta, acusado tantas vezes, estupidamente, de formalismo (um diretor assim, hoje, por ser antigo, é respeitado, mas seria ao mesmo tempo impensável). O Leopardo é o filme em que esses dois lados se encontram à perfeição.

No final, após um breve poema dirigido às estrelas, Fabrizio se encaminha para uma ruela escura, simbolizando o fim de sua laia (não de sua vida, apesar de seu sentimento de estar próximo da morte). Morte simbólica, claro, de todo um estado de ser. Se as coisas mudam para continuarem as mesmas (lema que ele aprendeu com Tancredi), as mudanças trazem vítimas, e o príncipe sabe que ele é uma vítima.

Vagas Estrelas da Ursa

Vagas Estrelas da Ursa

Vagas Estrelas da Ursa (1965)

Aqui Visconti tenta novos ares. Sabia que O Leopardo era insuperável e preferiu se renovar. Brinca de cinema moderno (não que seus filmes anteriores não fossem, ao mesmo tempo, o esplendor do clássico e o furor do moderno). Câmera solta, movimentos bruscos, zooms invasivos, aparência suja, como um A Terra Treme mais intimista, o contrário da opulência impressionante de O Leopardo, quase uma negação de seu reconhecido barroquismo. A direção de fotografia de Armando Nannuzi acentua o ruído onipresente na imagem e seu aspecto de filme quase amador, como se estivesse registrando uma família dilacerada de seu interior.

Vagas Estrelas da Ursa é o primeiro filme de uma transição que busca continuar o tema da morte e da decadência aprofundado em O Leopardo e preparar o terreno para a impressionante sequência de longas que realizaria nos anos 1970, a partir de Morte em Veneza.

A frustração e o incesto voltarão com força em Os Deuses Malditos. Em Vagas temos um Jean Sorel tão doentio quanto os personagens que Helmut Berger interpretará em filmes seguintes: o herdeiro problemático de Os Deuses Malditos e o rei louco Ludwig).

A Bruxa Queimada Viva – episódio de As Bruxas (La Strega Bruciata Viva – Le Streghe, 1967)

Cinco episódios com o protagonismo de Silvana Mangano, então no auge de sua popularidade. O melhor, como sempre nesse tipo de filme, é o de Pasolini, A Terra Vista da Lua, com Totó e Ninetto Davoli. O de Visconti é o primeiro. Apesar de cansativo, porque é disparado o mais longo dos episódios, com quase 40 minutos, é grave e bem crítico, como tudo que Visconti fez. Mangano interpreta a si mesma, ou seja, uma grande estrela de cinema cercada de frivolidades e falsidades, neurótica e paranóica, impossibilitada de amar verdadeiramente alguém. Visconti mostra muito claramente que a fama a aprisiona, e talvez sua única cúmplice seja a grande amiga Annie Girardot (mais uma vez estupenda). A música que Mangano dança a certa altura é o principal tema de todo o filme, e está na divertida abertura com os créditos, em forma de desenho animado.

 

O Estrangeiro

O Estrangeiro

O Estrangeiro (1967)

Projeto fracassado, em termos. Visconti queria transpor a narrativa de Camus para os anos 60, colocando a Guerra da Argélia no jogo. A viúva do escritor não deixou mexer tanto no original (malditos herdeiros) e Visconti se desinteressou totalmente pelo filme. Um desinteresse que se faz notar em vários momentos. Mas existem duas cenas de exceção: o velório da mãe (mais impactante no livro, mas ainda impactante no filme) e o diálogo com o padre no final, na prisão escura. Mastroianni parece deslocado no papel. A operação de torná-lo um homem frágil, muito feminino, tinha dado certo em Noites Brancas, mas aqui ficou um tanto caricatural. Até Giuseppe Rotunno, em seu último trabalho com o diretor, parece desinteressado.

 

Deuses Malditos

Deuses Malditos

Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei, 1969)

O caricatural, aliás, não está ausente, pelo contrário, em Os Deuses Malditos, que representa, na carreira de Visconti, um incrível renascimento artístico. Trabalhado numa chave grotesca, até que o grotesco começa a dar lugar ao tirânico e ao tom mais grave, e o filme vira uma descida aos infernos da sociedade alemã durante a ascensão do nazismo. Anatomia do nazismo e de um nazista típico, Martin Von Essenbeck, segundo Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, que destacam a estrutura impecável da obra, construída sobre três blocos, com três celebrações seguidas de mortes trágicas.

Há ligações entre a família retratada por Visconti e uma família real de industriais envolvidos no comércio de armas para o partido nazista, assim como o massacre no hotel é também uma leitura de um massacre real ocorrido no processo de fortalecimento dos nazistas no poder. Esse processo, aliás, é impulsionado pelo personagem mais interessante do filme, que não é Helmut Berger, o panaca útil, mas o de outro Helmut, o Griem, que na pele de Aschenbach, um dos personagens mais manipuladores que se tem notícia.

