Ano VII

Belíssima

segunda-feira out 17, 2016

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Belíssima (Bellissima, 1952), de Luchino Visconti

O cinema tem tudo a ver com as crianças. Quando vemos, em planos bem aproximados, o sorriso e os cachos dourados de Shirley Temple ou as bochechas protuberantes de Jackie Coogan, temos a impressão de que esta arte não existe para outro propósito que não seja o de filmar crianças.

Belíssima traz Anna Magnani no papel de Madalena Cecconi, uma enfermeira de classe média baixa apaixonada pelo cinema hollywoodiano. Quando uma produtora convoca todas as mães de Roma a inscreverem suas filhas na seleção de elenco do próximo filme a ser rodado na Cinecittà, Madalena agarra com todas as forças a oportunidade de transformar sua filha Maria (Tina Apicella) em uma estrela.

Obcecada com a ideia de proporcionar à filha uma vida digna, diferente da sua trajetória como dona-de-casa dependente de Espártaco, o marido (Gastone Renzelli), Madalena ignora os sinais mesmo quando eles tomam a forma de uma atriz fracassada e faminta que lhe invade a casa e lhe toma os ovos crus, alegando que Maria precisa de aulas para que possa representar como uma verdadeira atriz. Mesmo sem dinheiro, a mãe providencia tudo, mas para a menina aquele processo parece cada vez mais penoso e antinatural.

O problema é que cinema não tem nada a ver com crianças. A começar pelo fato de que a baixa estatura delas não permite que compartilhem um plano de meia-figura com atores adultos. Na maior parte das vezes, a representação faz parte do seu dia-a-dia, em meio a brincadeiras, e perde o sentido quando são colocadas diante da câmera para que representem um papel que não lhes diz respeito. A pequena Maria não é diferente: gagueja em seus poucos diálogos e não consegue sequer falar o próprio sobrenome corretamente.

Madalena desejava ela mesma ser atriz e acaba protagonizando a própria comédia. Em uma das cenas memoráveis de Belíssima, uma corriqueira briga entre Madalena e Espártaco chama a atenção das mulheres de todo o prédio. Prontamente elas tomam o lado de Madalena, que grita em profundo sofrimento. Vencido, o marido dá as costas e Madalena imediatamente sorri, aliviada. Tudo aquilo não passava de uma encenação. Um momento que revela a grandeza da atriz Anna Magnani, assim como a cena em que Madalena assiste ao filme que Maria gravara para o teste do elenco e escuta os risos e piadas direcionados à sua filha. A imagem, hoje icônica, é a perfeita representação da desilusão do cinema como fábrica de sonhos, totalmente apoiada nas feições e no olhar expressivo de Magnani. Personagem extremamente forte e marcante, Madalena é o próprio filme. Belíssima jamais seria o mesmo sem Magnani e seus constantes fluxos de consciência, cabendo inclusive uma reflexão sobre o ato de representar: “E o que é representar? Se agora eu acreditasse ser outra, se fingisse sê-lo, estaria representando. Como na canção da borboleta”. E, em seguida, a filha finge ser uma borboleta.

Sim, o cinema tem tudo a ver com as crianças. Especialmente quando elas podem ser elas mesmas: olhando para a câmera, sem dar a mínima importância se isso vai contra a regra da impressão de realidade e da transparência cinematográfica; chorando, de verdade, e chamando pela mãe, a verdadeira; andando desajeitadamente, tropeçando, pois suas pernas são curtas e o andar ainda não tomou jeito; sorrindo, verdadeiramente, ao cruzar o olhar com o de outra criança; ou contracenando de maneira natural e orgânica com uma das maiores atrizes do cinema. É talvez por isso que as crianças combinem tanto com o neorrealismo e com outros cinemas que buscam uma aproximação com o real. E é isso que faz de Belíssima um filme tão bonito em suas próprias contradições.

Beatriz Saldanha

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