Ano VII

A Visita

terça-feira dez 15, 2015

visitashya

A Visita (The Visit, 2015), de M.Night Shyamalan

Ao espectador de A Visita é preciso primeiramente recolher os estilhaços deixados pelo filme. Só assim é possível chegar à matéria que, no meio deste caleidoscópio embaralhado e partido, interessa de fato a Shyamalan: menos o terror found footage, mais o drama familiar. Como em Sinais e A Dama na Água, se trata de refazer os laços de uma família/comunidade a partir do contato com uma ameaça/evento exterior. Em A Vista, este reavivamento dos laços ganha mesmo o contorno de uma cura, uma vez que se trata de expurgar traumas familiares. Se algo explica o entusiasmo diante do filme, então, é esta convicção, após quase dez anos de inquietação, incertezas e alguma indulgência, de que Shyamalan finalmente retornou aqui ao centro de sua obra — e importa pouco que esse retorno seja imperfeito.

Os filmes de Shyamalan em geral se estruturam como circuitos ligando o plano familiar ao de terror/fantástico. Nos melhores casos (Sinais) o fantástico se torna uma experiência de purificação espiritual pela qual é necessário passar. Da mesma forma, em A Visita os irmãos precisam passar pela jornada de terror para encontrar a cura familiar. O que muda é sobretudo a transição entre um polo e outro: essa passagem, que em A Dama na Água e Sinais se dava de forma plena e orgânica, é aqui mediada pelo filme-dentro-do-filme, por este vitral despedaçado onde as imagens refletem sobre si mesmas. Este “terceiro” filme, que se interpõe entre o filme “familiar” e o “de terror”, é aquele sobre o qual há mais o que se falar aqui. Para além das piscadelas para o espectador (o hilário plano “meloso” da mão da garota sobre a mão da avó, ou ainda: “mise en scène”), ele ganha interesse sobretudo quando a própria imagem é interrogada e torna-se um “lugar de estudo”. Por exemplo, quando as “falsas” atuações diante da câmera são colocadas em questão: o garoto que ora “atua” para esconder o trauma do pai (“make me believe”, diz a irmã munida com a câmera), ora encena toscamente uma brincadeira para evitar os avós macabros (“that’s how kids play”).

Falso documentário / Found footage

A Visita manipula com desenvoltura as duas principais “formas” expressivas do terror found footage: a agitação e os sustos abruptos à maneira de A Bruxa de Blair e o dispositivo distanciado, que capta à distância, em seu tecido continuum de imagens, pequenas perturbações que se tornam o objeto do terror, como nos melhores momentos de Atividade Paranormal. Para este segundo “expediente”, lembremos, por exemplo, das duas cenas do forno, em que a tensão é alcançada com a mobilização de elementos mínimos e a câmera à distância (este “olho de vidro”, sem operador) parece reforçar ainda mais a sensação de abandono da personagem — seu risco, portanto.

São esses momentos discretos, em que é possível flagrar pequenas tensões em meio ao tecido flácido de imagens, que nos interessam mais hoje na estética mockumentary: o falso documentário, assim, interessa menos como maneirismo realista do que como retorno autoconsciente a uma espécie de lumierianismo. Quanto às agitações e acrobacias abruptas de câmera, outros filmes de terror já parecem ter levado expediente à exaustão (o próprio A Bruxa de Blair, REC, Cloverfield), tornando-o cansativo. É preciso saudar A Visita então por esses pequenos momentos em que um zoom desajeitado ou uma câmera impassível conseguem captar, “a despeito de si próprios”, da ausência flagrante, por assim dizer,  de uma “arte dramática da decupagem”, uma vibração ou movimento mais profundo. Este movimento pode ser ora aquele de uma descortinação do drama, ora, ao contrário, uma tentativa cômica de construir este véu dramático: o garoto que, filmando a si próprio, frustradamente tenta encontrar a entonação correta para sua frase: “What’s in the shack?” [“O que há na cabana?”]

No entanto, por mais que Shyamalan explore seu dispositivo, este nunca deixa de funcionar como uma camisa-de-força formal que, finalmente, acaba por limitar o filme. A opção por deixar que os dois personagens (bastante carismáticos) “guiem” a narrativa, superando em estatura o próprio fiapo de trama, volta e meia atira o filme em timings cômicos que engasgam e comprometem o andamento (mesmo quando entramos no “modo terror” as piadas seguem, distanciando-nos do material). Pode-se argumentar que “fluidez” não é a proposta do filme. Certo. Os problemas porém começam quando, por exemplo, na cena em que o avô esfrega a fralda suja no garoto, não sabemos se devemos achar graça ou horror, ou quando a própria a cena da geladeira no fim parece ter sua brutalidade comprometida (se a cena tem sido recebida com risos na maioria das sessões, não se trata absolutamente de culpar os espectadores aqui). Por fim, mesmo s vilões, ainda que possuam sem dúvida um brilho sinistro no olhar (sobretudo o avô), ficam mais ou menos reféns do realismo chapado imposto pelo dispositivo do filme: estamos aqui ainda muito abaixo da ambição cósmica de A Dama na Água ou Sinais, em que o fantástico e o terror se tornam de fato um encontro com o fabular ou com o desconhecido.

Controle

Falávamos mais acima de uma “ausência de decupagem dramática”, de “flacidez da imagem”, de “estilhaçamento”, “insipidez do dispositivo” e personagens que “guiam” o filme: A Visita é tudo isso. Mas é notável como não deixa de haver também, em um momento sequer do filme, um pleno controle. Shyamalan é daqueles cineastas sobre os quais pode-se discorrer a respeito de cada plano, para quem cada imagem e cada dobra expressa uma ideia ou escolha minuciosa (um exemplo trivial: o Officer Jerry que “sonha em ser bailarino” é o mesmo que não atende o telefonema da mãe para a delegacia local). Esse controle é, sem dúvida, sua maior herança hitchcockiana. De maneira que, muito mais que guardião de algum classicismo (como se chegou a especular lá atrás), vemos que Shyamalan resguarda um valor talvez mais profundo do cinema: o valor do artesanato, de acreditar que cada plano deve ser objeto de um cuidado meticuloso, que cada imagem deve estar ali por alguma razão. O cineasta pode errar, equivocar-se (por exemplo nos timings cômicos), mas este controle do artesão, sobretudo num filme em que era grande o risco de se substituir a mise en scène por um dispositivo inócuo, é sempre algo a se celebrar.

O que é A Visita na carreira de Shyamalan? É um filme “menor”, sem dúvida. Mas é também um filme bastante mais pessoal do que Depois da Terra, O Último Mestre do Ar ou mesmo Fim dos Tempos. E por isso também um filme mais firme do que estes três últimos. Um filme “menor”, e por esse mesmo motivo um filme absolutamente controlado, mesmo dentro do próprio estilhaçamento.

Calac Nogueira

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br