Ano VII

Amor

domingo jan 27, 2013

Amor (Amour, 2012), de Michael Haneke

Ainda que o título nos encaminhe a pensar no amor – e o ato final do filme é, por excelência, o maior ato de amor possível -, o longa-metragem de Haneke trabalha, de maneira central, com a ideia da negatividade. Negatividade no sentido pensado por Heidegger da passagem do positivo (vida) para o negativo (morte ou a proximidade dela). Passagem que se inicia, de maneira sempre muito pouco perceptível, no nascimento.

Michael Haneke, que em toda sua filmografia tematizou o mal estar que cerca o homem europeu, trata desta passagem também por um viés político, social. Não retrata essa passagem de modo natural, como um processo inexorável e conhecido por todos, mas pelo viés do desemparo, coletivo e familiar, e, porque não, pensando também na hipótese de que, como lembrou a amiga Beatriz Seigner, e dadas as condições do casal e condição de muitos idosos na Europa, o melhor seria a eutanásia. Anne, personagem de Emanuelle Riva, sugere o ato final quando, depois do funeral de um amigo comum, Pierre, ao sentir a morte no corpo pergunta ao marido: “por que devo infringir isto a você e a mim?”.

Entre as várias possibilidades de leitura do filme, possibilidades paralelas a da morte/amor e da negatividade, uma que tem grande correspondência com a obra de Haneke é dada pela janela aberta do apartamento e que o conecta ao mundo exterior. Tal janela é a única via que não fica hermeticamente lacrada no final do filme. É por onde entra a pomba, esse animal, de certa forma, repugnante, tido como pestilento e portador da praga, que prolifera em todas as cidades, e que anuncia ao velho o seu ato, seu fim – fim deixado em aberto pelo filme – e sua loucura. A janela é, em tom menor, as cartas com os vídeos de Cachê: o ponto de contaminação com o exterior. É também, na relação limite do espaço privado com o público, o que separa a dor dos indivíduos na sua singularidade com a dor de uma cultura, a da Europa em crise, da cultura letrada que não evita e nem mesmo suaviza – jamais poderia – a morte e o fim de um casal tão refinado.

Cabe lembrar que um dos primeiros planos do filme, no teatro, nos dá essa dimensão, temos o coletivo e não o casal na sua singularidade. E, na volta para casa, espaço no qual o filme se instalará, a porta do apartamento tem sinais de arrombamento. O casal fala da insegurança dos dias de hoje, teme ter a casa invadida, fato que acaba por acontecer no café da manhã seguinte pelo primeiro sinal da doença, doença que provoca – numa das cenas mais belas do filme -, uma pequena lacuna temporal em Anne. Esta quando volta a si, quando fecha o jorro da torneira, já não é mais a mesma. E será um mesmo transbordamento, o do chá na xícara, que colocará o casal ciente da desgraça por vir e da qual seremos testemunhas.

O plano que abre Amor, sua primeira imagem, depois de um longo tempo de tela preta, é o da invasão do apartamento fechado, com o arrombamento da porta pelos policiais. Da tela negra e confortável, temos a luz e a imagem da porta escancarada nos revelando um mundo e uma situação caótica. Assim como os policiais, Haneke conduz, nós espectadores, a invadir a privacidade deste espaço que será o espaço do filme. Nos dá à luz e, a partir do longo flashback, coloca frente a história do casal. Somos, como os policiais, invasores de um espaço onde ocorreu uma morte a ser desvendada, procurando a cada imagem decifrar o possível crime e toda a crise deflagrada, do nada, por um lapso no tempo, uma lacuna que acomete Anne no café da manhã e que é agravada, e levada ao extremo, por uma intervenção cirúrgica mal sucedida, outro signo da invasão, que paralisará parte de Anne. Se a primeira crise, ou cisão, cria um hiato temporal entre vida e morte – Anne congela durante alguns momentos -; após a cirurgia tal cisão será espacial: um lado paralisado e outro não: vida e morte juntas, dividindo o mesmo corpo.

Corpos e espaços invadidos (a tentativa de arrombamento, o arrombamento pelos policiais, a doença, a música dos Beatles que invade o funeral de Pierre, os pombos, o sonho com a água que ocupa o corredor do prédio etc) são elementos do cinema de Haneke. No cinema dele, não há espaços e corpos puros e instransponíveis, impermeáveis. O mal, vide A Fita Branca, Violência Gratuita e o Vídeo de Benny, e a dor, 71 Fragmento, A professora de Piano e tantos outros filmes, são, no cinema do cineasta austríaco, de uma porosidade incômoda, da qual vaza muito desconforto, pois atravessa e contamina todas as relações, até as que julgávamos as mais estáveis e consolidadas. Resta saber – e essa é uma questão bastante delicada e complexa – se tal desconforto, no caso de Amor, serve ao filme enquanto obra ou se serve apenas ao desejo de Haneke de incomodar e de se mostrar incomodado por todo esse mal estar. Nessa linha, igual ao continuum entre positividade e negatividade, se instala o cinema de Haneke e a apreciação de sua obra, ainda que o cineasta filme cada dia com mais apuro técnico.

Cesar Zamberlan

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