Ano VII

49º Festival de Brasília

segunda-feira out 17, 2016

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Balanço do 49º Festival de Brasília, por Sérgio Alpendre

A seleção de 2016 revelou-se muito mais variada do que eu esperava. Houve filmes de todos os tipos, desde o suprassumo do novíssimo até o novelão série C, como também o documentário deslumbrado, a denúncia de um genocídio, a crise de identidade de um índio, o experimentalismo ao deus dará, a rarefação contemplativa e a ode à amizade e à saudade. Bem ou mal, tivemos uma amostra do que anda pela cabeça de nossos cineastas, sejam de que corrente forem, venham de que estados vierem. Essa opção pela diversidade foi a mesma de 2013, quando eu fiz parte do comitê de seleção. A triste nóticia é que há  pouco de cinema além do “fora, Temer” que serviu de mantra para que todos se sentissem unidos nas sessões (é de se esperar o pior quando se precisamos disso para nos sentirmos confortáveis com nossas convicções ideológicas, mas foi o que rolou por aqui).

Em todo e qualquer festival de cinema que cobri, o cinema propriamente dito estava em segundo plano, perdendo para a festa, a despeito da vontade de seus curadores (às vezes por descuido deles). Em Brasília 2016, o cinema ficou em terceiro plano, atrás da festa e do protesto político – sempre válido, mas exagerado dentro de um contexto em que 99% dos presentes tinham a mesma posição política. Se os “fora, Temer” fossem entoados no saguão do Kubitschek Plaza, no meio dos engravatados que circulavam por lá, talvez eu entrasse no coro. Antes e, pasmem, durante as sessões, é coisa de criança travessa, na melhor das hipóteses. O circo foi montado desde as equipes dos filmes, que combinaram de aparecer no palco com camisetas contra o golpe. Até aí tudo bem, se não desse uma ideia incômoda de que a equipe que subisse sem essas camisetas ou não dissesse “fora, Temer” seria hostilizada pelo público. A impressão foi mesmo a de que não seria possível sequer ser selecionado se não deixasse claro, na ficha de inscrição ou de alguma outra forma, a posição política contrária ao novo governo. Quero não acreditar nessa hipótese, mas assim pareceu lá, acompanhando de perto a festa da platéia e das equipes dos filmes. Houve quem preferisse ver os filmes na reprise, no dia seguinte, o que sem dúvida seria uma opção melhor, não fosse a desorganização do festival ou do Cine Liberty Mall, onde rolaram essas sessões (não era garantia alguma que fosse possível ver todos os filmes da competição na reprise; eu mesmo perderia Elon Não Acredita na Morte se optasse por ver no dia seguinte).

Apesar de tudo, a seleção deste ano me pareceu ligeiramente melhor que a do último ano que acompanhei, 2014. Naquela ocasião, uma série de procedimentos de estilo já se revelavam esgotados, o que não impediu que muita gente rebatesse que era minha crítica que tinha procedimentos esgotados. Os filmes, coitadinhos, precisam ser entendidos, relativizados, nunca simplesmente atacados (não se pode atacar os filmes, mas todos podem atacar o crítico). O relativismo funciona aí como o veneno que corroi as entranhas do cinema. O crítico que entenda, ou fique calado para não atrapalhar a festa (como muitos o fazem, ou temperam bem a crítica para atenuar o ataque e “não pegar mal”). Se todo e qualquer filme tiver sua razão de ser, e o papel do crítico não é mais, grosso modo, separar os bons dos maus filmes, para que existe a crítica?

Lembrando Robin Wood (não muito diferente do que Oscar Wilde dizia):

“Eu sou um crítico. Como tal, entendo meu trabalho como totalmente diferente, em muitos aspectos, daquele de teóricos e acadêmicos (apesar de ser frequentemente dependente do trabalho deles). O teórico e o acadêmico estão livres da necessidade de se posicionar intimamente e de maneira pessoal em relação a qualquer trabalho específico; eles podem se esconder por trás de suas teorias e pesquisas, não são obrigados a expor a natureza pessoal de seu trabalho porque trabalham com fatos, ideias abstratas e dados. Todo crítico que é honesto, contudo, é comprometido com a auto exposição, um tipo de strip-tease público: ele (ela) deve deixar claro que qualquer resposta autêntica a uma obra de arte ou entretenimento é baseada não só na obra em si, mas na persona psicológica do crítico, em sua história pessoal, seus valores, preconceitos e obsessões.”

