Ano VII

Toque de Mestre

quinta-feira abr 24, 2014

Toque de Mestre (Grand Piano, 2014), de Eugenio Mira

É logo nos primeiros segundos de Toque de Mestre que vemos a carta de intenção de Eugenio Mira. Ou melhor, desenho de intenção, uma vez que, definitivamente, não é pela palavra que se expressa o diretor: um plano sequência, com movimento de câmera virtuoso, nos leva de um piano sendo descarregado à estatua do homem que, mais tarde, descobriremos ser peça fundamental nas engrenagens da trama do filme.

Embora sutil, o plano sequência sugere, com a movimentação fluida da câmera, a ligação inquebrável existente entre os dois objetos, o piano (meio) e a estátua (a imagem do mestre). Todo o desenrolar do longa leva a esta conexão, que se manifesta diretamente na narrativa, compondo o pequeno McGuffin, e, também, na relação que o próprio filme estabelece com outros cinemas, outros mestres.

Esta segunda relação é problematizada com uma clareza bastante surpreendente: a motivação do vilão, além de conseguir fazer o personagem de Elijah Wood tocar o concerto e, assim, adquirir a chave que está dentro do piano, é colocar em crise o pianista. “Você é um virtuoso, mas só toca as composições dos outros, não cria nada seu”, diz o vilão que, maestro diabólico, usa a mira de raio laser como batuta. Tal fala nada mais é do que, literalmente, a chave para o entendimento da autorreflexão que Toque de Mestre se propõe a fazer. O virtuosismo de Eugenio Mira, com suas composições em split-screen, seu uso apurado das cores – majoritariamente o vermelho -, sua arquitetura do medo construída com o brilhante uso do espaço e seu suspense rigorosamente ritmado, foi composta pelos mestres Alfred Hitchcock, Brian De Palma e Dario Argento e tocada magistralmente pelo cineasta espanhol.

Não é preciso muito esforço para aceitar Toque de Mestre como um grande gesto maneirista: vendo-se incapaz de superar os grandes mestres, que atingiram degrau inalcançável de perfeição na arte em que se manifestaram, o que resta ao discípulo – nascido, azar dos azares, na época errada -, senão potencializar os traços, dobrar e dobrar-se, obsessivamente, sobre a forma? De Palma e Argento assim se portaram diante de Hitchcock. E, foram além, fazendo do gesto maneirista um gesto revelador, o gesto Scooby-Doo, que remove a máscara do bandido não apenas uma vez, mas duas, expondo o caráter de ilusão, de fantasia mentirosa, próprio da imagem cinematográfica. Mira escolhe um caminho mais modesto, embora tão interessante quanto, colocando em evidência a própria incapacidade de criar algo novo.

Absolutamente preciso, o diretor escolhe potencializar justamente o traço fundamental de todo cinema que, assumidamente ou não, é hitchcockiano: a desvalorização daquilo que é herança do universo literário. Em outras palavras: pouco importa o roteiro, a profundidade e complexidade dos personagens, a verossimilhança, seja a psicológica ou a dos acontecimentos. Não é que o roteiro de Toque de Mestre seja inverossímil. Não. Ele é absolutamente inverossímil. Tomando alguma liberdade, é possível afirmar que não se trata de um roteiro com um McGuffin dando movimento a parte da trama, mas um grande Mcguffin em si mesmo. Uma mera desculpa, um reles meio para a criação de imagens e melodias belas e tocantes. O roteiro é como o piano mostrado no filme. Estando brilhoso ou quebrado, como na última cena, serve para um único propósito, que é o de ter alguém o tocando.

A resposta para o problema da impossibilidade (na era dos “teclados” touch screen, talvez seja bastante improvável conseguir originalidade) do novo é simples: que se goze o deleite provocado pela execução impecável, pelo talentoso de ouvido/olho apurado. Apesar do tom positivo, Mira, por não ser cego, não pode escapar do pessimismo. O cineasta sabe que, no mundo em que os celulares dividem a atenção do público, no mundo em que há muito para ver e pouco para olhar, não interessa o quão bem tocado e virtuoso seja o concerto. “Não importa se você errar as notas . A plateia nunca sabe a diferença”, lamenta o maestro diabólico da batuta de laser.

Wellington Sari

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