Ano VII

Filmografia Fassbinder – Parte 3 (1975-1977)

terça-feira dez 17, 2013

Mamãe Kusters Vai Para o Céu (Mutter Küster's Fahrt zum Himmel, 1975)

Primeira cena do filme. Mamãe Kusters (Brigitte Mira, como sempre, tocante) prepara o jantar com a ajuda do filho e da nora. Eles ouvem uma notícia trágica no rádio. Um homem em Frankfurt matou o chefe a pauladas e depois se matou. Mamãe comenta sobre a dureza dos tempos, e acrescenta que seu marido, papai Kusters, está demorando. A câmera filma tais personagens de perto, planos aproximados de suas tarefas domésticas. Imagens que remetem aos filmes do início da carreira: a Por Que Deu a Louca no Senhor R.? ou a O Comerciante das Quatro Estações. Aos poucos, a câmera, que então se postou na porta que separa a cozinha da sala, recua lentamente até mais ou menos onde seria a porta de entrada da casa. Toca a campainha. A notícia que chega é aterrorizante. Papai Kusters, esperado para o jantar, era o homem da tragédia anunciada.

A operação fassbinderiana para dar conta dessa mudança de perspectiva é sublime. A câmera sai do âmbito doméstico para flagrar os personagens cercados pelos batentes da porta, emoldurados no centro, olhando assustados para a porta, os maus ventos vindos de fora.

Mais tarde, Mamãe Kusters será manipulada por jornalistas, comunistas, anarquistas e até por seus parentes (Fassbinder era mestre em desagradar gregos e troianos). O final também é trágico, e novamente Fassbinder surpreende colocando na tela o roteiro, após a imagem congelada da pacata senhora assustada com o extremismo daqueles que prometeram ajudá-la. Nos EUA, o final foi modificado pelo próprio Fassbinder. E Mamãe Kusters vai para o céu de uma outra maneira.

Sérgio Alpendre

 

Medo do Medo (Angst vor der Angst, 1975)

Olhar para a família e ter uma sensação de vazio, como se nada ali fizesse sentido, ou fizesse parte de uma dimensão diversa daquela em que você está acostumado a habitar. Olhar uma outra pessoa e ver nela apenas o seu próprio vazio, um nada que assombra quanto mais se revela. Imaginem a atriz para viver Margot, uma personagem com esse tipo de tormento mental. Um nome que certamente deve vir à cabeça de um cinéfilo que fez a lição de casa é Margit Carstensen (ou Liv Ullmann, que no mesmo ano interpretou uma mulher igualmente perdida em torvelinhos mentais no impressionante Face a Face, de Ingmar Bergman).

Medo do Medo é um filme feito para a TV. Mas sabemos que Fassbinder não se empenha menos nesse tipo de trabalho, e que no ano anterior já havia entregado, também para a TV (indo depois para o cinema), a obra-prima Martha, um dos mais complexos estudos da submissão de uma alma (com a mesma Margit Carstensen no papel principal).

Medo do Medo é extremamente aflitivo, como se algo muito grave estivesse prestes a acontecer. E também muito pessoal. Estão lá, fora Carstensen, atriz mais constante em suas grandes obras, o amante de Fassbinder (Armin Meier, com sua típica má interpretação), a mulher com quem o diretor viveu uma relação ambígua de dependência espiritual e sexual, mas com quem no momento sentia não haver nada além de indiferença (Irm Hermann, no papel da irmã desprezível de Margot), Kurt Raab, num papel pequeno mas de suma importância, como tantos outros que interpretou para Fassbinder, e Brigitte Mira, desta vez num papel claramente antipático.

Sérgio Alpendre

 

Eu Só Quero Que Vocês me Amem (Ich Will Doch Nur, Dass Ihr Mich Liebt, 1976)

A visão de Fassbinder sobre a sociedade burguesa e as possibilidades de constituição do sujeito na opressora sociedade capitalista nunca foi tão clara e didática; o que torna Eu Só Quero que Vocês me Amem próximo de O Dinheiro de Bresson.