E, principalmente:

“na hierarquia, a crítica ocupa (ou deveria ocupar) a mais alta posição, simplesmente porque o crítico é o único central e explicitamente preocupado com a questão do valor, que é a mais importante, a questão definitiva.”

É por essa cartilha que rezo (nunca a cartilha que inibe hierarquizações e privilegia relativizações, que considera os filmes coitadinhos, cada qual com sua razão de existir). O que sempre leio por aí é que os filmes devem ser entendidos em particular (até aí tudo bem, mas deve-se saber até que ponto isso não pode ser entendido como uma rigidez que impeça voos mais altos, a crítica em si, e aprisiona o texto dentro de uma redoma em que só o filme importa, não o cinema), e em sua relação com a sociedade (no que prefiro substituir por sua relação com a história do cinema, para evitar equívocos e a valoração exclusiva daquilo que estiver de acordo com a minha ideologia, ou a ideologia do crítico). Minha visão do mundo e da sociedade também pode entrar no jogo, mas nunca de forma excludente (“ah, esse diretor é conservador em suas posições políticas, logo, não presta”).

O politizado Festival de Brasília de 2016 mostra caminhos, mas os únicos filmes sólidos da programação, de acordo com minha visão de como eles se inserem na história do cinema, foram os de Vincent Carelli, não exatamente um novato, e Júlio Bressane, veterano que nem compete mais para dar alguma chance aos outros. Vi filmes mais problemáticos num todo, com ideias parcialmente bem resolvidas (como a maioria dos de Tiradentes, mas com menor sucesso) e tramas mal fechadas, ou mal deixadas em aberto. Neste ano, aliás,  não houve tiradentização. Houve, sim, não com as melhores escolhas (ou estamos mal mesmo), um panorama da variedade da produção cinematográfica no Brasil.

A seguir, então, alguns comentários sobre cada longa visto no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Não farei desta vez comentários sobre os curtas. Considerei a competição do formato bem fraca neste ano, e que apenas um deles valia de fato ser comentado, Procura-se Irenice, mas deixarei esse comentário para uma outra ocasião. Estado Itinerante me pareceu mais interessante na primeira vez que o vi. Na revisão já soou um filme que aposta demais no social e de menos numa relação da protagonista com o espaço urbano periférico. Solon é outro que cai na revisão, ainda que seu experimentalismo me interesse mais do que o de outros curtas, e muito mais do que a redução que se fez da afetividade em alguns outros.

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Cinema Novo, de Eryk Rocha

O maior momento do filme de Rocha está numa fala de Joaquim Pedro de Andrade, em que ele realiza um belo exercício de autocrítica. Falando sobre O Padre e a Moça, dizia que o projeto todo, como o anterior Garrincha, o irritava bastante, por uma série de motivos, mas ele não conseguia ficar sem terminá-lo. Alguém imagina essa autocrítica sendo feita por algum diretor brasileiro contemporâneo? A autocrítica foi totalmente banida do cinema atual, e isso não deixa de ser um sinal da falência da crítica e de seus postulados.

(Digressão que se relaciona com a introdução deste balanço: Alguém disse isso, mas com os sinais invertidos: considera-se que os postulados certos devem ser o respeito ao que cada filme nos diz particularmente, que cada filme tem sua razão de ser, sua história, seu valor; tirante o óbvio da formulação, ela representa, no íntimo, uma relativização ultrajante da crítica como a entendo, uma traição aos críticos que mais me influenciaram. Falo em primeira pessoa porque não quero ser dogmático como esse pessoal da relativização, sempre o mais intolerante e dogmático. De resto, algo forte no exercício da crítica como entendo terá sempre esse aspecto dogmático, mas não o é em sua essência).

E assim começa o Festival de Brasília de 2016: mostrando, em um filme que poderia ser melhor, a enorme diferença entre os cineastas de ontem e os de hoje. Não sei se foram escolhidas as melhores falas do Leon Hirszman. Ele era muito inteligente e articulado, mas no filme fala mais de distribuição. Glauber aparece menos do que eu imaginava. Talvez fosse por pudor de Eryk Rocha de mostrar muito seu pai, e se for, é um ponto a favor. Khouri aparece entre eles. Glauber o elogiava no começo (me lembra o Joel Yamaji). As cenas dos filmes antigos fogem um pouco do óbvio, mas em contrapartida há uma certa forçação de barra no entendimento do que era Cinema Novo (ou mesmo uma decorrência do movimento).

