Ano VII

É o Amor

domingo mar 27, 2016

Cest-lamour-8

É o Amor (C’est l’Amour, 2015), de Paul Vecchiali

Violência de Paul Vecchiali

Logo no início de É o Amor, de Paul Vecchiali, assistimos ao próprio diretor em cena, buscando formular uma definição para o sentimento amoroso. Suas palavras, sua procura por uma essência do que estaria no cerne de tal sentimento, parece nos remontar à ideia de um fenômeno natural, um desastre como um terremoto ou um tufão: algo incontrolável, que de repente toma conta da cena, desestabiliza, arranca as bases de tudo, traz o que estava soterrado para o centro, nos dando a contemplar uma terra arrasada a qual jamais se imaginou possível a existência, mas que, enfim, está aí, presente em toda a sua brutal natureza. A ideia de violência que permeia as palavras de Vecchiali, e que nos remonta à imagem de um cataclisma, rege a dinâmica de cada fotograma ao longo da projeção. Cada quadro, cada gesto, cada olhar, tudo é submetido ao império da violência que emerge com uma força brutal na superfície desse filme.

É o Amor é um dos filmes mais anti-intelectuais de que se tem notícia nos últimos tempos, e a presença do próprio diretor como um personagem – que se mostrará cada vez mais importante e marcante para a narrativa, assumindo um papel crucial no desfecho – está longe de qualquer elocubração mental ou tentativa de formulação de um dispositivo cênico que vise um acesso meramente racional à cena. Tal fato se repete na dinâmica da cena logo posterior à “introdução” feita por Vecchiali. Estamos em um cidade costeira, um balneário de segunda categoria, acompanhamos o contador Jean (Julien Lucq) retornando ao lar, já tarde, após um dia de trabalho. Sua esposa, Odile (Astride Adverbe), o espera acordada. Ela acredita que o marido tem um caso com outra mulher e ambos travam uma discussão.

Vecchiali filma a cena duas vezes em dois planos distintos: num primeiro momento acompanhamos apenas o marido e, no segundo, apenas a esposa. O que rege tal escolha não é uma mera imposição do cineasta numa busca pelo inusitado dentro de uma situação filmada milhares de vezes ao longo da história do cinema. O que está em jogo aqui é simplesmente a necessidade imposta pela violência de um sentimento que parece, esse sim, nos ser dado a ver pela primeira vez, como quando finalmente vemos o rosto de Astride Adverbe pronunciando as mesmas palavras que já ouvimos, mas dessa vez enraizadas fisicamente no corpo da atriz, nos soam com uma gravidade antes interdita. Os personagens vão se desnudando progressivamente ao longo da cena, a intensidade da discussão progride na mesma velocidade, as frases pronunciadas vão ganhando o peso de uma não-reconciliação definitiva, de uma fenda que jamais poderá ser fechada. A frontalidade com que os rostos são filmados no fim de cada plano parecem encerrar uma ideia de ponto sem retorno. E é justamente essa sensação, a da impossibilidade de um retorno a um outro momento, a uma outra situação, que perpassará todo o filme. Nada fica impune ao cataclisma.

Há, no filme de Vecchiali, uma referência jocosa ao longa Um Estranho no Lago, de Alain Guiraudie, através do personagem de Daniel (Pascal Cervo), um ator que ficou famoso ao protagonizar um longa chamado “O Gostosão da Praia”. Novamente, a referência aqui não se constitui como mera ferramenta irônica, a fim de se instituir um distanciamento ligeiramente bem-humorado e esperto. Mostra-se, antes de tudo, como uma etapa fundamental, uma necessidade a ser enfrentada, transpassada – mais uma vez – com o intuito de se construir aquilo que realmente interessa ao universo de É o Amor: a figuração daquele espaço balneário de construções quase inóspitas, paisagens duras pelas quais transitam aqueles personagens desolados. A referência bem-humorada, num primeiro momento, se institui como um desvio da ideia de um balneário quase fantasmático, como o encenado por Guiraudie em seu filme. Vecchiali perscruta cada ruela, cada fachada de casa e interiores com design de gosto duvidoso, em suma, convoca uma presença brutal e concreta (lembrando muito o cinema de Carlos Reichenbach, nesse sentido), seu reino da violência é erigido, essencialmente, a partir do plano mais material do filme.

Um vazio mais imponente que uma muralha acentua e cerca cada passo de um Daniel transtornado, de ombros arcados, que parece não poder mais sustentar o fardo que a violência, lei última e única de tal reino, o amor, lhe impôs. A dor internalizada pelo casal em seu último diálogo, já no final do filme, é da mesma natureza (e o mesmo pode-se dizer sobre o sentimento verbalizado por Albert, até então namorado de Daniel, de que caso fosse largado, mataria o ex-cônjuge). Tudo parece ser cunhado a partir de uma arbitrariedade impositiva que lança a tudo e a todos numa espiral trágica inescapável, ou seja, a essência mesma do cataclisma que se abate – e coordena o movimento geral – da narrativa. A genialidade de Vecchiali reside no movimento dialético que sugere um vislumbre de uma possível ordenação do caótico (a aparente resolução deus ex-machina da trama, com uma aparição e intervenção direta do ator-diretor) para tão somente nos mostrar com a maior frontalidade e visceralidade possíveis a natureza opaca, truncada e intransponível dos fatos e sentimentos figurados. Cataclisma supostamente absorvido e internalizado. Cataclisma mais do que nunca pulsante e aterrador.

Guilherme Savioli

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