Ano VII

O Mestre

sexta-feira fev 1, 2013

O Mestre (The Master, 2012), de Paul Thomas Anderson

Quando pensamos em Paul Thomas Anderson, ainda vêm à mente os grandes panoramas de múltiplos personagens, conturbados e um tanto idiotas, servindo a vontade do diretor em estabelecer um registro cínico sobre o esfacelamento da integridade na sociedade americana. Em outro nível, também recordamos de longos, elaborados e, em boa medida, supérfluos planos, onde se faz evidente sua necessidade em exibir um domínio técnico do meio.

Parte destas características está, de fato, presente em toda sua filmografia. Nominalmente, seu apreço por tipos esquizoides e traumatizados, condenados a viver em um mundo de seres autocentrados, no qual não raro a relação conflituosa entre as pulsões de vida e de morte  irão pender à segunda, aos súbitos arroubos de violência.

Sua necessidade de recorrer a um grande elenco, no entanto, já é, há algum tempo,  prescindida. Na realidade, isso ocorre apenas em dois de seus seis longas-metragens: Boogie Nights e Magnólia. Mais usual em seus roteiros é a relação entre pares, preferencialmente entre dois homens com idades discrepantes. Pensemos na primeira cena de sua sólida estreia, Jogada de Risco.  Nela, Philip Baker Hall encontra um jovem John C. Reilly sentado, cabisbaixo, na entrada de um restaurante de estrada, próximo a Las Vegas. O velho compra-lhe um cigarro e oferece-lhe um café. Diz: “Eu quero te ensinar algo”.

Em Boogie Nights, é outro ator veterano, Burt Reynolds, quem oferece ao apalermado garçom, interpretado por Mark Wahlberg, a oportunidade de sair de seu marasmo cotidiano, possibilitando-lhe um estrelato alternativo, como protagonista em produções pornôs. As dinâmicas destas relações são sintomáticas: ascensão e queda dos rapazes; encontro, união, ruptura e reconciliação dos pares.

Em Magnólia (inegável esgotamento da proposta iniciada em Boogie Nights) há o enfermeiro, Philip Seymour Hoffman, com o velho em seu leito de morte e, em chave análoga, o mesmo moribundo (afinal, há dois idosos com cânceres avançados) com seu filho, Tom Cruise. A psicologização desta relação, no momento em que descobrimos a razão pela qual esse demagogo misógino age desta maneira é, certamente, um dos mais baixos pontos na carreira do diretor, bem como quando somos apresentados à real motivação de Philip Baker Hall, em Jogada de Risco.

Embriagado de Amor escapa a essa lógica, tomando seu herói como um homem sem referências masculinas; pelo contrário, é atormentado por suas sete irmãs: é como se Anderson ensaiasse fugir dos vícios de suas duas obras precedentes, tentando escapar das sombras do Robert Altman, de Nashville e Short Cuts, ou do Martin Scorsese de Os Bons Companheiros e Cassino, para fazer o seu Um Perigoso Adeus ou Depois de Horas (falhando, miseravelmente, em qualquer uma das comparações).

Chegamos, enfim, a Sangue Negro, obra com a qual O Mestre deve ser comparado e, claramente, sair em ampla vantagem. Como lá, voltamos a uma dupla de personagens que atraem-se na mesma medida em que se negam, bem como à oposição entre a religião (aqui na forma de cultos, inspirados na Cientologia) e a sociedade mais esclarecida e, sobretudo, ao poder da oratória: se antes os personagens de Daniel Day-Lewis e Paul Dano conseguiam seu sucesso através da articulação de ideias por vezes doentias (ao menos sob o olhar recriminador de Anderson), o pretendente a líder religioso Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman, novamente trabalhando com o diretor, novamente num desempenho brilhante) parece constantemente inseguro com as suas próprias crenças. A certeza, agora, cede à hesitação; seja aquela dos personagens ou do próprio cineasta, porque O Mestre é fascinante, pois vacila, repete-se, confunde. 

