Ano VII

Glauber e Visconti

segunda-feira out 17, 2016
Glauber e Visconti, em Cannes.

Glauber e Visconti, em Cannes.

Luchino Visconti por Glauber Rocha

Por Rodrigo Cássio Oliveira

A obra de Glauber Rocha tornou-se conhecida como exemplo de um cinema barroco. De que modo tal classificação se justifica no contexto do cinema moderno que emergiu nos anos 1960? Em boa medida, este debate singular sobre o barroquismo no cinema esteve ligado, naquele momento, a certa recepção do neorrealismo italiano no Brasil, o que posicionou Glauber Rocha como um intérprete e apropriador especialmente profícuo dessa tendência. Um dado curioso desse processo de assimilação do cinema italiano está na maneira como Glauber reagiu ao cinema de Luchino Visconti, quando escrevia críticas, no começo de sua carreira.

Uma boa amostra para pensar a questão acima está em três textos reunidos em O Século do Cinema. O primeiro deles, intitulado O Barroco Viscontiano, foi publicado em 1962 no Diário de Notícias, jornal de Salvador, e já constava na primeira edição do livro, publicada pouco antes do falecimento do artista. Os demais, Neo-Realismo: Inspiração Falida e Concluindo sobre o Neo-Realismo, apareceram somente na reedição lançada pela editora Cosac Naify em 2006. São dois textos de 1958 que se complementam, haja vista o conteúdo e as indicações do próprio Glauber, embora apenas o primeiro tenha vindo a público, no Suplemento Literário Sete Dias do jornal Vida Capixaba, em Vitória.

O problema central destes artigos é o da relação entre o princípio do realismo cinematográfico e as tendências modernizantes que se manifestavam nos anos 1960 pelas realizações do jovem cinema europeu. No texto de 1962, que comentaremos aqui, Glauber Rocha se apresenta como um analista interessado em enfrentar este problema a partir do entendimento de que Rocco e seus Irmãos (1960) é um filme moderno e, ao mesmo tempo, um filme realista. Por esse motivo, Visconti contrariaria a ideia vulgar, motivada por apreciações ligeiras, segundo a qual as formas do discurso cinematográfico clássico seriam estanques e, por isso, não atualizáveis por uma vontade expressiva que as modernizasse.

Para Glauber, Rocco seria definido pela presença de uma sedução barroca que atesta a possibilidade do realismo moderno. A forma convencional da ficção, transposta da literatura para o cinema, resultaria em experimentos capazes de dar continuidade aos projetos estéticos de romancistas como Dostoiévski, Stendhal ou Proust. Que Glauber Rocha visse nessa liberdade do barroco realista de Visconti elementos muito próximos de uma sensualidade latina é um indicativo muito interessante para a avaliação de como o seu próprio estilo se consolidou no decorrer dos anos, uma vez que, em 1962, data da redação de O Barroco Viscontiano, o barroquismo ainda não era um aspecto destacado nos filmes que o diretor brasileiro já tinha realizado.

Rocco teria dado ao cinema a dimensão que o romance possuía na literatura, colocando-se no mesmo patamar de Hiroshima mon Amour. O filme de Alain Resnais era amplamente comentado como um feito inédito de modernização da temporalidade dramática no cinema narrativo. Para o olhar do crítico Glauber, Hiroshima seria um filme novo no cinema, embora não fosse novo para o cinema: “O romance, por mais tradicional que seja, nunca sofreu a cronologia angustiante do cinema. Quando Resnais rompeu com o tempo cinematográfico vigente, estava apenas fazendo o que o romance já fez desde Proust”. É significativo que a postura de Glauber se justifique com base na relativa novidade que o cinema ainda representava para o público e para a crítica de arte. Ambos, impactados pelo frescor da condição de espectadores, acabariam se entusiasmando com novidades que se apresentavam, por um lado, como consequência de experiências ficcionais anteriores, e, por outro, como resultados de um particular desespero da forma narrativa no filme.

Na comparação com Hiroshima, Rocco revelaria a sua estratégia de inserção no cinema moderno sem abandonar, pelo menos no plano da aparência, as convenções realistas: “se Hiroshima vale também porque é um filme que traz para o cinema o novo processo narrativo – um método de conhecimento humano – Rocco vale porque desencadeia o conhecimento na linguagem aparentemente tradicional – destruindo ao mesmo tempo a linha comportada da velha cronologia cinematográfica, impondo a linha sinuosa do romance à realização da obra”. O realismo de Visconti significaria não quebrar o tempo real, mas sim o tempo dramático do filme narrativo, “não sujeitando a forma a uma experiência, mas levando-a como se leva um elemento disciplinado para conhecer sem trapacear”.

