Ano VII

Winter sleep 2

quinta-feira mai 28, 2015

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Sono de Inverno (Kis Uykusu, 2014), de Nuri Bilge Ceylan

Nuri Bilge Ceylan é, talvez, o cineasta mais academicista a surgir nas últimas duas décadas. Sua obra foi completamente assimilada e laureada pelo “grande salão oficial” do cinema de arte contemporâneo, o Festival de Cannes. Koza (1995), Distante (2002), Climas (2006), Três Macacos (2008) e Era uma Vez na Anatólia (2012), todos saíram com algum prêmio do festival. Sono de Inverno (2014), agraciado com a Palma de Ouro, não é apenas o ápice de uma jornada que, se encaminhou-se inevitavelmente para esse reconhecimento, é também um segundo ponto crucial na trajetória de Ceylan, fundamental na compreensão de seu papel dentro do cinema contemporâneo e quiçá uma excelente pista (ou evidência) acerca do estado geral da sensibilidade e inteligência crítica atual.

Em seus primeiros filmes (à exceção de Nuvens de Maio, sua melhor obra) até Climas, Ceylan erigiu uma filmografia calcada numa intensa e progressiva apropriação automática de vários traços formais de um certo “cinema contemporâneo” – planos longos e gerais, ações rarefeitas, diálogos escassos, tramas metalinguísticas – ao mesmo tempo em que buscava dotar seus filmes de uma certa investigação metafísica. O exemplo mais bem acabado é A Pequena Cidade (tal carga metafísica se faz também presente, com grande intensidade, em Distante), quase uma ode ao cinema de Andrei Tarkovsky, mas que diferentemente de seu mestre (citado explicitamente em diversos momentos) é incapaz, devido às imposturas dos entraves formais que são sua apropriação e decalque de algumas “estratégias da moda”, de conferir qualquer peso existencial à matéria que filma. Os primeiros filmes de Ceylan são dotados de um profundo desprezo pela figuração e pelo relato da experiência humana: ele inscreve seus personagens na paisagem como um pintor vaidoso, mestre na arte do adorno e da construção de uma vaga ideia de beleza calcada no desalento e na paralisia. O ápice dessa estética é a cena final de Climas na qual a personagem é pulverizada da imagem, ou melhor, dissolvida na paisagem de fundo, desejo que perpassa violentamente a maioria de seus filmes.

Se Sono de Inverno representaria um segundo ponto crucial na obra do cineasta, tal como afirmei acima, é porque Três Macacos seria o primeiro. Como se pressentisse um certo esgotamento estilístico-formal em Climas, Ceylan promove uma aparente mudança na sua concepção de encenador a partir de seu próximo longa: busca se firmar como uma espécie de grande narrador e encenador de tramas genuinamente trágicas, injetar em seu cinema uma observação mais apurada de arquétipos humanos e dotar seus filmes com uma história na qual tais tipos possam ser desenvolvidos, mostrados e exercitar todo o seu possível fascínio enquanto figuras humanas. Tal vontade de mudança é apenas aparente, pois a visão do cineasta permanece essencialmente a mesma. Três Macacos se constitui como seu pior filme, afetação pura de um cineasta que enxerga a forma como ferramenta última capaz de uma acepção totalizadora na cristalização de sua visão equivocada acerca do trágico (tragédia não é fatalismo, metafísica não é a busca constante pela anulação da matéria; fontes primeiras de seu profundo desprezo pelo homem).

Sono de Inverno se constituiria como um segundo ponto fundamental na obra de Ceylan, na medida em que ao mesmo tempo em que representa a consagração última de um cineasta, (que sistematicamente vinha tendo seu nome colocado em evidência), aglutina de forma fulminante todos os elementos que esporadicamente vinham surgindo em sua obra, que aqui congregados não nos deixam a menor dúvida: Ceylan é o maior exemplo – uma vez que é “a bola da vez” – de um academicismo formal tão identificado com uma certa ideia de cinema de arte a rondar pelos grandes festivais (nenhuma novidade: Glauber perdeu para Malle, em Veneza 1980; Godard foi posto no mesmo patamar de Xavier Dolan e num abaixo de Ceylan, em Cannes 2014)

A grande contradição de Sono de Inverno nos é dada a ver em sua integralidade apenas nos créditos finais: o filme é inspirado em escritos de Shakespeare, Voltaire, Dostoiévski e Tchecov, principalmente. Todos esses autores, sem exceção, representam avanços cruciais na história da arte e do pensamento ocidental. Todos, sem exceção, são modernos na acepção mais profunda e radical do termo, representantes de saltos fundamentais na forma de se registrar a aventura humana, numa linha evolutiva que se inicia com Homero.

