Ano VII

Um rasgo negro na trama da realidade

sexta-feira nov 7, 2014

Um rasgo negro na trama da realidade – Breves notas sobre o cinema de Víctor Erice

Por Guilherme Savioli

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“Eu cresci mais ou menos como todo mundo: acostumada a estar só e a não pensar muito na felicidade”

Estrella (Sonsoles Aranguren / Icíar Bollaín / María Massip) em O sul (1983), de Víctor Erice

A perda da inocência

Em seu curta-metragem La morte rouge (2006), filme-ensaio em que tenta rememorar as lembranças de sua primeira ida ao cinema, o diretor Víctor Erice, em texto escrito e narrado por ele mesmo, afirma que desde seu primeiro contato com as imagens em movimento – que se deu ao assistir A garra escarlate (1944), de Roy William Neill – sua relação com as mesmas se deu de forma ambígua. Por um lado, algumas dessas imagens o aterrorizavam, por outro, o confortavam, prestavam-lhe consolo.

Ainda no mesmo texto, Erice afirma que foi nesse primeiro contato com o cinema que ele pôde vislumbrar pela primeira vez a morte, mas não só isso: a capacidade dos homens de matarem outros homens.

O que permeia ambas as afirmações e confere a ideia central do texto de Erice é a perda da inocência. Tema caro ao diretor, já marcava profundamente seus dois primeiro longas – O espírito da colmeia (1973) e O sul (1983) – figurando como mote central do curto filme-ensaio de 2006..

No filme de 1973 acompanhamos duas irmãs pequenas, Ana (Ana Torrent) e Isabel (Isabel Tellería), que assistem a uma exibição do filme Frankenstein (1931), de James Whale, em um cinema improvisado de uma cidadezinha interiorana da Espanha. O ano é 1940. Ana fica aterrorizada por aquelas imagens: por que o monstro mata a menina e por que as pessoas matam o monstro ao final do filme? Tais questionamentos, em conjunto com a curiosidade incentivada pela irmã – Isabel afirma que tudo no cinema é mentira, mas que Frankesntein existe na realidade, como um espírito encarnado – irá disparar em Ana uma obsessão pelo encontro com esse monstro, ou pelo menos com a imagem que faz dele.

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Imagem do rosto de Ana, refletida no lago, convertendo-se na imagem do rosto do monstro.

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Em O sul é também sobre a perda da inocência que trata a trajetória da protagonista Estrella. Ela e sua família habitam na região norte da Espanha. Desde pequena Estrella cria uma ligação muito forte com o pai, que fugira da região sul do país, após uma traumática desavença familiar durante a guerra civil espanhola. A imagem geográfica criada acerca do sul aliada à curiosidade por descobrir mais sobre a trajetória do pai criará em Estrella uma aura quase mística acerca desse conjunto. O fascínio pela figura paterna será desconstruído ao longo do filme e ao final o sul se mostrará como o único destino possível: jamais como uma promessa de felicidade serena, muito pelo contrário, como o passo final que sacramenta a perda definitiva da inocência.

Tanto em O espírito da colméia quanto em O sul a ideia de perda da inocência nunca é tratada como a necessidade de se conjurar uma espécie de canto elegíaco ao passado, extremamente nostálgico de um suposto tempo em que o mal não habitava o mundo. Para Erice, abordar a perda da inocência não se trata nunca de narrar um choro por um idílio que se foi, mas sim de captar um momento em que impreterivelmente os indivíduos tomam consciência da necessidade de se assumir responsabilidades em relação ao próprio presente, como fica mais do que explícito em seu texto de La morte rouge.

Ana decide sair em busca do monstro, sozinha. Ela encontra, num casebre abandonado em que havia estado com sua irmã, um refugiado perseguido pela ditadura franquista. Ela decide ajudá-lo. Ao voltar ao local no dia seguinte, percebe, através das manchas de sangue, de que o homem fora assassinado. A menina resolve fugir, após encontrar com seu pai na cena do crime. É em sua fuga, após esse primeiro contato com um homem sendo assassinado por outro homem, que a imagem de Frankenstein se fará ameaçadoramente concreta para ela.

Por fim, seu chamado final ao monstro: a não resposta do mesmo parece apenas confirmar a real existência desse mal, mesmo que apenas como um espírito (tal como sua irmã já havia dito), ao mesmo tempo em que Ana parece se dar conta, pela primeira vez na vida, de sua própria identidade. São sobre essas constatações que Ana a partir de então terá de tomar posição, assumir responsabilidades, tal como já havia feito em relação ao homem perseguido por Franco.

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Ana e o homem perseguido pelas forças franquistas

A personagem Estrella anuncia, em sua narração, que crescera muito só e sem pensar muito na felicidade. Esse embate – travado com a figura do pai e a traumática experiência histórica vivenciada pelo mesmo no sul – será o grande responsável pelo seu amadurecimento. Tudo isso perpassado pela figura de uma antiga atriz, com a qual, supostamente, seu pai mantivera um relacionamento. Do ato raivoso de queimar um folder do cartaz em que a atriz figurava a uma conversa serena e melancólica com o pai, antes do mesmo se suicidar, eis o arco dramático da responsabilidade assumida por Estrella: lidar frontalmente com essa memória que permeia e regula fortemente a vida de seu círculo familiar.

