Ano VII

Amante a Domicílio

sábado mai 10, 2014

Amante a Domicílio (Fading Gigolo, 2013) de John Turturro

Na primeira sequência de Amante a Domicílio, de John Turturro, somos apresentados ao protagonista Fioravante (interpretado pelo próprio diretor): um cara já na meia-idade, que acaba de perder o emprego numa livraria e que sustenta uma amizade de anos com Murray (Woody Allen). Há algo que salta aos olhos já nessa primeira sequência, e que perdurará ao longo do filme inteiro: um certo estranhamento oriundo da situação. Existe um intenso contraponto entre uma ansiedade em gerar humor – canalizada na figura de Woody Allen – e uma quietude insegura – canalizada na figura de Turturro – dotada de uma espécie de opacidade e esvaziamento, não por opção, mas sim pela própria incapacidade do filme em estabelecer qualquer universo, qualquer olhar para suas personagens.

Seguimos Murray/Allen caminhando por um bairro com seus filhos. Eles estão indo à casa de uma mulher que tira piolhos da cabeça. Abruptamente insere-se uma cena de apresentação de uma vizinhança judaico-novaiorquina. Uma discussão de trânsito, com direito a um policial judaico (Liev Schreiber) intervindo e uma misteriosa e serena dona de casa observando todo o desenrolar da ação. Enfim, compreendemos que se trata da mulher dos piolhos, Avigal (Vanessa Paradis), a qual Allen estava levando os filhos. A oposição entre a figura exaltada de Allen e o resguardo da outra se faz presente, tal como na primeira cena, pois Avigal é uma viúva, judia e extremamente reservada e conservadora. Paralelamente a essa ação, acompanhamos Fioravante em seu primeiro programa como amante profissional, agenciado por Murray. Novamente a oposição entre o resguardo e exaltação se faz presente, dessa vez entre o protagonista e sua cliente, interpretada por Sharon Stone.

Uma aproximação entre a quietude de Avigal e Fioravante, enquanto um par romântico, distanciará o filme de seu lado humorístico mais exaltado, que encontra em Allen seu núcleo de força, quase de resistência. Ocorre uma espécie de disjunção de base no filme: sua vontade de humor e sua vontade de trabalhar um lado mais sensível não se coadunam, muito pelo contrário, parecem sempre estar em disputa, gerando estranhamentos que dizem muito mais respeito à uma falta de coerência em seu olhar e construção do que propriamente a um efeito premeditado. Evidência máxima seja talvez a cena em que Avigal e Fioravante se beijam no bosque, na qual o humor surge quase que involuntariamente para anular o fundo mais sensível que, supostamente, deveria existir ali. Nenhum dos polos – cômico ou dramático – se sobrepõe, ambos se mostram incompatíveis, se anulam, e são de situações como essa que brota a estranheza involuntária, inerte e vazia que permeia o filme.

Seja pela forte presença de Woody Allen (numa das raras aparições fora de um filme seu) seja pela forte presença da cidade de Nova Iorque, o referencial do filme é bem explícito: comédias românticas que se passam na cidade em questão, em especial os próprios filmes de Allen. Tudo parece, porém, distancia-lo disso que o mais inspira. Sua profusão de elementos quase nonsenses e deslocados da trama e a forte bipolarização entre suas tentativas de humor e ternura geram uma sensação quase esquizofrênica. Não existe passagem e convivência entre o dramático e o cômico, algo que mesmo em seus filmes menos expressivos, Woody Allen foi capaz de realizar com maestria (vide seu último Blue Jasmine, em especial sua sequência final, culminando com Cate Blanchett sentada no banco e olhando para o horizonte com sua maquiagem toda borrada). Em Amante a Domicílio ambos parecem antes se extinguir, culminando em cenas como a já mencionada do parque; a cena em que Turturro, durante o sexo com as clientes, percebe que está apaixonado e a percepção/decisão de Avigal de que está apaixonada pelo personagem de Liev Schreiber.

Interessante, nesse sentido, pensarmos a presença de Woody Allen e de seu personagem no filme. Turturro busca filmar Allen como o próprio Allen o faz em seus filmes. Uma emulação que, apesar da inegável força cômica de Allen, através pura e simplesmente de sua presença, parece denunciar quase toda a fragilidade do filme. Para além da já mencionada disjunção de base entre o cômico e o dramático, um querendo anular o outro, as situações desenvolvidas em cada polo parecem sempre vir de forma emergencial, abrupta, já ciente de que o que a precedeu não funcionou. Na comédia isso parece ser mais evidente, pois o apelo ao absurdo se faz de forma muito mais notável, sendo canalizado, quase sempre, todo na figura de Allen. Se há uma referencia que Turturro alcança, em relação à obra de Woody Allen, não são a de seus grandes filmes, e sim seus piores, principalmente alguns de início de carreira como O Que Há, Tigresa?, no qual essa ansiedade em fazer as cenas “funcionarem” resulta sempre num apelo desbaratado ao humor nonsense.

Esse princípio da disjunção, que opera na base de Amante a Domicílio, torna-o um filme indelevelmente marcado pelo arrependimento, insegurança e consciência de sua fragilidade a cada cena, a cada segundo. No final, nos resta apenas a indiferença ao que se passou.

Guilherme Savioli

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