Tchecov (referência mais reivindicada por Ceylan), por exemplo, é, talvez, o dramaturgo mais importante da segunda metade do século XIX, pelo simples fato de que em seus escritos, ao dar conta, formalmente, do registro de uma série de complexas mudanças pelas quais a sociedade vinha passando – e ser capaz de apreender os reflexos e os dilaceramentos provocados por essa macroestrutura no indivíduo e em sua consciência (sendo Shakespeare seu grande antecessor, nesse aspecto) – impôs, igualmente, uma revolução a nível de mise en scène: os encenadores não mais poderiam se relacionar com o texto moderno da forma clara, direta, quase automática, com que se relacionavam com a limpidez do texto clássico. Eis a grande contradição do filme de Ceylan: apesar de tomar como referência a modernidade de um Tchecov, seu movimento é o oposto do apregoado por esse, sendo sua arte profundamente regressiva, academicista.

Em Sono de Inverno estamos, de certa forma, nas antípodas do ponto de vista do relato de Três Macacos. Grosso modo, a espinha dorsal da narrativa é a mesma: um evento coloca em conflito pessoas que ocupam classes sociais distintas. Enquanto no filme de 2008 acompanhávamos mais de perto os personagens do espectro menos favorecido da relação social, aqui acompanhamos, essencialmente, Aydin (Haluk Bilginer), o dominador das situações. A relação de posse e subjugo que o protagonista irá estabelecer com todos em seu entorno (não só com os locatários de sua propriedade, mas também com mulher, irmã, amigo, clientes de seu hotel, em suma, todo e qualquer interlocutor que cruze seu caminho) precipita-se nas diversas situações de diálogos travados ao longo do filme.

Ceylan crê numa encenação calcada na exposição extensa, meticulosa, detalhada em cada um desses diálogos. Nada é deixado de lado, tudo está, supostamente, contido nos embates pronunciados entre Aydin e seus interlocutores. A verdade, o momento em que Aydin expressaria com violência sua natureza perversa, dominadora, estaria contida numa mudança encarnada numa fagulha de momento no decorrer do conflito. O olhar do diretor, contudo, nada poupa, tudo quer subjugar (como Aydin), tudo quer conter, não se permite criar zonas sombrias, impenetráveis (característica maior de Era uma Vez na Anatólia). O mecanismo de Ceylan nos é dado desde a primeira cena, na qual todas as forças em conflito já estão expostas. Seu artesanato consiste em repetir ad nauseam - adornando e se comprazendo no seu próprio ato – a problemática inicial (culminando com uma cena na qual tal mecanismo transpassa a figura de Aydin e rege a dinâmica da visita de sua esposa aos locatários). Ceylan têm uma ideia do que é o poder mesquinho exercido por Aydin, seu filme é uma enfeitada exposição dessa ideia. Não há crise imposta, os espaços são harmoniosamente desenhados, iluminados, os enquadramentos tampouco dizem algo, tal como num quadro acadêmico medíocre da escola francesa do século XVII.

Em seu texto La Main (“A mão”), sobre Suplício de uma Alma (1956), de Fritz Lang, Jacques Rivette evidencia o aspecto quase descritivo da mise en scène ali adotada por Lang, bem como atribui como característica central de seu cinema o conceito. Rivette afirma, porém, que a genialidade de Fritz Lang reside essencialmente em seu raciocínio dialético: a evidência de sua mise en scène é, subitamente, posta à prova por um coup de théâtre; o conceito é constantemente tensionado, retorcido, flexionado quando encarnado na figura humana. Pode-se dizer que Sono de Inverno é igualmente atravessado pela evidência e pelo conceito. Com uma diferença crucial: o raciocínio de Ceylan pára por aí, evita a dialética a qualquer custo. O que explica, por exemplo, a condescendência que transborda a partir das últimas palavras de Aydin, direcionadas à sua esposa, bem como a empatia que habita o plano próximo do rosto aterrorizado dela ao ver o dinheiro queimando. Ceylan acha que compreende por completo (afinal, são mais de três horas de filme) todos esses personagens, se permite, assim, aceitá-los (tal como tudo era naturalizado em Três Macacos). Tudo já estava pressuposto e contido na primeira cena, o périplo é irrelevante e sua moral é duvidosa – não por acaso, mas sim como conquista formal do filme.

Havia mencionado que Sono de Inverno seria um segundo ponto crucial na filmografia do diretor, sendo Três Macacos o primeiro. Contudo, se a grande apoteose da obra de Ceylan confirma, mais uma vez, aquilo que Três Macacos procurava desdizer (mas que, como se viu, fracassara retumbantemente), podemos afirmar que Sono de Inverno é o único ponto crucial da filmografia do diretor, na medida em que é o atestado definitivo de seu arraigado academicismo, ou de sua grande irrelevância.

Guilherme Savioli

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Texto de Cesar Zamberlan (a favor)

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