Ano VII

Chatô

quarta-feira dez 16, 2015

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Chatô – O Rei do Brasil (2015), de Guilherme Fontes

Há, no programa de auditório, que serve de núcleo central para a narrativa de  Chatô – O Rei do Brasil, um fundo de palco que estampa uma enorme reprodução do quadro Operários (1933), de Tarsila do Amaral. Nesse cenário, carregado de uma releitura claramente paródica, no qual acompanhamos o transcorrer do juízo final da vida do protagonista – o magnata das telecomunicações Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (Marco Ricca) – outras imagens que imitam e fazem referência a uma paisagem tropical (palmeiras, principalmente), bem como cores berrantes (marcadamente o laranja) irão acentuar ainda mais o tom farsesco, de clara inspiração em programas de auditório clássicos da televisão brasileira (o próprio diretor, Guilherme Fontes, extremamente caracterizado, encarna algumas figuras, como um animador de palco à la Silvio Santos e um apresentador com clara inspiração em Chacrinha).

Uma leitura breve dessas rápidas passagens pelo programa de auditório que servem de base para os outros – e mais numerosos – inserts históricos e propriamente biográficos do filme, nos dá uma clara noção de como a epopéia de Guilherme Fontes procura se nutrir de um certo número de referências, bem como de alguns supostos procedimentos mecanicamente identificados com o ideário tropicalista e modernista, para forjar uma narrativa que tenta dar conta de uma polêmica figura histórica e por consequência “passear” (não consigo encontrar verbo que defina melhor o que o filme se propõe) por grandes questões que perpassam, historicamente, a sociedade brasileira.

O que está em jogo na encenação e na releitura biográfica propostas por Fontes é uma apropriação quase mecânica de algumas técnicas e referências “legitimadoras” ao modernismo histórico brasileiro, posteriormente adensadas e recuperadas pela Tropicália ao longo dos anos 1960 e 1970. Digo apropriações e referências mecânicas pois o que está no centro de suas preocupações é uma espécie de desvitalização desses procedimentos: apropriar-se de um imaginário construído sobre um tom jocoso e escrachado e esvazia-lo de seu contexto estético, político e histórico, inserindo-o dentro de  um momento posterior da história das formas artísticas, no qual ele se habilita pelo fato de não dizer mais nada, de ser um repertório já inofensivo, domesticado, fático em relação ao tom igualmente ameno de seu retrato (o cinema brasileiro chapa-branca atual não é constituído mais por peças efusivas, como outrora fora um Independência ou Morte (1972), de Carlos Coimbra, mas sim por peças que “passeiam” por grandes questões sociais em voga e pincelam num tom supostamente crítico a seus temas). A estratégia não é nova, sendo mais do que óbvia a inserção de Chatô – O Rei do Brasil na linha sucessória de obras como Carlota Joaquina, a Princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati (marco da “retomada”, que curiosamente é lançado no mesmo período em que Fontes começa a capitanear seu projeto) bem como diversos seriados e demais variantes de produtos televisivos surgidos posteriormente (O Quinto dos Infernos e Caramuru – A Invenção do Brasil, por exemplo).

Em determinado momento, acompanhamos Chatô num jantar de gala oferecido por Vivi (Andréa Beltrão), amante e parceira de conspirações e conchavos. Após encontrar pela primeira vez e travar relações sexuais com a mulher que marcará definitivamente sua trajetória política, Chatô encena, ao lado de Vivi, uma cordial despedida após o jantar, ambos ao lado de seus respectivos cônjuges. A câmera acompanha a saída do casal da mansão de Vivi, toma a dianteira e cruza a porta de saída antes deles, revelando, por trás da porta, novamente o camarim do programa de auditório fantasiado por Chatô em seu leito de morte, no qual o mesmo se encontra tentando entender o que está se passando em seu delírio, ao mesmo tempo em que aguarda o começo do julgamento. Nessa passagem de um cenário a outro, constituída por um movimento de câmera que evidencia essa “ruptura em continuidade” entre os cenários, acentuando logo de cara a dubiedade moral do personagem – algo que o filme gostará de frisar e saborear a cada cena, sem nunca lhe conferir um peso dramático de fato – parece se constituir como uma marca de estilo que perpassa o filme inteiro: tudo é passagem, tudo se dilui nessa ruptura-contínua que acentua o caráter de comentário irônico e distanciado sob o qual o filme se erige. Nesse sentido, tal concepção soa como um denominador comum aos filmes e obras citados acima, que apostaram maciçamente nessa espécie de adaptação comercial dos preceitos tropicalistas: já em Carlota Joaquina o tom farsesco é construído com base nos vários travellings que passeiam (é definitivamente o grande verbo desse tipo de cinema) pelos cenários dessa “irônica reconstituição de época levemente precária”, na qual nada parece ganhar uma dimensão realmente relevante, tudo é contínuo e passageiro e está ali apenas para reforçar um imaginário histórico-sarcástico sugerido desde o primeiro plano (no fundo não há pensamento, não há mise en scène, não há trabalho nesses filmes, é apenas a mais pura lógica de mostrar o valor de produção, mesmo que dentro das limitações – a graça está inclusive em frisa-la de leve às vezes – de uma suposta precariedade).

Nada mais distante – apesar da suposta precariedade sugerir um terreno em comum – da dialética pauloemiliana, cristalizada na célebre concepção acerca da “incapacidade criativa em copiar” do cinema brasileiro. Se a formulação cunhada por Paulo Emílio serviu muito bem para descrever como se deu, em termos de processo histórico e apropriação estética a relação que a chanchada brasileira estabeleceu com o cinema estrangeiro (bem como a influência dos procedimentos chanchadísticos em alguns cineastas e obras dos ano 60/70), tal dinâmica/formulação se mostra completamente alheia ao que ocorre na abordagem estético-histórica de tais filmes da retomada e suas relações com as formas que procuram parodiar ou retomar.  A “precariedade” em Chatô (bem como nos seus congêneres já citados) é algo controlado, sob medida, feito sob encomenda, como um parquinho temático que procura apaziguar, atenuar a relação do espectador com o processo histórico que procura figurar e traduzir/refletir sobre no nível da forma.

Chatô é um canalha, muito pior – de acordo com ele mesmo – do que a promotoria procurara demonstrar no julgamento. Contudo, é de sua “canalhice” que surge o grande circo midiático, o espetáculo mais popular da sociedade brasileira. Ele duvida que encontrarão um substituto capaz de colocar o show na rua com a mesma destreza. A relação vampírica que o filme mantém com o imaginário tropicalista e modernista bem como a moral conformista de Guilherme Fontes estão condensadas nesses instantes fugidios do julgamento, arrematados pela consideração final de Chatô perante o tribunal. A transgressão e a relação com tal imaginário se resumem à referência de um quadro estampado no fundo, já que sua narrativa disjuntiva é um mero pretexto para que a ironia leve se assente sobre tudo, para que a pressão das contradições históricas passe ao largo da trama e a “canalhice” de Chatô possa ser consumida e digerida em um sorriso de Marco Ricca. A verdadeira canalhice, o verdadeiro incômodo causado por um crápula como o sganzerliano Aranha/Zé Bonitinho/Loredo são experiências interditas a esse cinema esterilizado.

Guilherme Savioli

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