Ano VII

As Quatro Voltas

quarta-feira dez 26, 2012

As Quatro Voltas (Le Quattro Volte, 2010), de Michelangelo Frammartino

O tempo de As Quatro Voltas é rural, totalmente diferente da urbanização que muitas vezes é tomada como peça fundamental do cinema contemporâneo (mesmo quando se trata de uma fuga do urbano, como no Horas de Verão de Assayas). Só isso já coloca o longa de Frammartino como uma peça singular. Planos longos, silenciosos, ausência total de diálogos, uma total submissão ao modo de vida do campo, onde animais e homens simples compartilham a energia do mundo.  São 88 minutos que retomam o tom explorado por Imamura na obra-prima O Profundo Desejo dos Deuses.

É uma linhagem nobre a que segue Frammartino. Imamura dizia que para entender a humanidade era preciso sair das grandes cidades, ir a lugares remotos, idílicos, bucólicos. É o que faz o diretor italiano neste filme de 2010 que está entre os melhores lançados no Brasil em 2012. Saiu de Milão, sua cidade natal, para a Calábria, uma região predominantemente campestre no sul da Itália. Nessa região que parece esquecida pelo progresso, pode deter seu olhar no cotidiano simples das pessoas do campo, nos animais, na natureza montanhosa do local.

O longa é composto de episódios mais ou menos interconectados. No melhor deles vemos uma cabrita nascendo, se misturando aos demais filhotes, brincando num galpão, saindo junto do restante do rebanho e, finalmente, perdendo-se pela primeira vez em sua vida. A pequena cabrita branca abandonada na imensidão montanhosa dá lugar, em seguida, ao mesmo velho que abre o filme. Daí vamos para uma árvore sendo derrubada por camponeses e, em seguida, para a construção e funcionamento de um carvoeiro.

Seja do homem, da cabra ou da madeira, o que vemos em cena é uma sucessão de ritos de passagem. O rito do homem está simbolizado pela esquadra militar que percorre o vilarejo com destino ao castelo no topo de uma colina, ou pelo caixão que está sendo levado para o cemitério. A passagem para o além. Há também a celebração (pela chegada de uma nova estação?). Ordem e natureza se harmonizando, mas um cachorro implanta o caos querendo apenas brincar com uma pedra. Do caos, vamos ao rito da cabrita, que vemos nascendo, aprendendo a andar, brincar e se perder (perdendo-se, ela será obrigada a enfrentar a solidão, a sobreviver na floresta). Finalmente, da bela árvore derrubada temos um produto, o carvão, passo a passo. Tais ritos são emoldurados pelas quatro estações do ano.

O que impressiona nessa sucessão de imagens é a calma de Frammartino, o cuidado com o tempo do corte, a precisão nas angulações e distâncias da câmera, o respeito com o ritmo da natureza. Um filme minimalista, aparentemente, mas repleto de pequenos acontecimentos. É o Sinfonia do Mundo de nossos tempos. No lugar do corre-corre do média de Walter Ruttmann (de 1929, ainda nos trilhos da Revolução Industrial), a calmaria do campo obrigando-nos a tirar o pé do acelerador. Por esse motivo, um filme necessário.

Sérgio Alpendre

 

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