Peter é um pedreiro, um construtor, um trabalhador incansável; ergueu sozinho a casa dos pais, era o melhor filho que um pai poderia querer, mas nunca foi reconhecido pela família, fato que o marcará para sempre. Casado e dispensado pela família, leva a esposa para Munique onde se torna um chefe de obra exemplar. Na cidade grande, faz de tudo para agradar a esposa, para ser amado, mas acaba engolido pela sociedade capitalista, e, cada dia mais, se envolve em dívidas, caindo nas armadilhas do consumo, na sedução da tecnologia, o que o enreda em intermináveis prestações e juros e mais juros.

Machado de Assis dizia que “o filho é o pai do homem”. Fassbinder leva a ideia às últimas consequências e não se pode descartar a relação entre pai e pátria, filho e futuro da Alemanha. O que aproxima Eu Só Quero que Vocês me Amem de outros filmes de Fassbinder como Berlin Alexanderplatz. Peter é um dos muitos Franz Biberkopfs do diretor. Cristos modernos corrompidos pela sociedade e pelos seus mecanismos de opressão e exclusão criados e sedimentados no pós-guerra.

Do ponto de vista formal, impressiona a capacidade de Fassbinder de mover a câmera teatralmente, criando planos densos de significado; o uso sempre marcante dos espelhos; a montagem cheia de elipses; a inserção de cenas que, do nada, prenunciam um trágico desfecho e a maneira como o diretor pontua e costura a narrativa usando as flores que Peter simbolicamente oferece a todos para que o amem.

Cesar Zamberlan

 

O Assado de Satã (Satansbraten, 1976)

Na efervescência alucinada, Fassbinder estava sempre a criar no calor de sua atribulada vivência pessoal. O Assado de Satã surgiu num dos momentos mais críticos de sua trajetória. Em 1974, ele fora acusado de plagiar o escritor Cornell Woolrich no roteiro de Martha, entre outros infortúnios. Fez, assim, um vômito intelectual recorrendo ao conceito de “teatro da crueldade” do dramaturgo francês Antonin Artaud (1896-1948). O autor pregava a ideia de uma “verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de expressões e de mímica, linguagem de gritos e onomatopeias, linguagem de palavras”.

Todo e qualquer gesto, palavra e diálogo de O Assado de Satã tem a profunda carga de maneirismo que torna um filme de fato diferenciado na obra de Fassbinder. Há muita raiva evidenciada dentro e fora da tela – contra o capitalismo, contra a sociedade alemã, contra as relações familiares, contra os envolvimentos afetivos. Ao mesmo tempo, trabalha numa chave farsesca tão gritantemente exagerada que se pode ouvir a gargalhada de Fassbinder com tudo aquilo que ele coloca em cena, sem nenhum tipo de lição sociológica ou investigação psicológica. Interessa a intensidade do excesso e o distanciamento emocional. Importa o choque da interpretação, o exagero quase clownesco, o artifício do rompante, a risada estridente e a redução do humano ao mais próximo de uma caracterização animalesca, com nenhum ranço de naturalismo ou emoção, mas com poses e olhares afetados, grunhidos animalescos e muita sujeira.

Marcelo Miranda

 

Roleta Chinesa (Chinesisches Roulette, 1976)

O cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder talvez seja um dos grandes diretores do olhar. Em O Amor é mais Frio que a Morte, seu primeiro longa-metragem, já é evidente o balé de olhares, sua sensibilidade para captá-los, para extraí-los dos atores. Facilitou bastante que todo o grupo andava unido, frequentava os mesmos lugares, e trabalhava junto, no cinema e no teatro. Graças a essa comunhão o diretor conseguiu tal entrosamento.

