Ano VII

Oldboy

quarta-feira jun 25, 2014

 

Oldboy (2013), de Spike Lee

A pança rotunda de Josh Brolin é um axioma.  Inchada e vulgar, a barriga redonda do ator é a imagem de um país que teve como presidente, por duas vezes, um texano que, em sua autobiografia, gaba-se de pertencer a uma família de escritores de sucesso e que “até os cachorros dos meus pais, C. Fred e Millie, escreveram seus próprios livros” [1].

A presença da pança de Brolin, por si só, é uma excelente justificativa para a existência do remake dirigido por Spike Lee.  Se é preciso, por questões comerciais, adaptar um filme-sul coreano que se veste polêmico, mas que, pelado, é insosso, feito há dez anos, que se faça a operação contrária, ao menos: o longa-metragem de Lee ostenta, por debaixo da roupa usada de brechó, o abdome protuberante da ultra vulgaridade.

Tudo na obra de 2013 é inchado em relação à contraparte asiática.  Na tipificação dos personagens, por exemplo, a gordura se faz exagero e sátira extrema, grotesca: Samuel L. Jackson tem o figurino e a atuação provindos de Spirit. Sharlto Copley parece um vilão que lutaria contra Austin Powers. E o personagem de Brolin, quando resolve malhar e queimar a barriga, é, faixinha na cabeça, um Rambo saído de algum quadro de Saturday Night Live.

A imagem, aqui, tem um caráter sempre farsesco, a câmera, colada a Brolin em uma cena de bebedeira, dá ao mundo um aspecto irreal, de cenário, de painel, dada sua imobilidade – aspecto este que, mais tarde no filme, irá ficar ainda mais explícito, nas telas pintadas fazendo vezes de janela, no covil; e no plano final, quando há a inversão das imobilidades e é o ator que passa a ser quase que uma tela, enquanto o painel atrás dele ganha vida, “ganha imagem”.

Imagens de segunda mão, vindas dos quadrinhos, videogames ou do próprio cinema, já povoavam o Oldboy de Chan-wook Park. A grande diferença é que a versão de Lee as utiliza não com reverência e sim para se chegar naquilo que é centro de gravidade de Oldboy (do qual Park passou longe): ser uma versão de Um Corpo Que Cai. A imagem mente e a crença cega no seu poder revelador leva à tragédia.  O cineasta americano, depois de passar por este centro de gravidade, embarca em uma outra viagem: a de expor a vulgaridade, sempre ligada a um sentimento de irrealidade, das imagens que nos cercam  – o programa de televisão que conta a história do crime e mostra a falsa filha, poderia muito bem estar sendo exibido no Robocop de Paul Verhoeven.

E é justamente nesta exposição que Lee faz o comentário político devastador sobre seu país, ao intercalar imagens ao estilo Verhoeven com imagens jornalísticas do 11 de setembro, de Bill Clinton jurando dizer a verdade nos jardins da Casa Branca, e, claro, da maior de todas as imagens verhoevenianas já fábricadas pelo real: o infame discurso de George W. Bush à bordo do USS Abraham Lincoln, em 2003,  em que um gigante painel ostentando a frase mission acomplished está posicionado atrás do ex-presidente, na torre de comando do porta aviões [2]. 

Não se pode acreditar nas imagens, neste país em que até os fatos reais tem aspecto irreal, cinematográfico, over the top (o 11 de setembro). Em que as mentiras são contadas com a cara levada em primeiro plano (Clinton dizendo que não traiu; Bush, olhinhos pequenininhos e fivelona no cinto, dizendo que a América venceu), com o rosto inexpressivo de Brolin no plano final de Oldboy. Rosto este que projeta, literalmente, imagens fantasiosas, às costas, por trás, em oposição à imagem que se revela diante dos olhos. A América de Lee é uma barriga inchada de mentiras.

Wellington Sari

[1] Momentos De Decisão (Novo Século, 2012).

[2] Tudo o que envolveu a chegada de Bush ao porta-aviões esteve embebido em exuberante teatralidade, que não é maior do que o discurso em si. O painel e o ex-prediente falaram em missão cumprida, enquanto a guerra no Iraque matava (e continuou matando, depois do discurso) centenas de cívis e soldados americanos.

 

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