Por esse motivo, para Glauber, Rocco estaria um passo além dos filmes anteriores de Visconti, Senso, de 1954, e Le Notti Bianche, de 1957. Enquanto ambos mantinham uma forma operística clássica, o filme de 1960 sobre os cinco irmãos Parondi teria feito a passagem para o romance moderno da grandeza (e não da experiência formal), espelhando-se tanto em Dostoiévski (Os Irmãos Karamazov) como em Stendhal, ou na mitologia bíblica (Abel e Caim, José e seus irmãos etc.), ressaltando o aspecto trágico de todos estes exemplos.

Embora em 1962 ainda fosse pouco possível situar a obra de Glauber Rocha na discussão conjunta dos conceitos de barroco, modernidade e identidade cultural latino-americana, o seu artigo sobre o barroquismo de Visconti chega a surpreender o leitor interessado nesse tema, uma vez que o elogio do diretor brasileiro ao cineasta italiano culmina na observação de que a narrativa “cinematográfica” (as aspas são de Glauber) evolui em Rocco a partir da referência ao documentário neorrealista, tendo como ponto de chegada a modulação de certo expressionismo latino – um desenvolvimento que teria como melhores exemplos as cenas do casamento do personagem Vincenzo, no primeiro caso, e do choro desmedido de Rocco e Simone sobre a cama, no segundo.

Por isso, Glauber considera que “Visconti acrescenta para o cinema latino a condição específica, atinge a eztétyka de uma raça e de uma cultura: a explosão passional que se transforma em objeto, não porque estouram os planos gerais sonoros, mas porque, recusando a lógica acadêmica do sentimento na forma exata, ele comenta estas formas e as critica ao mesmo tempo no virtuosismo de sua arte, este sensualismo latino das artes e dos sentimentos”. Visconti teria ido ao encontro dos mesmos princípios que caracterizam o barroquismo latino como um pêndulo entre a paixão e a sensualidade, algo que o própio Glauber faria a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol, e, sobretudo, Terra em Transe.

Em Rocco e Seus Irmãos, a formulação propriamente artística do princípio barroquista implicaria na superação da procura por uma forma exata para o estilo cinematográfico. Poderíamos compreender essa expressão de Glauber como um passo além da experiência vanguardista de O Pátio, realizado pouco tempo antes da redação de O Barroco Viscontiano. Ainda mais importante, todavia, é o acesso que este texto de 1962 encaminha à oposição entre formalismo e realismo, muito presente nos debates sobre o sentido político do neorrealismo italiano.

Sobre isso, a reflexão de Glauber sublinha a consciência de uma “revolução” formal que o projeto viscontiano teria apreendido. A necessidade dessa revolução seria, com efeito, a pedra-de-toque do cinema glauberiano. Não é por outro motivo que o brasileiro afirma que “a obra cinematográfica de Visconti, em Rocco, já pode encontrar, realizada, a condição de retrato da cultura latina”. E mais, mencionando o primeiro filme de Visconti, de 1943, Glauber pontua: “o que volta de essencialmente barroco em Rocco é a determinante da evolução histórico-cultural do Neorrealismo: de Obsessão a Rocco, a sedução da plástica evolui, mas é no barroco que se encontram as características do retrato latino veritas”.

É muito sugestiva a ideia de que o barroco, em Visconti, é um elemento que volta, definindo a evolução do projeto neorrealista desde que ele apareceu na particular plasticidade do movimento italiano. Essa evolução ocorre, também, no adensamento do discurso glauberiano em seus ensaios-manifestos, desde o interesse inicial pelo realismo em um sentido mais reativo (que deu base ao cinema novo, contra as chanchadas e os grandes estúdios) até as alegorias difusas e complexas que o seu discurso nos anos 1970 vinculou aos ideais da persuasão e do arrebatamento, dois efeitos típicos da relação que a arte barroca constrói com o seu público.

No cinema de Glauber Rocha, nunca foi o caso de se abandonar necessariamente uma forma realista, mas sim de injetar realismo no transe que o barroco pode promover pelas qualidades intrínsecas do estilo. Por esse caminho, Glauber hipotetizou o cinema revolucionário que deveria realizar a identidade cultural de um mundo colonizado, fortalecendo o sentido mítico das proposições estéticas que Luchino Visconti já havia vislumbrado.

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