O ápice da "melodia do olhar" que Fassbinder atingiu aconteceu em Roleta Chinesa, na famosa cena da ciranda de olhares durante uma espécie de jogo da verdade (que Fassbinder adorava jogar nos momentos de lazer). Aqui estão dois atores frequentes em seus filmes: Ulli Lommel e Margit Carstensen. Mas também Anna Karina, que se saiu muito bem na ciranda, e Alexander Allerson. Na verdade, o filme todo é uma roleta chinesa de olhares filmada com esmero por Michael Bauhauss.

A maior ardilosa da história é a filha do casal principal, que Fassbinder não poupa por ser paraplégica, ao contrário, faz com que ela seja bem cruel em sua procura pela transparência nas relações entre os adultos. É ela que arma o encontro de seus pais com os respectivos amantes, desmascarando o jogo burguês do matrimônio moderno. Outros personagens entram no jogo de crueldade, com destaque para a governanta Brigitte Mira e seu filho Volker Spengler, donos das cenas mais sarcásticas do filme (como o corte para o moedor de carne em ação após uma cena de impacto).

Sérgio Alpendre

 

A Mulher do Chefe da Estação (Bolwieser, 1977)

Como em praticamente toda a filmografia de Fassbinder, o que está em primeiro plano em A Mulher do Chefe da Estação é a perda dos valores morais, retrato da Alemanha no século XX. Realizado originalmente para a TV, o diretor deixa de lado os diálogos crus e a exploração do corpo para acentuar um sórdido e crescente jogo manipulatório.

Cansada da rotina proporcionada pelo marido, sempre preocupado com o trabalho, Hanni o trai descaradamente sem perder o controle sobre ele, que cria uma dívida justamente com o amante dela. O casal sintetiza o olhar de Fassbinder sobre os papéis masculinos e femininos numa relação – o homem, passivo e desestimulado; a mulher, insatisfeita e libertária.

Nesse filme inexiste a compaixão usual do cinema hollywoodiano, de redenção completa ao maior prejudicado. Bolwieser é punido por sua letargia e pela maneira como fecha os olhos às ações da mulher. Tanto é assim que vai para a cadeia justamente por suas palavras, ao cometer perjúrio por afirmar que nada sabia sobre os casos da mulher.

Um golpe irônico construído por muitas cenas de espelhos e vidros, em que os personagens se observam e olham para os outros por essa forma intermediária. Geralmente é o corpo que sinaliza para a podridão na ótica de Fassbinder. Como teve que suavizar a sua abordagem, esse papel foi dado às imagens refletidas, de onde extraímos a vergonha pelo que são (humanos/alemães).

Paulo Henrique Silva

 

Mulheres em Nova York (Frauen in New York, 1977)

A questão incontornável num filme de Fassbinder – estejamos falando de um cânone como Berlin Alexanderplatz ou de um telefilme menor como Pioneiros em Ingolstadt – é a fascinação que ele exerce.

No caso de Mulheres em Nova York, parte significativa desse fascínio é a percepção de como Fassbinder faz um grande filme com pouquíssimos elementos (mudanças de cenários, atrizes, espelhos, vidros e movimentos de câmera). A evidência de como o cineasta faz da forma o seu discurso é arrebatadora – evidência esta que só pode ser ignorada por um espectador essencialmente conteudista.

Temos uma vez mais como tema a crítica ao casamento, desta vez com o recorte de mulheres endinheiradas e fúteis. A disposição das atrizes no plano, o movimento dos corpos, a predominância do figurino preto de Margit Carstensen (constante elemento de morte), os espelhos que conectam dois espaços físicos distantes: cada detalhe sempre a serviço do filme.

Mulheres em Nova York é o arco de Mary Haines de esposa apaixonada crente na fidelidade e amor incondicional do marido à mulher cujo cinismo dialoga demais com a consciência da heroína de Fitzgerald em O Grande Gatsby. Por ser um filme essencialmente sobre a condição da mulher numa sociedade conservadora, nada mais natural que aquele aquário que prendia os peixes no primeiro plano do filme se transforme no aquário das mulheres na parte final.