Melhor é o longa que João Botelho fez sobre Manoel de Oliveira, com seleções de imagens mais pensada e impactante, que melhor casam com o cinema do homenageado. Tudo bem que fazer isso com um só diretor é mais fácil (como o de Eugenio Puppo sobre Ozualdo Candeias) do que com um movimento inteiro. Mas é evidente que as imagens se juntam meio aleatoriamente no filme de Eryk Rocha, o que prejudica um pouco o conjunto, apesar de ser sempre agradável ver cenas de Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Padre e a Moça, Lira do Delírio ou Vidas Secas.

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Beduíno, de Júlio Bressane

Alessandra Negrini, Fernando Eiras, jogos de amor e sexo e uma representação livre dos diversos passados. Teatro de sombras, nudez, trenzinho eleétrico e uma batalha encenada de modo desconcertante. Composições rigorosas, que permitem desvarios de câmeras tortas e balançantes em momentos chave. Estamos num filme de Júlio Bressane. E num dos melhores que ele fez neste século, ao lado de Filme de Amor e Cleópatra. Bedúino é também uma espécie de súmula. O escritor imagina sua história, e o que vemos são cenas de Memórias de um Estrangulador de Loiras, com Guará cabeludo e perigoso no frio de Londres. O início nos dá uma pista: é como se espiássemos intimidades (do escritor, da musa) pelo buraco da fechadura. Esse efeito não é só uma homenagem ao cinema brasileiro dos anos 70, mas àquele filme de Manoel de Oliveira que João Cesar Monteiro chamou de intensamente erótico: O Passado e o Presente. Não é a primeira vez que Bressane e Oliveira se aproximam (que o digam Os Sermões, Brás Cubas, Cleopatra e A Erva do Rato), e suspeito que não será a última.

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Câmara de Espelhos, de Dea Ferraz

Trancar um monte de homens numa sala não é uma boa ideia. Sabemos o monte de asneira que surgirá daí. Mas o experimento de Dea Ferraz ainda assim surpreende. Nunca imaginamos que a coisa é tão ruim. O que entendemos por folclórico ou coisa de criança babona é muito mais que isso. Muito mais grave. Certo, mas o filme se livra de um problema sério ao explicitar o anúncio feito logo no início. Aqueles homens sabiam que o que eles falavam ia parar num filme. Sabiam que estavam sendo cobaias. Morreram pela boca do mesmo jeito, conscientemente. Claro que um homem não tem muito o que se meter na luta feminista, apesar de poder reconhecer certos exageros. Pior é homem machista que posa de feminista nas redes sociais. É o que mais tem, na verdade. A questão é que, concorde-se ou não com o teor da experiência, é necessário apontar para uma certa engenhosidade na construção do filme. Engenhosidade que se torna mais clara conforme o filme avança e mudam os videos que os homens veem, e mudam os homens (um único se mantém, o espião). Interessante brincadeira formal (“parar de mexer tanto a câmera, deixe-a mais fixa”, ou algo assim), Câmara de Espelhos mostra que é possível pensar em cinema ao fazer denúncia social. Um pouco cansativo acompanhar tantos idiotas falando besteira (é como aquele filme do Coutinho, um punhado de coisas ruins da TV não tem como dar num filme maravilhoso, seria uma negação de seu princípio), e isso pesa após uns quarenta minutos. Sorte que aí o filme já está para terminar. E termina bem, trollando uma fala pretensamente inteligente de um babão.

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Rifle, de Davi Pretto

Rifle dialoga de forma inusitada com Martírio, com o qual nos ocuparemos em seguida. Nos dois filmes é possível ver uma ideia de resistência, e melhor trabalhada do que no badalado e superestimado Aquarius. O tom de Rifle é sempre contemplativo, silencioso, quase sufocante de tanta tensão prestes a explodir. O jovem atira nos carros ameaçadores mas não consegue frear a violenta marcha do capitalismo.