Existem cenas de pedofilia em que Visconti chega muito perto de um limite do que é possível representar em cinema. Mais do que ele faz na cena em que Helmut Berger seduz uma pequena menina poderia ser caso de cadeia para todos os envolvidos. O resultado, como quase sempre acontece quando um diretor se arrisca a ultrapassar um limite do tolerável ou do bom senso, é sublime, uma cena de grande intensidade. Logo adiante, a menina, abandonada, se enforca, numa cena cruel, impensável no cinema contemporâneo, em que a crueldade geralmente mantém o espectador apaziguado, embora com aquele riso nervoso que o desconcerta – vide o cinema grego dos últimos anos (ver Visconti é também tomar conhecimento de coisas que não se faz mais, porque não se quer e porque não se consegue fazer).

No mais, o texto de Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido presente no catálogo da mostra O Esplendor de Visconti é um desses achados em que a preocupação histórica e sociológica não atrapalham, pelo contrário, enriquecem o entendimento do filme, sem deixar também de levar em conta seus aspectos formais.

Alla Ricerca di Tadzio (1970)

Telefilme para a RAI contando o processo de seleção do ator que interpretaria o adolescente Tadzio, de Morte em Veneza. Precisava ser um ator que unisse uma aparência infantil a uma certa consciência de que já pode despertar paixões. Ou seja, um momento específico, entre os 12 e os 14 anos, que varia de pessoa para pessoa. Interessante de se ver, mas não entendo por que é geralmente colocado dentro da filmografia de Visconti. Parece mais um apêndice de Morte em Veneza, o que hoje seria chamado de extra de DVD.

Morte em Veneza

Morte em Veneza

Morte em Veneza (Death in Venice, 1971)

O navio chegando no Lido ao som do “Adagietto” da 5ª Sinfonia de Mahler, trazendo um Aschenbach debilitado, com ar envelhecido, para seu leito de morte (a praia de Veneza), é uma imagem que não se esquece. Depois, é a segunda parte da trilogia alemã, e novamente um personagem chamado Aschenbach, desta vez um protagonista de fato.

Os espelhamentos são frequentes em Morte em Veneza. O mais óbvio é entre o protagonista, um compositor, e Gustav Mahler. Mas existe um mais belo. A prostituta que ele visita em dado momento tem o mesmo nome do barco que o leva a Veneza: Esmeralda. Os outros espelhamentos são menos visíveis, mas não menos importantes: a brancura de Tadzio com o remédio branco que as autoridades passam em toda a cidade e depois com a maquiagem branca no rosto de Aschenbach. A paixão por Tadzio como forma de retomar sua paixão pela música, abalada com um recente fracasso. Os artistas mambembes e decadentes que se apresentam anunciando a derrocada do próprio Aschenbach, e também a epidemia atingindo Veneza em cheio. A dureza com que Aschenbach trata os atendentes (do hotel, da ferroviária) e a dureza com que é tratado pelo amigo/rival/crítico nas discussões sobre o que representam a arte e a beleza.

Gilda de Mello e Souza confessou seu incômodo em ver Visconti projetado num personagem que definha aos nossos olhos, com aquela maquiagem pesada escorrendo, Visconti derretendo. Ela tem razão, mas parte da beleza do filme reside nesse desnudamento, auxiliado por uma interpretação impécável de Dirk Bogarde (que era novo para o personagem, mas logo esquecemos disso).

Ludwig

Ludwig

Ludwig (1973)

Vinte anos após a descoberta de Ludwig, já em sua versão restaurada e póstuma, com quatro horas de duração, a impressão é de um filme muito mais tortuoso e arriscado do que me parecia. Visconti, aparentemente, queria que seu filme tivesse um aspecto mais aberto, com uma estrutura coesa, mas cheia de passagens secretas. Algo como um Rossellini banhado pelo operístico, não muito distante, contudo, de A Tomada do Poder por Luis XIV.

Após Sedução da Carne, não o melhor, mas seu filme mais perfeitamente estruturado, Visconti demonstrava preferência por estruturas abertas a digressões e outras ousadias inventivas, como aquela apontada em O Leopardo, em que o príncipe só aparece com sua voz, mas todos o veem em cena, menos o espectador. Essas maravilhosas ousadias passam frequentemente como erros, caso apareçam em filmes de diretores menos talentosos. Em Visconti, são a marca de um artista que já atingiu um status em que ele pode fazer de tudo, com liberdade, sem precisar provar nada para ninguém, como no interlúdio mágico com Wyatt Earp em Crepúsculo de uma Raça, penúltimo filme de John Ford.

A decadência do rei louco da Baviera é tão surpreendente e dolorida de se ver quanto a de Aschenbach em Morte em Veneza. E Romy Schneider percebe essa decadência em sua nova encarnação da imperatriz Sissi – ela só aceitou voltar ao papel porque o retrato era mais cínico, distante da mocinha romântica dos filmes de Ernst Marischka (que um grande amigo falecido defendia apaixonadamente). A cena em que Sissi não aguenta mais fingir e se põe a rir do luxo desmedido de uma sala em um dos castelos é exemplar da maneira como a imperatriz é tratada com maior densidade dramática por Visconti.