Heitor Augusto

 

Despair (1977)

Rodado em inglês, com elenco internacional (Dirk Bogarde, Andréa Ferréol) e grande orçamento, Despair é o primeiro filme de Fassbinder com roteiro não assinado por ele (foi escrito por Tom Stoppard a partir do romance de Vladimir Nabokov). Estão presentes os arabescos visuais, operados por Michael Ballhaus; a questão do duplo, velha obsessão fassbinderiana; e a opção pelo enclausuramento dos personagens em movimentos de câmera semi-circulares, em recortes do cenário e em sombras (que podem se movimentar, como no estupendo encontro de Hermann com o homem que é tomado erroneamente por seu duplo), elementos caros ao diretor.

Não só isso: o tédio de uma burguesia que vê mas não enxerga a ascensão do nazismo; o tédio que faz matar para que se assuma outra identidade, esquecendo-se dos inevitáveis rastros que essa ação irá deixar; a relação sexual com a esposa adúltera, manchada pela falsidade (que pouco difere de Berlin Alexanderplatz, cuja história, por sinal, se passa mais ou menos na mesma época), tudo isso é indubitavelmente fassbinderiano.

Pode-se argumentar que Dirk Bogarde não é um ator para Fassbinder. Ora, ele atuou para Joseph Losey (em vários filmes) e para Luchino Visconti (em Morte em Veneza). Losey e Visconti são duas óbvias influências no manancial de Fassbinder. É de se espantar que Bogarde não tenha atuado em mais filmes do diretor, apesar de que Bogarde reclamou de uma suposta remontagem (não comprovada) feita por Fassbinder (conforme conta Thomas Elsaesser em seu livro Fassbinder's Germany).

É inevitável considerar Despair um capítulo importante nessa fase da obra de Fassbinder. Voltando à ideia da casa que ele sempre defendeu, poderia ser considerado o porão. Onde habita a estranheza.

Sérgio Alpendre

 

Alemanha no Outono (Deustschland im Herbst, 1977), de Fassbinder e outros diretores.

Alemanha no Outono é um filme em episódios onde diversos cineastas que construíam o cinema alemão no momento narram, cada um de sua forma, um pequeno relato do momento histórico vivido pela Alemanha então. O filme diz que é irrelevante separar o que foi feito por cada um deles, no entanto os episódios são apresentados separadamente, o que constrói uma ideia confusa, já que a forma do filme parece separá-los claramente. Pois falemos do que nos interessa aqui: o episódio de Fassbinder.

Temos como sempre a pulsão de cada personagem em cena. No entanto, estamos aqui num mundo menos louco e mais atormentado. Na primeira imagem, vemos o cineasta interpretando a si mesmo – ele pede, no telefone, para que uma jornalista mude uma entrevista que fez, por essa estar histérica. A negativa o deixa inquieto. Vemos ele sendo entrevistado na imagem seguinte, e ele destrincha sobre quem vê seus filmes mudar sua relação com os casamentos, ver de forma concreta o que eles são.

O que vemos em cena adiante  é o casamento do próprio entrando em uma crise pautada pelo mundo pelo qual circula o cineasta. A loucura política que se faz na Alemanha, expressadas em uma entrevista que ele conduz com a pauta sobre o terrorismo, liberdade e especialmente o sentido democrático do poder, o afeta. Vemos Fassbinder se desfazendo em cena, grosseiro, louco, com uma metodologia de trabalho bem interessante – ele grava sua voz decupando possíveis cenas.

O tormento dele aqui se assemelha menos à loucura melancólica de outros filmes de sua autoria, o terror do mundo é algo imediato. Quando ele cai ao chão, resta apenas a escuridão. Um pedido por um ditador carinhoso da parte de uma democrata encerra a entrevista que o atormenta, de forma melancólica.

Guilherme Martins

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