O final, a meu ver, dá uma nova dimensão ao personagem principal e enfraquece todo o conjunto. Era um problema já presente no primeiro longa do diretor, Castanho, o que me pareceu ser uma indecisão de caminhos e focos, que fazia com que aquele filme perdesse parte de seu potencial. Por outro lado, uma propensão animadora à composição é ainda melhor percebida em Rifle. Falta um aprimoramento da estrutura narrativa, para melhor contemplar as possibilidades contemplativas do longa.

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Martírio, de Vincent Carelli (colaboração de Ernesto de Carvalho e Tita)

Por vezes, comparações são inevitáveis. E lá vou eu com mais uma delas. Martírio, de Vincent Carelli, está para a questão indígena como Abolição, de Zózimo Bulbul, estava para a questão do negro. Ambos são longos e didáticos, cheios de pesquisa histórica como base para um arcabouço de fatos e questões, muito bem arquitetados em suas inúmeras frentes de luta, e, sobretudo, são filmes que se posicionam claramente e com firmeza a respeito do assunto. O de Carelli, visto no Festival de Brasília, sobrevive até mesmo às chamadas de ordem no final e às intervenções emotivas do diretor. Em outro filme, é bem provável que elas enfraquecessem o conjunto. Em Martírio, elas o fortalecem. Representam a bomba moral que gostaríamos de soltar na bancada ruralista que tem afundado o Brasil há décadas (não à toa, aquela reunião do final nos remete a coisas muito graves e mesmo monstruosas, mas aquilo também é Brasil, infelizmente).

A estrutura do filme é construída em cima de um vai e vem incessante, possibilitando entendermos a questão dos guarani-kaiowa por vários prismas. Começa em 1988, vai para 2003, volta para os anos 90 e de lá vem para o governo Dilma, acrescentando novos retornos e novas viagens conforme as questões vão surgindo: a Guerra do Paraguai, o SPI, a FUNAI, Getúlio Vargas, a ditadura militar, os ruralistas, o governo petista, os congressitas aliados aos latifundiários, as empresas de segurança, os rituais religiosos, tudo montado de forma a não encontrarmos uma sequência supérflua, uma ponta que termine solta no final.

Se há um senão ao filme é mesmo a presença efusiva e sentimental de Carelli, especialmente no final, quando reconhece o choro e clama por justiça. Mas mesmo isso, difícil de se adequar a uma obra que se preze rigorosa, acaba por se encaixar razoavelmente bem nas duas horas e quarenta minutos de projeçao e fortalece no filme um aspecto de trincheira que combina com tudo que vimos. É como uma quebra que em vez de fragilizar a estrutura a fortalece. Coisa que requer experiência, rigor e uma boa dose de risco.

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O Último Trago, de Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Luiz Pretti

Sempre achei que experimentalismo autoconsciente não é experimentalismo, é uma outra coisa, tão ruim ou pior que o experimentalismo arbitrário, “o que der deu”. É uma coisa calculada demais para ser chamada de experimental, ainda que também envolva risco. Vendo o filme do trio da alumbramento (sem Guto Parente desta vez), isso me ecoou durante bastante tempo. Porque em um pedaço do filme, estamos vendo algo bem interessante. Algo meio Rancho Notorious, disse um velho amigo meu que não é crítico. É por aí. As cenas de cantoria no bar: a disposição dos atores no quadro, a luz burilada de Ivo Lopes Araujo, tudo mostra um esmero de composição que nos convida a conhecer melhor aquelas pessoas. Mas aí o filme vira outra coisa, mais aloprado e viajante, uma viagem que só faz sentido para quem bebeu a mesma água que eles (o filme já iniciara outra coisa, e bem desinteressante, por sinal, o que nos deixa a lamentar que o miolo seja só o miolo).

O medo de colocar os pés no chão faz com que o voo seja mais incerto, hesitante. Não se sabe como aterrissar. O voo que irrompe da normalidade e de um traço mais forte de realismo tende a ser muito mais impactante. Não assumem a representação mais terrena, mais em cima das atrações carnais entre os personagens, nem a porralouquice total, inconsequente e varrida, o experimentalismo real e destinado à glória ou ao fracasso definitivos.

