Ano VII

As Aventuras de Pi

sexta-feira jan 4, 2013

As Aventuras de Pi (Life of Pi, 2012), de Ang Lee

As Aventuras de Pi foi muito comparado com Hugo por causa da maneira como ambos usam o 3D de maneira a acentuar o fantástico no lugar de se aproximar do real. É interessante como a mania se repete: quando um cineasta considerado autoral investe em alguma tecnologia da moda as pessoas tendem a ver o filme como uma aula de como se usar tal tecnologia, ou, no mínimo, como um uso digno para artefato tão espalhafatoso, algo que os meros funcionários de estudo não seriam capazes de fazer.

Bem, vi as duas versões do filme, em 2D e 3D (no Cine Eldorado XD, tela enorme), e confesso que o 3D, mais uma vez, não me entusiasmou. Reconheço a diversão, o brilho daquilo tudo. Mas já o havia reconhecido em sua versão 2D, que se mostrou tão bonita quanto. Por que devemos ver em 3D? Só porque foi concebido para projeção em 3D? Besteira universal. A concepção maior é da estrutura narrativa, não dos objetos que avançam para nós da tela. Esse efeito, por sinal, perde a graça na quarta ou quinta vez que é usado, e o que sobra é o filme em si, igual em 2D ou 3D (a experiência, por outro lado, me confirmou o caráter supérfluo dessa falsa 3ª dimensão). Claro, a concepção de um filme em scope pede obrigatoriamente uma projeção em scope (e o mesmo vale para os diferentes aspect ratios). Ver personagens, portas ou móveis cortados ou completamente ausentes do quadro, quando deveriam estar presentes, é, sim, prejudicial. Não ver as coisas saltando em direção a mim, ou um pau apontado para minha cara, seria prejudicial? Não vejo como.

O que sustenta As Aventuras de Pi, na verdade, é a arte de contar uma história, a diferença entre a história verossímil e a inverossímil, a distância entre o real e o fantástico, entre o relato observacional e a fabulação. O filme deixa essa diferença mais evidente quando, ao final, escolhe não mostrar a história que Pi inventa para que os funcionários da seguradora acreditem, no lugar da história que havia contado para o escritor que o visitava. O curioso é que aqui as camadas se sobrepõem. Pi conta ao escritor a mesma história que havia contado aos seguradores, minutos depois de ter contado a história fantástica a esse mesmo escritor, mas muitos anos depois de tê-la inventado. Ou seja, entramos num terreno incerto, onde a história verossímil é inventada e seu relato sofreu modificações profundas pela ação do tempo. Da mesma forma, a história fantástica deve ter sofrido inúmeras modificações nos anos todos que correram, e o interesse específico de cada interlocutor provavelmente teve papel fundamental nessas modificações. Um jogo intrincado de narração escondido num filme para toda a família, eis o que Ang Lee nos entrega.

Mas uma coisa é verdadeira a respeito do autor. Ang Lee soube usar de maneira digna, e nada irritante,  a imbricação entre animação e interpretação, fazendo com que seu filme se justifique por dois motivos: 1) a fabulação permite que a história seja pintada na tela, com a tecnologia servindo à narrativa; 2) os animais precisavam interagir muito com o ator que faz Pi, e a única maneira de conseguir tal interação era com o uso dos efeitos especiais (e este segundo motivo, bem sei, está intimamente ligado ao primeiro).

Ataques a Ang Lee são sempre injustos. O cineasta chinês fez o melhor filme erótico dos últimos tempos (Lust Caution), o melhor libelo pela liberdade sexual (Brokeback Mountain), a melhor adaptação de Jane Austen (Razão e Sensibilidade) e a melhor adaptação de quadrinhos da Marvel (Hulk). As Aventuras de Pi não é o melhor de nada. Nem mesmo é um grande filme. Mas convém não subestimá-lo.

Sérgio Alpendre

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