Dodd, autoproclamado escritor, físico nuclear, médico e comandante, ao conhecer Freddie Quell (Joaquim Phoenix, no ponto alto de sua carreira) encontra a oportunidade de provar, a si mesmo, alguém capaz de curar esse errante veterano da marinha americana da segunda guerra: “você será minha cobaia e meu protegido”.

Se estas sessões de livres associações, que constituem o método de Dodd, poderiam desencadear incontáveis justificativas às incorreções de Freddie, o que vemos é um dos mais notáveis momentos de Anderson, estritamente observacional. Há, de fato, a breve afirmação de Freddie de que sua mãe é psicótica e, principalmente, um belíssimo flashback que nos leva a seu amor perdido, de antes de sua ida à guerra. Porém, onde o olhar do diretor costumava sentenciar seus personagens e forçar uma razão psíquica para o caos emocional em que se encontravam, agora o vemos passional e misterioso, e poucos (nenhum?) dos seus travellings exibicionistas do passado atingem a retidão destas cenas – o momento em que este atormentado jovem volta à casa de sua amada, sete anos após a ter deixado, não encontra paralelo em suas obras anteriores. 

Nas sublimes primeiras cenas, que mostram vertiginosamente a viagem de Freddie, de volta  à América, a magnitude da decupagem (e da utilização intermitente de câmeras de 70mm, ao cargo de Mihai Malaimare Jr.) e da trilha-sonora, novamente composta por Jonny Greenwood, nos induzem a apenas mais um bizarro personagem perturbado.

Tal afeito tom fabular e obsceno, não muito distante daquele do início de Magnólia ou de Embriagado de Amor, não nos prepara a dois trechos de antologia que surgem a seguir: no primeiro, o ex-combatente tenta inserir-se na sociedade trabalhando em uma grande loja de departamento, tirando fotos de toda sorte de clientes bem-sucedidos e sorridentes, americanos típicos, devemos acreditar, saídos diretamente de uma ilustração de Norman Rockwell. Sob o som de Ella Fitzgerald, cantando "Get Thee Behind Me Satan", uma vendedora da loja vem para seduzir Freddie e, em instantes, experimentar uma de suas misteriosas bebidas. No próximo plano, a vemos espantadamente entediada com o fato de seu par romântico encontrar-se dormindo, largado no sofá de um restaurante; mais adiante, no momento que precede o encontro entre Dodd e Freddie, vemos o segundo fugir por um campo após, com as suas misturas mágicas, ter intoxicado um idoso. O momento em que ele sai da pequena casa para o exterior, correndo, ensandecido, desprovido como um animal que corre por sua vida, entra diretamente nos grandes momentos do cinema contemporâneo. 

E essa perspectiva delirante impregna a todos, encontrando sua principal manifestação no momento em que Freddie vê seu mentor dançando de roupa, enquanto as mulheres, à sua volta, aparecem nuas. Esta magnífica cena é seguida por outra que vem  mostrar a força da esposa de Dodd (Amy Adams), grávida e maquiavélica – personagem de dimensões míticas – o masturbando na pia, demonstrando uma frieza e um controle que faltam a seu marido, pretendente a guru. Em outro momento, Dodd datilografa enquanto sua mulher fala, enfurecida, passando a sensação de que ela está lhe ditando um texto.

Ao chamar o seu filme de O Mestre, Paul Thomas Anderson nos faz assim perguntar quem seria o mestre de quem. Pois, finalmente, eis uma de suas realizações, uma comédia histórica sobre influxos e extravagâncias, que recusa respostas. Um road movie em que não vemos estradas. Em seus lugares – entre Lyyn, Filadélfia, Londres, Nova York e Phoenix – o mar e o deserto, a ironia dos opostos que sempre assombrou o diretor.

Por outro lado, O Mestre não é essencialmente irônico ou alegórico, uma vez que não há muito aqui buscando ser esmiuçado, decodificado. Anderson se furta, pela primeira vez, a exibir qualquer erudição, seja ela cinematográfica, psicológica, religiosa ou política. A loucura e a libertação não são peças em um jogo de xadrez, e a fuga, a despeito de qualquer organização, nunca se torna, em si, um idílio.

Bruno Cursini

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