O cinema da alumbramento sempre me interessou e vai continuar me interessando. Mas já está na hora de eles pararem de fazer dois ou três filmes em um, e, pior, um filme brigando com o outro, como numa banda em que todos solam mas ninguém se entende (mais ou menos como a banda de O Monstro, o segundo longa da turma). Talento é evidente que eles têm. Falta direção.

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A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha

Este pertence à velha categoria dos filmes simpáticos, daqueles a que vemos sem muito pesar, apesar de projeções estranhas e gente fazendo sinfonia com sacos de pipoca (a plateia do Liberty Mall é quase tão ruim quanto a do Cine Brasilia). Não me parece um filme valioso o suficiente para ganhar uma competição, mas há muito tempo deixei de me decepcionar com escolhas de um júri.

Duas amigas portuguesas, Francisca, já moradora há um tempo, e Teresa, recém-chegada,  tentam se habituar à vida numa cidade grande brasileira, no caso, Belo Horizonte. Apesar de ter um horizonte mais belo e humano do outro lado do Atlântico, e de morrer de saudades da terra natal, elas de alguma forma se ambientam, fazem amigos, se divertem à beça num pequeno apartamento no centro. Com uma estrutura mais livre, que lembra Cassavetes na inspiração, vemos como os laços de amizade entre elas vão se fortalecendo, apesar de uma série de desencontros (um cachorro aparecer de repente, sem que a hóspede seja consultada, por exemplo, ou um amigo do trabalho ocupar o sofá cama numa madrugada qualquer).

Uma bela cena é aquela em que Francisca vai procurar um disco do Caetano Veloso para presentear Teresa e o dono do sebo lhe apresenta um compacto raro de Jards Macalé, e a música “Soluços” passa a ser trilha sonora para as cenas que se seguem. Pode-se destacar também a tristeza de Teresa ao ver a amiga arrumando as malas para voltar definitivamente a Portugal. Definitivamente? Bom, nem tanto. O bom desse filme é que nada parece definitivo. As amigas estão abertas ao que aparecer, aos sentimentos e impulsos. O filme, de certa forma, também.

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Elon Não Acredita na Morte, de Ricardo Alves Jr.

O troféu de filme mais penoso de se ver no Festival de Brasília vai para este longa mineiro com intermináveis 75 minutos. Nem o momento Contos da Lua Vaga, de forte erotismo (momento Brown Bunny dentro dele), nos salva do tédio absoluto. A câmera seguindo o personagem já virou traço de puro academicismo do cinema autoral. Já era assim no curta anterior do mesmo diretor, o fraco Tremor, do qual este parece até um prolongamento formal. E nunca vi Rômulo Braga tão mal aproveitado. Tudo bem que seu personagem é uma lástima andante, conforme vemos pela sua relação com tudo ao redor. Mas o ator parece não dar conta dessa antipatia, talvez por culpa da direção, talvez por uma inadequação entre ele e o personagem (ou até por uma super-adequação que faz com que o retrato do personagem fique exagerado). O mise en abyme das portas na cena em que ele é demitido é uma das raras vezes em que ele abandona o fluxo para pensar numa composição. Mas o quadro não é bom. O ambiente frio de uma empresa já foi muito explorado pelo cinema brasileiro recente, e é sempre a mesma coisa: um aspecto meio decadentista/oitentista nos móveis, uma cor mais desbotada (ou seria a projeção?), uma impressão geral de lugar que parou no tempo, como uma velha repartição comunista de alguns dos países que formavam a Iugoslávia. O arroto é ainda pior. Não parece uma brincadeira digressiva como as de Eugène Green em A Ponte das Artes (o personagem Guigui, o inominável, seus ruídos estranhos e sua vulgaridade). Parece mais uma tentativa de alívio cômico, o que pode até funcionar dentro de um festival tenso e politizado como o de Brasília neste ano, mas fica forte a impressão de um trecho de um besteirol americano sendo colado a uma narrativa densa e europeizada.

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Antes o Tempo Não Acabava, de Sérgio Andrade e Fabio Baldo

Foi-se o tempo em que tínhamos filmes com a questão indígena que só se justificavam como contrapartida de editais. Na cola da obra-prima Serras da Desordem, muitos foram os jovens diretores que resolveram filmar suas aventuras humanistas (ou oportunistas, não sabemos) para colocar em festivais, sabendo que muitos selecionadores têm medo de recusar filmes de boas causas. Depois de quase uma década sofrendo de maus tratos, em que só o tema de Serras da Desordem influenciou diretores, nunca sua forma, 2016 já viu dois belos filmes sobre os índios: Taego Awa e Martírio. O terceiro ainda não pintou, mas Antes o Tempo Não Acabava não é desprezível.

