Ano VII

Crazy Horse

quarta-feira jan 15, 2014

Crazy Horse (2011), de Frederick Wiseman

"Não se trata mais de uma questão de realidade ou ficção, ou de uma transcender a outra. Trata-se, decerto, de outra coisa. O que? As estrelas, talvez, e os homens que gostam de olhá-las e sonhar" (Jean-Luc Godard)

Durante mais de quatro décadas a crítica recorreu ao senso comum para recepcionar a obra de Frederick Wiseman: "cinema de observação" e "fly on the wall" são expressões que balizam praticamente todas as teorias sobre seu cinema – talvez reforçadas por um mecanismo próprio, tanto de execução quanto de abordagem, que pouco ou nada mudou ao longo de seu percurso.

Assim seus filmes, sempre fechados (literalmente) num grupo de pessoas dentro de uma determinada instituição (escolas, quartéis, hospitais etc.), recebem sua segunda e derradeira característica: laboratórios da vida em sociedade, reflexo do macro pelo micro, (insira aqui uma expressão sinônima). Nada mais injusto do que essa limitação: ao término de uma sessão de Crazy Horse, é difícil não sentir um certo vazio, saudades de uma rotina da qual por aquelas duas horas você fez parte e se apegou – e para isso, pouco importa conhecer ou não a obra pregressa ou as intenções de seu criador. O vínculo criado entre o filme (espaço, atmosfera, pessoas) e o espectador vem de um estágio anterior ao do intelecto – e se isso não é característica de um grande contador de histórias, não sei então o que é. 

O fato é que o "dispositivo Wiseman" desde sempre se utilizou de ferramentas do cinema clássico (e mais importante, narrativo): se não podemos falar estritamente em decupagem (já que é sabido que seus filmes são praticamente geridos na sala de montagem, a partir de até centenas de horas de material bruto), há uma preocupação em dar conta do tempo e do espaço, uma gramática própria que toma duração e encadeamentos de planos como solução a raccords e elipses. Manobras, como a de mostrar a porta do teatro antes de tomadas das ruas de Paris, que tornam o filme inteligível do ponto de vista formal e reforçam seu aspecto narrativo. O que seria a mencionada "câmera invisível" se não mais um artifício do cinema clássico? A própria placa de neon ao princípio do filme, além da óbvia conotação platônica, estabelece uma ideia cognitiva: assistiremos ao surgimento e desenvolvimento de um novo espetáculo ("Desejo"). E assim começamos com números que já são executados há anos e passamos a concepção e ensaios de outros novos. As características discussões em torno de questões burocráticas estão lá, principalmente para acentuar o arco dramático, mas assim como em La Danse e Boxing Gym, tratamos aqui de um filme de ação, e são os corpos em movimento os principais veículos a estabelecer as relações costumeiras (entre pessoas, espaço, instituição e poder), mas também entre ensaio e execução, entre o filme e sua própria construção – o processo criativo, enfim.

São os corpos em movimento, também, que nos fascinam, e são neles que o diretor concentra sua mise en scene - ou para ser mais justo, a mise en scene da mise en scene, uma vez que tratam-se de recortes de performances de palco. Abundância de corpos, luzes, sombras e cores (a matéria prima do cinema) por vezes transformando-se em planos-detalhe que beiram ao abstrato. A esta altura, pouco importa o quão "fiéis" as imagens são aos números de fato, ou se Kenneth Anger, Mario Bava ou Jack Cardiff são influências dos diretores do espetáculo. Estamos debruçados à teoria do realismo enquanto meio, não fim. Da necessidade do artista de transfigurar o mundo que se encontra naquele que seu olhar deseja – um sonho erótico em tecnicolor que provoca encantamento e traz de volta uma ingenuidade, a ingenuidade da descoberta.

Leandro Schonfelder

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