A relação de Ludwig com o compositor Richard Wagner é um dos maiores exemplos de como Visconti envolve todo o filme num tom de crítica. Os comentários de personagens que testemunharam a decadência do rei louco aparecem com sobriedade, os atores olhando para a câmera, como num inquérito, e falando de como o rei estava sendo manipulado. Essa estrutura, inteligentemenete, persiste durante todo o filme, mesmo depois da morte de Wagner (obviamente sentida por Ludwig de tal modo que não é difícil apontar como o momento em que a descida ao inferno é acelerada).

E por mais que seja invasivo explorar a vida pessoal dos artistas, foi destacada por vários críticos a projeção da relação entre Visconti e Helmut Berger na relação entre Ludwig e o jovem ator convidado a conhecer um de seus castelos, mas que se cansa porque o rei queria apenas o ator, não a pessoa. É um episódio razoavelmente pequeno dentro de um filme de quatro horas, mas é ele que divide o filme, quase simetricamente, entre a megalomania de Ludwig e sua posterior decadência.

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Violência e Paixão

Violência e Paixão (Gruppo di Famiglia in un Interno, 1974)

Burt Lancaster volta a trabalhar com o diretor responsável por sua melhor interpretação no cinema (e prova de que a dublagem, desde que bem realizada, pode tudo, menos atrapalhar a arte de uma grande atuação). Ele é o professor solitário que, por muita insistência, aceita alugar o apartamento que tem no andar de cima para uma família de malucos. Helmut Berger é o amante da matriarca (Silvana Mangano), mas que também dorme com a filha dela, uma moça moderninha, mais aberta em relação à vida, e com o namorado desta, um moço meio perdido entre a submissão familiar e a submissão aos costumes de seu tempo. Lancaster olha para eles com desprezo e ternura que se alternam, e sente uma atração dúbia por Helmut Berger. Tanto de pai para filho quanto de Aschenbach para Tadzio. Neste último caso a atração não está apenas na esfera platônica, embora o corpo jovem de Berger pareça inacessível para ele, talvez até pela relação paternal (num jogo de ambiguidades que Visconti sempre trabalhou maravilhosamente bem).

De todos os encontros com a morte nos filmes de Visconti, em Violência e Paixão é onde se manifesta com a maior tranquilidade, como se o professor buscasse um sono sereno e definitivo e esperasse, todas as suas noites, pelos passos que ouviria do andar de cima. Não os passos dos vizinhos barulhentos, mas os passos da própria morte, segundo a história que ele mesmo narra a certa altura. Entre os quadros e as pessoas, o professor finalmente escolhe as pessoas. Em tempo de morrer tendo novamente exercido o papel de pai e vendo renascida uma certa pulsão de vida.

De certo modo, como em O Leopardo, Visconti volta a narrar a substituição de uma classe pela outra. Neste caso, é a morte de uma aristocracia autoindulgente e sua substituição pelos novos ricos de comportamento ruidoso, absorvidos que são pela frivolidade dos novos tempos (a festa apocaliptica que vem com o fracasso das utopias sessentistas). Como o Príncipe de Salinas do outro filme, o professor tem plena consciência de ser uma carcassa da humanidade, pronto para dar lugar a jovens muito mais preparados para a vida em sociedade do que ele, ainda que estes também tenham seus percalços (quem não os tem?).

O Inocente

O Inocente

O Inocente (L’Innocente, 1976)

A imagem mais marcante de O Inocente é recorrente: Giancarlo Giannini com os olhos marejados de lágrimas. Não dá para pensar que foi outra coisa que não uma intenção deliberada de mostrar um personagem, Tullio Hermil, em seu limite, num limbo entre as convenções de uma sociedade conservadora do século 19 e a rigidez moral de suas convicções no campo amoroso (“eu tenho uma amante, minha esposa também tem o direito de ter”).

Acontece que o amante da esposa, num adultério que dura apenas uma manhã, faz renascer em Giannini uma atração sexual pela esposa que ele julgava perdido. E ele passa a tratá-la como uma deusa, numa ritualização do sexo, um verdadeiro culto ao corpo que até então ele desprezava (um erotismo nunca antes visto na obra de Visconti, com a exceção, abalada pelos costumes da época, de Sedução da Carne, título brasileiro bem pensado para um filme intensamente erótico). Visconti embaralha as coisas e mostra um olhar de Giannini para o amante que é um misto de ódio e atração física.

Mais uma vez o encontro com a morte é inevitável. A cena é forte. O tiro é apenas ouvido, de um cômodo à parte de sua casa [agradeço a Márcia Schmidt pela correção], por sua amante Jennifer O’Neill. Tullio Hermil não está mais entre nós. Sua morte espelha a morte de Visconti, explicitando uma relação entre o diretor e seus protagonistas, sobretudo os da reta final de sua carreira, de Morte em Veneza em diante.

Visconti filmou tudo em cadeira de rodas, terrivelmente debilitado e consumido, e não viu sua obra derradeira terminada. O que não enfraquece em nada sua imponente beleza, auxiliada, mais uma vez, pela deslumbrante fotografia de Pasqualino De Santis.

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