Ano VII

Mostra SP – Balanço Parcial

terça-feira nov 22, 2011

 

Um balanço parcial da 35ª Mostra Internacional de São Paulo

Muito se falou sobre a redução de títulos nesta 35º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: de quase 500 para, aproximadamente, 250, incluindo curtas-metragens. Não entrarei, aqui, no mérito de se esta foi uma opção acertada ou não da organização do evento (ou, até mesmo, se foi realmente uma “opção”). O fato é que agora, ainda sob o efeito anestesiante de duas semanas de correrias e mudanças de plano (forçadas ou não) de último instante, é hora de tentar organizar, classificar e hierarquizar um pouco as coisas (sim, este é o momento em que a função do crítico é assaltada por ímpetos mezzo médico, mezzo contador).

Primeiro diagnóstico (ou seria sintoma?): Órfãos. Pergunta: por onde andam nossos pais? Misto de Conte Comigo e Ninguém Pode Saber, o simpático Os Gigantes é suficientemente bom para fazer descabidas tais comparações. Além disso, foi esta produção belga que me abriu essa edição do evento, já, de cara, trazendo consigo o tema mais recorrente em minha seleção (pois afinal, mesmo que com o choroso lenga-lenga “oh! como a Mostra deste ano está pequena” é pouco provável que 250 filmes sejam assistidos em trezentas e tantas horas de festival). E para não cruzarmos muitas fronteiras (a migração sendo talvez a segunda grande recorrência nesta edição do evento, de Adeus a Low Life), faz parte desta mesma família desmembrada o francês (e igualmente satisfatório) Angèle e Tony, com a talentosa Clotilde Hesme interpretando uma problemática mãe solteira. Fosse esta uma produção independente americana, a atriz de Amantes Constantes deveria ir abrindo espaço em sua estante para a estatueta do tio Oscar: sua personagem, recém saída da prisão, seria irresistível à Academia.

E já que a conversa está indo para o outro lado do Atlântico, também abandonados estão os personagens do batido The Dynamiter, que só vale ser mencionado pelos atores, bons e desconhecidos. De resto, faz apenas aquilo que o cinema dito independente de seu país vem fazendo já há um bom tempo; ou seja, mostra (1) o desespero econômico e (2) a falência da estrutura familiar através de (3) relações disfuncionais com (4) personagens desesperançados. Com o final do ano se aproximando a toda velocidade, The Dynamiter é altamente indicado àqueles que estão considerando O Inverno da Alma para o topo de suas listas anuais.

Deixando estas três arriscadas investidas de lado, partimos aos chancelados por consagrações em grandes festivais (leia-se: Cannes): Respirar é uma produção austríaca que, influenciada pelos irmãos Dardenne, serve apenas para nos mostrar que pode existir em seu país um cinema menos árido do que aquele proposto por Ulrich Seidl ou Nikolaus Geyrhalter (também é válido dizer que em momento algum ele é tão interessante quanto os dementes trabalhos destes cineastas, e que o prêmio do júri de melhor da Mostra trata-se, obviamente, de uma piada); já Las Acacias é argentino, o que por si só já o torna uma espécie de obra-prima entre alguns cinéfilos e críticos brasileiros, mas o fato é que o ganhador da Câmera de ouro no Festival de Cannes (prêmio concedido ao melhor filme de estréia), não é nada além de uma diluição em sacarose de Lisandro Alonso, tornando mais afável (com criancinhas de fraldas sujas e vira-latas carentes) a entediante e festivalesca viagem de pobres almas a uma possível nova vida. No final, tudo o que Pablo Giorgelli (o diretor desta fofura) quer, é contar uma história de amor (e no percurso faturar alguns prêmios).

Mais experientes, temos Mohammad Rasoulof com Adeus, um sólido drama sobre uma grávida que tenta fugir do Irã, e Andreas Dresen, com o filme com o título mais wendersiano em exibição: Parada em Pleno Curso. De certa forma é uma refilmagem do insuportável Minha Vida (sim, você irá ter que me desculpar, pobre leitor, pois estou de fato me referindo àquele horror com o Michael Keaton e a ex do astro de Top Gun). Incrivelmente o resultado é apenas medíocre, sendo por mim enquadrado nesta categoria dos “sem pais”, pois sabemos exatamente onde uma produção alemã, que começa em um consultório médico com o profissional explicando detalhadamente ao paciente – um pai de família -, que o câncer cerebral maligno que desenvolve rapidamente em sua cabeça é irreversível, irá acabar: órfãos na certa!

Entre as apostas de Cannes, fico com Oslo, 31 de Agosto, que se tivesse alguma chance de ser distribuído no Brasil, provavelmente viria com o subtítulo “um dia na vida de um viciado em reabilitação”. Você pode achar o filme excessivamente modernoso – com suas fumacinhas em raves e imagens de arquivo com depoimentos desencontrados em voice over -, mas não será em qualquer lugar que você irá encontrar cenas como aquela da visita do personagem principal à casa de seu amigo de infância, ou, ainda, a conclusiva seqüência final. Irregular e ligeiramente afetado, mas ainda assim muito belo, dos mais belos desta seleção.

