Ano VII

Três Filmes, um ano e o poder subversivo

terça-feira dez 17, 2013

Três filmes, um ano e o poder subversivo do melodrama em Fassbinder

Por Fernando Oriente

Rainer Werner Fassbinder é um dos maiores da história do cinema por um grande número de motivos, mas se quisermos apontar três obras isoladas em um mesmo momento histórico que comprovem isso, essas podem ser O Direito do Mais Forte (1975), Medo do Medo (1975) e Eu Quero Apenas Que vocês Me Amem (1976). Nesses filmes feitos em apenas um ano, o cineasta alemão atinge uma força dramática assombrosa, elevando e subvertendo ao máximo as potências do melodrama, gênero tão fundamental para ele. Os três longas estão impregnados em cada fotograma da habilidade de encenação de Fassbinder e de sua capacidade em preencher cada espaço de uma narrativa poderosa com seu discurso corrosivo.

O cinema de Fassbinder é um grande mosaico ocupado por habitantes de uma Alemanha incapaz de se perdoar de seus crimes, onde só é possível esquecer ao alienar a si e aos outros e onde a opressão física e existencial é inevitável para seus personagens que teimam em não ver logo de cara a abjeção do mundo que os cerca. Cada um de seus filmes é o direcionamento do olhar para um fragmento desse universo imenso. Esses três filmes citados podem ser vistos como narrativas que acontecem ao mesmo tempo, em diferentes locais da Alemanha, mas com a mesma matéria constituinte de seus dramas e o mesmo ambiente impregnado pela capacidade de Fassbinder em esmagar os tipos humanos que cria numa prisão sem escapatória

Em Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem, bem como em O Direito do Mais Forte e em Medo do Medo temos filmes que são a comprovação de como um gênero tão comum no cinema clássico pode ser transformado em agente de possibilidades dramáticas. O melodrama nas mãos de Fassbinder atinge resultados opostos daquilo que para Brecht era o papel desse gênero dentro da dramaturgia burguesa. Se para o dramaturgo o melodrama limitava as denúncias de seus enunciados por meio de catarses no público, que não provocavam nada além de comiseração momentânea e tendências assistencialistas (além de reforçar valores morais), para Fassbinder ele se torna um mecanismo para elaborar um complexo sistema de valores e um estudo profundo em suas múltiplas camadas de um corpo social e estatal corroído.

Valores morais são princípios de opressão para os personagens de Fassbinder. Desde o Fox de O Direito do Mais Forte, passando pela dona de casa Margot de Medo do Medo e pelo operário de construção Peter de Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem. Mas não só os protagonistas são concebidos como oprimidos, toda galeria de personagens que habitam esses três filmes estão em igual situação de esmagamento. Ser mais cruel e egoísta é mecanismo para atenuar isso. Quanto mais pérfido o caráter e quão maior a capacidade de subjugar o outro tiver uma pessoa, mais condições de sobrevivência ela encontrará nesse darwinismo político-social de Fassbinder.

A principal força do cinema de Fassbinder está na encenação, no rigor da mise-en-scène. Temos sempre ambientes tornados agressivos e opressores pelos posicionamentos e movimentos da câmera, pelo uso preciso da profundidade de campo, das aproximações, recuos e closes em rostos e detalhes de corpos e objetos. Cada enquadramento tem função de pontuar sensorialmente a angústia do drama. Seus filmes visam sempre construções dramáticas que penetram a alma do espectador, ao mesmo tempo em que abrem um leque de interpretações que levam a implosão da sociedade burguesa.

Os personagens e as ações são vistos sempre de maneira difusa, seja pelos excessos e elementos no quadro (que obstruem uma visão “limpa” do cenário) ou por meio de ângulos fechados em que os rostos e expressões nunca indicam claramente os tormentos internos que escondem.

Medo do Medo é um dos filmes mais emblemáticos de Fassbinder. Nele estão elementos que caracterizam os temas centrais de sua obra. O medo, que aparece no título ampliando seu sentido na repetição da palavra, é força propulsora da obra. Na forma, nos conteúdos e na condução do longa, tudo remete e enaltece a esse  discurso do diretor.

Para Fassbinder, o medo é uma força incontrolável, um agente presente em toda a sociedade alemã, uma sensação que domina todos os espaços e que se manifesta a qualquer momento e em qualquer um. Não se trata apenas de um sentimento isolado, ocasional e que pode ser suprimido. O medo para o diretor é a forma final, ao mesmo tempo em que é o efeito e a causa maior de uma sociedade esmagada, em que a angústia comanda a todos e a crueldade, a opressão, o individualismo e a incapacidade de interação entre os seres sufoca tudo. Esse ambiente podre e corroído é a Alemanha de Fassbinder, esse espaço repleto de jaulas onde seres se debatem em eterno jogo de poder, um jogo sem final possível em que a regra é o aniquilamento existencial do outro. Medo no longa (bem como em todo o cinema do realizador) é opressão, é angústia, é repressão, é a condição atávica do próprio viver.

