Ano VII

O Rio

segunda-feira mai 19, 2014

O Rio (He Liu, 1997), de Tsai Ming-liang

Eis um dos mais icônicos filmes orientais dos anos 90 e aquele que pode ser visto como o mais representativo da carreira de Tsai Ming-liang. Não por ser o primeiro a chamar atenção (Vive L’Amour) ou por ser aquele ao qual, à época, depositamos nossas crenças de estarmos diante de um cineasta incontornável (O Buraco) ou ainda por ser o mais bonito (Que Hora São Aí?). O Rio é o mais representativo trabalho de Tsai Ming-liang simplesmente por conseguir estabelecer tudo aquilo que pensamos ao falar sobre o cineasta: de um mal-estar sem causa, mas com severos sintomas, às comprovações da impossibilidade de um núcleo familiar saudável; do caos urbano, que só faz separar os personagens, à necessidade de seu realizador em recorrer a primeiros planos somente em situações-limite; do ritmo contemplativo regido por uma câmera quase sempre fixa à comicidade trágica que irá circundar os envolvidos; da abundância de água à representação de um mundo enfermo; e, é claro, da apresentação de Lee Kang-sheng, começando como ele mesmo para, sem aviso, interpretar um papel que, aos poucos, irá lhe roubar toda e qualquer humanidade, metamorfoseando-se em um dolorido nada  no limite, não fora a isto que presenciamos em seu rosto no trajeto de Rebeldes do Deus Neon ao último e apocalíptico Cães Errantes?  

Também típico é o enredo, econômico ao extremo: após fazer as vezes de um cadáver a flutuar em um rio para as gravações de um filme, um jovem passa a apresentar uma crescentemente imobilizante dor no pescoço. Sua família irá – sem muito carinho – tentar lhe ajudar, apelando a toda sorte de especialistas e rituais.

Visto por alguns como uma analogia aos sintomas da Aids (levando-se em conta a noção de que a água representa, à época, para e segundo o próprio cineasta, o sexo ou a falta de), sentimos um desconforto e um prazer algo sádicos, acompanhando toda e qualquer subjetividade de Kang-sheng sendo usurpada por quase duas horas. O absurdo da situação confere um tom comicamente grotesco, como no instante em que o jovem recorre a uma sessão de acupuntura, onde vemos sua mão, em primeiro-plano, ser perfurada e, ao fundo, seu rosto, contorcendo-se em caretas cruelmente hilárias. O desgosto emotivo, tão caro ao diretor, jamais seria tão bem representado em sua carreira e a aflição com que acompanhamos a cena pode também responder à fascinação e à eventual descrença de alguns para com seu cinema, pois se O Rio é a quintessência de seu realizador, ele contém também alguns abusos que mais tarde custariam o abandono de tantos, até então, admiradores. Ou não seria a famosa cena na sauna a gênese (feita à perfeição) do momento do pai com o repolho/boneca da filha, em seu último filme? 

É raro ser cruel e não cair no tão recorrente cinema malvado e chantagista de muitos autoproclamados autores surgidos nos últimos anos. Houve um momento no qual Tsai Ming-liang tirava tal impasse de letra, este sendo o exemplo maior. Fassbinder e Buñuel ficariam orgulhosos.

Bruno Cursini

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