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Sabe-se muito bem que o projeto de O sul foi amputado pela produção do filme e que o final planejado por Erice não é o que se tem hoje (na realidade seria como a metade do filme, sendo a outra passada no sul), porém, é de inegável força a ida de Estrella para o sul, destino final de seu embate com o peso e a força desse passado tão presente, ainda capaz de fazer com que um homem tire a própria vida.

 

A obsessão pela imagem

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“Alguém que via essas coisas, após o assombro inicial, não tardava em desviar o olhar, com uma expressão entristecida de espanto”

Fernando (Fernando Fernán Gómez) em O espírito da colméia

 

Nos dois primeiros longas de Erice, temos imagens que se tornam obsessões por parte das protagonistas. E é exatamente na construção através da imagem, ou melhor, na mise em scène dos planos de seus filmes, que Erice buscará encarnar imageticamente as contradições e os embates surgidos dessas obsessões, frutos primeiros da conseguinte perda da inocência.

Do intenso chiaroscuro que delineia a aura quase mágica da relação entre Estrella e seu pai, quando aquela ainda era criança, ao mesmo chiaroscuro que demarca a “dor infinitamente superior” do pai; do tom alaranjado que permeia tanto as cenas em que as formas geométricas e a organização das colméias são contempladas de perto, quanto as cenas em que as meninas brincam e correm pela casa, ao aterrorizante contraluz final na ausência de resposta ao chamado de Ana: todos os planos de Erice possuem composições pictóricas que nos fazem visualizar de forma extremamente viva e concreta as questões abordadas.

A singularidade de seu cinema reside justamente nesse fato, pois ao entrar em contato com seus filmes é como se pela primeira vez vislumbrássemos concretamente coisas tão imateriais como as dificuldades do amadurecimento, o peso da memória e do passado que sempre retornam e se fazem presentes, as questões familiares nunca resolvidas, mas também nunca explicitadas, o tortuoso processo de formação de uma identidade. A história e os problemas sociais, principalmente aqueles vividos pela Espanha ao longo da ditadura franquista, retornam em seus filmes não através de uma abordagem direta, demagogicamente justa sobre esses assuntos, mas sim sobre a pressão existencial que as questões citadas acima – compartilhadas por todas as pessoas e inevitavelmente conectadas com a política que as governa – exercem sobre os indivíduos.

 

O sol de marmelo e o cinema como forma de conhecimento

 

“De onde eu vejo a cena não consigo saber se os outros vêem o que eu vejo. Ninguém parece notar que todos os marmelos parecem estar apodrecendo sob uma luz que eu não sei descrever: luminosa e ao mesmo tempo sombria, a qual transforma tudo em metal e cinzas. Não é a luz da noite. Nem a do crepúsculo. Nem a da aurora”

Antonio López em O sol de marmelo

O terceiro longa de Erice, O sol de marmelo (1992) é um filme sobre a investida do trabalho artístico, transmitido essencialmente através do gesto, sobre o mundo. Mundo cada vez mais refratário, dotado de um processo animalesco de acelerada mercantilização da arte e que ao mesmo tempo lhe lega um espaço cada vez mais rotulado pela inutilidade. Erice faz quase uma investigação científica sobre esse gesto, indo direto à sua natureza, expondo sua resistência a toda e qualquer banalização. Trabalho artístico, força e potência investidas para uma tentativa de conhecimento, compreensão e atuação sobre o mundo.

É um filme que igualmente desnuda a natureza do cinema. Em entrevista no festival de Locarno desse ano, no qual foi homenageado, o diretor discorreu acerca da matéria com a qual lida em O sol de marmelo: pouco lhe interessa demarcar ou classificar se a mesma era documental ou ficcional, afinal de contas, tal demarcação já havia sido derrubada pelos próprios irmãos Lumières ao filmarem a saída dos operários da fábrica. Supremacia da possibilidade do cinema em captar um gesto se desenvolvendo em tempo real em determinado espaço, não existindo uma tendência (documentário ou ficção) que deva prevalecer para tanto. Algo totalmente afinado com a modernidade postulada por Michel Mourlet no seu texto Sobre uma arte ignorada. Tal como “a beleza suprema” do díptico indiano de Fritz Lang, no qual a mise em scene tudo organiza e o gesto prevalece, em O sol de marmelo somos defrontados com a mesma beleza, com a mesma organização de elementos que tudo exprime, sem mais necessidades.

Filme-síntese de todas as questões que atravessam os filmes de Víctor Erice, O sol de marmelo demonstra a possibilidade do cinema como instrumento privilegiado do conhecimento, uma luz que só pode ser contemplada e entrevista com o olhar único depositado pelo cinema sobre o mundo: “um rasgo negro na trama da realidade”, como o texto de La morte rouge bem denomina.

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