É uma das raras vezes em que um smartphone não fica ridículo na tela de cinema, e um dos poucos bons usos de fusão no novíssimo cinema brasileiro (o rótulo pegou e está impossível se livrar dele, por culpa dos filmes, mas de novo esse cinema não tem nada): Anderson Martin, índio que pretende virar branco, admira o braço do rio, que logo depois dá lugar a seu enorme rosto, e parte do corpo deitado numa cama. Fusão coppoliana, se quisermos, que remete a O Fundo do Coração. Funciona, apesar de se aproximar de uma breguice sem tamanho, talvez porque seja interessante ver o processo de embranquecimento desse índio e sua impossibilidade de dar as costas às suas origens.

Desconjuntado, sim, como muita gente tem falado. Sua estrutura é frágil, no que é uma das características mais perigosas do novíssimo. Isso tira um pouco a força de algumas belas cenas, mas não invalida a procura por algo belo dentro de uma questão difícil e polêmica (o filme causou alarde entre antropólogos, pelo que entendi, pela bissexualidade do protagonista).

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Vinte Anos, de Alice de Andrade

Documentário que mostra a beleza de Cuba, de sua gente, a aura de um país abalado por um embargo covarde e por uma série de mudanças nos últimos vinte anos.  Ao retomar contato com pessoas entrevistadas anteriormente, Alice refaz um percurso de admiração e entusiasmo que, sinceramente, não me pegou. Cuba deve ser mesmo o máximo, mas os oitenta minutos deste longa estão longe de fazer jus à exuberância que vemos por vezes em cena. A música é o motor do filme, e é fácil entender por quê. Havana, capital cubana, é uma cidade musical, cheia de malemolência, prédios históricos e muita cultura. Espanta que, mesmo com esse aspecto tão musical, o filme não deixe de ser enfadonho pela maneira como se apresenta: deslumbrado (porque o demasiado carinhoso está carregado de afetação), com digressões costariquenhas que em nada ajudam e uma série de imagens que se apagam da memória assim que terminam.

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Malícia, de Jimi Figueiredo

Que diabos de filme é este Malícia? Parece um telefilme recusado por algum canal, ou algo que o valha. Só uma coisa explica a inclusão desse filme no festival: sua produção é do Distrito Federal. Esse era o comentário geral dos críticos presentes no festival. Se sairá (ou saiu) publicado em algum lugar, não sei. Essas coisas tendem a ser comentadas em tom baixo, já pensando numa possível aliviada na hora de escrever. É o que tem acontecido há muitos anos, e aconteceu na edição de 2014 deste mesmo festival. Não tenho como aliviar. Não há nada que me leve a defender o filme, tampouco o fato de ele ter sido selecionado. Parece um daqueles casos de equívoco completo, que de nada servirá ao desenvolvimento artístico da região. Sei como são seleções. Muitos filmes inclassificáveis de tão ruins fazem com que um, mesmo fraco, seja considerado selecionável. Nesse caso, porém, acho difícil que não tenham topado com nada menos constrangedor dentro dessa seara do cinema mais comercial.,

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Deserto, de Guilherme Weber

Eis um filme que me desagradou bastante, sem que eu saiba dizer exatamente o porquê. Não é formal o incômodo, absolutamente, pois se o filme de Weber não é um prodígio de direção, também não é um fiasco. O que me incomodou tem a ver com uma incapacidade (que pode ser minha, mas suspeito que não, pelo que percebi de alguns colegas) de o filme provocar algum interesse pelos acontecimentos ou pela progressão dos personagens. Era praticamente impossível para mim, depois de certo ponto (talvez a morte do personagem de Lima Duarte) ficar curioso com o que iria acontecer. Isso a despeito de atores como Everaldo Braga e Cida Moreira. Tem algo errado quando uma fábula pasoliniana, cheia de momentos fortes, não consegue em momento algum provocar sequer um sentimento, seja de asco, raiva ou tensão. Ou o errado sou eu. Por isso mesmo, eis um filme que pede revisão.

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