E se já não é de hoje que aclamações em festivais não se convertem em bons filmes, decepcionantes também se mostraram alguns trabalhos de cineastas promissores, caso do fraquíssimo Loverboy, do romeno Catalin Mitulescu; do insuportável O Futuro, da pernóstica Miranda July, e do confeitado Frango com Ameixas: a tentativa de Marjane Satrapi em fisgar os órfãos (argh) de Amélie Poulain.

Cineastas bem mais estabelecidos também não se mostraram particularmente inspirados: Robert Guédiguian e sua esquemática comédia social As Neves do Kilimanjaro (nada a ver com o clássico conto de Ernest Hemingway, ufa!) que, fosse Alejandro González Iñárritu a conceder o prêmio principal, certamente se sairia como campeão; Nicholas Klotz e sua esposa,  Elizabeth Perceval, que com seu Low Life parecem preocupados em propagar e eternizar aquele saudosismo (de quem viveu) e estimular a culpa (de quem não havia nem nascido) do fatídico Maio de 68. O enredo gira em torno de um triangulo amoroso entre um casal de jovens franceses e um imigrante ilegal do Afeganistão. Todos belos, engajados, sensíveis e intelectuais, passam seu tempo em caves similares àquelas de Matrix Reloaded – e os diálogos que saem de suas articuladas bocas não são muito menos risíveis do que aqueles da trilogia dos Wachowskis. Menos decepcionante é o novo “mais do mesmo” de Naomi Kawasi, Hanezu, mas o piloto automático da diretora japonesa está conduzindo-a por caminhos que perigam banalizar um pouco daquilo que tornaram grandes alguns de seus filmes anteriores.

Outro que adora refazer sempre o mesmo filme é Hong Sang-soo, com a diferença de que O Dia em que Ele Chegar é excepcional, no mesmo nível de seus melhores momentos (Mulher na Praia, Turning Gate). Novamente, o maior diretor sul-coreano em atividade, parte de uma premissa bastante familiar: um consagrado cineasta em crise retorna à capital Seul para buscar apoio em um amigo de longa data. A razão do destaque que O Dia em que Ele Chegar deve ter – mesmo em uma filmografia tão consistente quanto a de Hong –, decorre do fato das repetições e dos recorrentes acasos que, inegavelmente, sempre fizeram parte do trabalho do cineasta e que, aqui, se tornaram elementos constituintes não apenas da trama e do fluxo narrativo, mas do dilema do próprio realizador: algumas sequências parecem alternativas para outras que a antecederam.

Também seguindo firme com suas propostas de cinema, Alain Cavalier faz de Pater um divertido misto de diário, documentário e ficção (se existiu um filme tipicamente “francês” nesta seleção, foi este); Jafar Panahi, com Isto Não é Um Filme, um trabalho que funcionaria independentemente de qualquer absurdo político; enquanto Bruno Dumont prova, àqueles que acreditavam que Hadewijch representaria um ponto de virada em sua carreira, estarem enganados. Fora de Satã, retoma as bressonianas trilhas de A Vida de Jesus e A Humanidade (para não citar todos seus outros filmes), com um refinamento estético ainda maior do que em suas produções anteriores e, de sobra, a inserção de elementos do horror em suas usuais divagações filosóficas.

Nada surpreendente que estes cineastas (Hong Sang-soo, Alain Cavalier, Jafar Panahi, Bruno Dumont) justificaram nossas confusas duas semanas de Mostra, principalmente se comparado à surpresa que se revelaram os novos de Teresa Villaverde (Cisne) e Nuri Bilge Ceylan (Era Uma Vez em Anatólia, sem dúvida entre os melhores do ano). O mesmo deve ser dito da animação dirigida por Eric Khoo, Tatsumi: dividida entre as adaptações do mangaká Yoshihiro Tatsumi (entre as quais a melhor é aquela sobre o marido suicida que não quer deixar sua herança para a esposa, lembrando em tom Nagisa Oshima, particularmente Pleasures of the Flesh) e a trajetória profissional do cartunista japonês, da juventude à maturidade.

Não tão empolgante, mas certamente inesperado, é o bom grego Attenberg, de Athina Rachel Tsangari. Inesperado porque foi ela quem produziu Dente Canino, bobagem vencedora do Un certain regard em 2009, exibido na Mostra daquele ano, dirigido por Giorgos Lanthimos. Este atua em Attenberg e é parceiro de Tsangari, tornando assim inevitável a comparação. E é daí que esta fusão de Monty Python e Fassbinder pode ser bem recebida, já que temos algo menos preocupado em exibir-se genial (como o mencionado Dente Canino, uma espécie de Dogville grego) do que em contar uma história de ruína e luto – o interesse em Attenberg reside não em suas personagens freaks e seus trejeitos esquizóides (clichês do “circuito alternativo”), mas na maneira como a cineasta vai reduzindo este quadro ao longo de sua narrativa.

E, por fim, tivemos Fausto, talvez o mais aguardado do evento: o encerramento da 35º Mostra. Certamente, teremos tempo para explorá-lo quando de sua provável estréia, mas deu a impressão de se tratar de um ponto alto na filmografia de Sokurov, cuja carreira, há um bom tempo, vem sendo marcada por várias declinadas (o filme, aliás, reflete isso, formando um objeto que intercala instantes deslumbrantes com outros nem de longe). Revisto com a calma devida, sabe-se lá quando, confirmaremos ou não tal impressão.

Bom descanso e até o ano que vem!

Bruno Cursini

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