Ano VII

Clássicos africanos

quinta-feira out 29, 2015

Sobre dois clássicos africanos: A Múmia, de Shadi Abdel Salam, e Garota Negra, de Ousmane Sembène 

por Heitor Augusto 

Como estou acompanhando de maneira muito particular e bem menos afobada que em anos anteriores, a parte mais instigante da programação da Mostra tem sido os clássicos – ainda que eu não possa deixar de citar dois contemporâneos, É o Amor e Sob Nuvens Elétricas, que me chamaram atenção. Digo “clássicos”, mas num recorte específico: os advindos de cinematografias que não são canônicas para os cursos de cinema ou, grosso modo, para a cinefilia: egípcia e senegalesa.

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Garota Negra

Primeiro, Garota Negra (La noire de…), de Ousmane Sembène, diretor cuja obra tenho mais intimidade – o suficiente para, inclusive, alternar gosto e admiração com oposição estética. Explico: Sembène é nome imprescindível para qualquer estudo de filmes feitos na África, já que ele é pioneiro do cinema naquele continente no período que sucedeu a descolonização no comecinho dos anos 1960. Seu O Carroceiro (Borom Sarret, 1963) é tido como o primeiro filme feito por um africano negro e já trazia uma questão de fronteiras invisíveis (o enredo é a de um carroceiro que leva calote de um cliente e que atravessa a cidade, chegando a uma região em que pessoas como ele são “indesejadas”) que marcaria muito fortemente seu próximo filme, Garota Negra.

La noire de…– cuja tradução mais eficiente daria conta daquele “de” no título original, referência à posse da protagonista, dado mais que fundamental para o filme – é justamente sobre uma mulher, Diouana, que decide quebrar as fronteiras invisíveis, não importa o preço. Diouana sai do Dakar, Senegal, em direção a Antibes, França, na crença de que lá (Europa) teria o mesmo emprego que em sua terra natal, o de babá, mas aos poucos o casal-patrão tenta convertê-la em empregada doméstica.

Mais que relações de trabalho, o que a protagonista enfrenta é uma ameaça à anulação total de sua subjetividade. De deixar de ser Diouana, ter sua história apagada – não à toa, por uma borracha branca – e ser convertida em “apenas uma negra”. Difícil encontrar um filme que se utilize tão bem do contraste do preto com o branco de forma a propciar uma experiência estética aprazível, mas fazê-lo ao mesmo tempo que traz esse apuro como informação política.

Sembène usa uma narração em primeira pessoa, escolha que atualmente tendo a encarar mais como deficiência – sinônimo de incompetência de não conseguir fazer de outra maneira –, mas que em Garota Negra é sublime. Narração (a fala interior da personagem que se torna visível) e imagens/gestos, tudo muito direto. Escrever sobre esse filme é rememorar os trechos aprazíveis (o timbre de sua voz, a resistência de suas roupas, a asqueroza cena do jantar e do “tempero africano”).

Sembène ainda merece, e precisa, ser descoberto. Inclusive pelos cursos de cinema – a grade da USP, que é a universidade que conheço mais de perto, ignora quase que integralmente a produção de diretores africanos (bonde que a literatura já pegou, felizmente), e essa invisibilidade me causa uma indignação imensa. Se não descobrirmos Sembène sequer conseguiremos dar o próximo passo, que é justamente superar Sembène e desbravarmos um cinema genuinamente experimental como o de Djibril Diop Mambety, cujo Touki Bouki (que aqui circula como A Viagem da Hiena), de 1973, se mantém como uma das coisas mais fortes já feitas no cinema, africano ou não. Ou desfrutarmos de artesões como Souleymane Cissé (Yeelen) e Idrissa Ouedraogo (Yaaba).

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A Múmia A Noite das Passagem dos Anos

Jà sobre A Múmia – A Noite da Passagem dos Anos (Al Momia) eu tinha pouquíssimas informações, com uma vaga memória de alguma citação em algum artigo da coleção Cinema no Mundo – África – Volume I. Apesar da continuidade e circulação em festivais fora da África, não tenho muita proximidade da produção egípcia. E falarei brevemente do longa de Shadi Abdel Salam no tom de quem tem respeito, mas não paixão.

Em A Múmia parte-se de uma ideia de que só quem tem nome possui identidade para se construir uma moral que guia o personagem principal, jovem que decide ir contra ao clã que, desde muito, saqueava um sítio arqueológico e vendia os tesouros para garantir a sobrevivência do povoado. Por possuir uma aura onírica – por vezes sente-se que o território do filme não pertence a um tempo e a um espaço, mas nos chegou de lá longe –, a força da experiência depende muito dessa fruição descolada da verossimilhança, ancorada em dizeres e representações.

A questão da identidade, um dos subtemas recorrentes e definidores do cinema africano pós-colonialismo, é a marca de A Múmia. É essa a moral do jovem protagonista e a riqueza da simbologia do filme: como ser conivente com os roubos se tal gesto implicaria um desconhecimento do próprio passado e, por consequência, uma impossibilidade de qualquer futuro? Leitura essa que é fortalecida se consideramos o que esteve ao redor do longa: o enredo se passa em 1881, pouco antes do início do domínio inglês. Mais: sua realização se deu em 1969, uma década após o final da colonização britânica e num período que o Egito esteve fortemente no radar geopolítico.

Na jornada feita pelo jovem que desafiou o saqueamento, não há dúvidas que o momento mais bonito quando ele e outras pessoas do povoado observam o navio das autoridades partir do vilarejo após terem recuperado o preciosidades arqueológicas. Por um lado, sentimento de ter feito o que lhe era obrigatório; por outro, o inevitável desespero de pensar: como sobreviveremos.

Ainda que não tenhamos uma retrospectiva focada num autor, como destacou o texto do Sérgio Alpendre, assistir a esses dois clássicos torna evidente a força da retrospectiva que a Mostra faz dos filmes da The Film Foundation.

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