Os personagens de Medo do Medo, com (uma aparente) exceção da protagonista Margot, aparecem na tela como caricaturas intencionais, figuras criadas pelo diretor em cima de características marcantes de elementos representativos do que de pior existe nos seres. Cada um dos tipos representa alguma abjeção, ao se unirem, formam um conjunto de agentes que tornam os sofrimentos de Margot impossíveis de serem amenizados. Neles estão a crueldade, a inveja, a mesquinhez, o egoísmo, a ignorância, a cobiça, o sadismo e o desejo constante de anular o outro.

A composição do quadro, com a disposição dos atores e objetos em cena, a geometria do campo e a luz que toma esses espaços claustrofóbicos fazem de cada ambiente um catalisador dos conflitos de Margot. A dona de casa resignada será vítima de sua própria ignorância e preconceitos, mas terá um breve sorriso em seu rosto mediante a um destino mais dramático que o seu. Essa ambiguidade momentânea é um comentário comum no cinema de Fassbinder, um dispositivo que elimina a aura de “pobre inocente” de seus personagens. É como se a crueldade entrasse em qualquer um, por mais vítima que esse seja.

 O sonho de ser um “bom burguês” é o que move Peter, personagem central de Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem, um título que se mostra melancólico ao mesmo tempo em que cínico. Os sofrimentos que parecem não ter fim na vida do protagonista são provocados, antes de tudo, por seus próprios e incontroláveis desejos de felicidade e estabilidade afetiva e financeira. Felicidade que ele quer dar aos outros (mãe, mulher, pai, filho), mas que no fundo revelam o grau da patologia de seus anseios burgueses e sua deprimente resignação aos valores e códigos sociais conservadores. Dar aos outros, aos que ama, é o caminho lógico para Peter ser aceito e amado.

Sem cair em psicologismos simplistas, Fassbinder constrói os traumas e expectativas do personagem por meio de flashbacks, ao mesmo tempo em que anuncia a sua condenação na construção não-linear da montagem. Poucas cenas servem para deixar claro o relacionamento disfuncional de Peter com os pais. A partir dessa tensão introduzida, Fassbinder pode desenvolver a construção da queda do personagem, passando pelo casamento, a mudança de cidade, o nascimento do filho e as relações de trabalho. A cena em que o diretor mostra a punição de Peter quando criança, em que a bondade do menino é paga com dor, guarda a chave dos procedimentos com que a vida irá castigar esse personagem incapaz de perceber que existe para ser constantemente esmagado pelas engrenagens do ambiente que o cerca e aprisiona constantemente.

Conforme Fassbinder intensifica os sofrimentos de Peter, tirando o máximo de amplitude de cada construção de cena por meio de matérias básicas do cinema como trabalho de câmera, cortes e organização do quadro, ele faz que Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem parta do melodrama e se transforme em drama de classe, filme político, suspense e terror psicológico. O cinema não pode ser mais intenso do que isso.

Em O Direito do Mais Forte, o único desses três filmes que não foi feito para a televisão, Fassbinder interpreta ele mesmo o protagonista Fox (mais um personagem na galeria de filmes com o nome de Franz Biberkopf – protagonista do romance Berlin Alexandreplatz de Alfred Döblin, que irá se transformar na futura obra-prima do diretor). Fox é um típico pária social, uma vítima política do estado de coisas e da situação socioeconômica do capitalismo alemão.

O protagonista do filme é homossexual como Fassbinder o era. Aqui a opção sexual é fator forte de ampliação do esmagamento do personagem. A moral alemã (mundial) tolera muito pouco, e não admite o homossexualismo. A culpa que atormenta Fox vem muito de sua condição sexual, que o faz sentir um eterno devedor, alguém que precisa “pagar” para exercer sua sexualidade.

A maestria de encenador de Fassbinder ecoa por todo o filme, mas as sequência do jogo de poder no qual o amante sofisticado de Fox o subjuga e domina estão entre os pontos altos da carreira do diretor. Em O Direito do Mais Forte fica explícito a forma como para o diretor os relacionamentos afetivos e o desejo sexual são ações políticas, são uma constante forma de opressão, uma pulsão incontrolável por manipular o outro, em que o objetivo é aniquilar o objeto de desejo para se auto-determinar como sujeito.

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