Ano VII

Serras da Desordem

segunda-feira dez 17, 2012

Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci

Escrever sobre Serras da Desordem para mim é algo extremamente pessoal, pois tenho uma relação muito próxima com o cinema de Andrea Tonacci. Empolgado com a descoberta de Bang Bang (1970), eu me perguntava o por quê de um cineasta tão talentoso, um artista nato, ter demorado cerca de 35 anos para realizar outro longa-metragem. À época, minhas enormes limitações me levavam a acreditar que haveria uma resposta simples para o que eu considero (mais) uma lacuna irreparável do cinema brasileiro.

Em 2006, além do impacto que foi ver pela primeira vez a Serras da Desordem (no CCBB-SP), tive a chance de conversar com Andrea Tonacci em uma entrevista para o site Cinequanon. Na ocasião ele contou que, além das dificuldades eventuais da vida, que é difícil por si só, desde 1993 ele vinha tentando filmar Serras…, porém o atual esquema de financiamento público não o contemplava nos editais.

Mais significativo que isso, ele contou um pouco sobre os longos períodos que passou morando (e não fazendo trilha ou acampando) nas florestas brasileiras. “Me identifico com o isolamento do índio Carapiru (personagem principal de Serras…), não gosto da loucura urbana, gosto do mato…”      

Entendi melhor porque ele retornara com um filme como esse. “Um processo vital”, segundo ele. Um filme de vida, que só ele poderia fazer. Não significa que o cineasta seja necessariamente original, é mais uma questão de espontaneidade: ir direto ao ponto sem concessões, pois o filme é um caminho para o realizador existir.

Um filme cuja uma das maiores riquezas é expor o choque entre dois mundos, o urbano e o selvagem. Ou melhor, o descompasso incorrigível que existe entre eles. Carapiru, o índio selvagem, não sabe comer com talheres, demora para se acostumar a usar roupas. Pequenos detalhes simpáticos que na verdade ocultam a enorme violência que é o processo de “enquadramento do Outro”, e que no caso do filme é representado pelo homem branco tentando civilizar o índio selvagem. A bondade dos brancos e suas ótimas intenções camuflam o aspecto violento que caracteriza toda e qualquer forma de dominação do Outro. O roubo de terras com fins comerciais, o massacre, a oposição entre o aparato tecnológico moderno e o arco e flecha dos índios, isso é tão violento quanto colocar o índio para ver tv. No entanto, o filme não é sociológico. Não se pode vilanizar o homem branco. O que o filme capta de forma sutil, sem discursar sobre o tema, é a violência inerente a tais dinâmicas nas relações humanas. Capta ainda, nas mesmas cenas, nos mesmos fotogramas, o carinho e a tolerância daqueles que cercam Carapiru. Mas isso são leituras, interpretações limitadas.

O que realmente é importante é que o filme, ao acompanhar a saga de Carapiru (não só como um índio, mas principalmente como um ser humano único em descompasso com o ambiente que o cerca), resvala um pouco naquilo que chamamos de alteridade: mostra nossa civilização ocidental, urbana, tecnicista, como algo estranho, muito estranho. Como tudo aquilo que é percebido como estranho denota perigo, a civilização é vista pela natureza como algo ameaçador – vide a forma com que o trem e o avião aparecem no filme, são verdadeiros personagens. Próximos de Carapiru, conseguimos inverter os pólos entre observador e observado, causando assim um curto circuito em noções estanques como civilização e selvageria, conhecido e estranho, segurança e perigo. Aos olhos de Carapiru, o homem branco é o desconhecido que chega com suas máquinas perigosas cometendo atos de selvageria. Todo esse mecanismo de inversão de valores é muito complexo, e nos tempos conservadores de hoje, cada vez mais raro.  

Tonacci contou que depois de meses na mata sua percepção espacial mudou radicalmente. Ele teve que se habituar à completa ausência das linhas retas e dos ângulos fechados que caracterizam o nosso mundo urbano. Formalmente, Serras da Desordem é bastante “livre”, ou seja, indiferente às noções clássicas de equilíbrio e composição, tanto nos enquadramentos quanto na montagem. Ele relatou também que, por conta da falta de iluminação no meio da floresta durante as noites escuras, ele foi forçado a aprimorar a audição. Não surpreende que o a edição de som do filme seja extremamente refinada e complexa: cada ruído de graveto, cada pisada do pé descalço sobre as folhas secas é um ato musical e dramático. Com essa analogia entre as histórias pessoais de Tonacci e os aspectos formais de Serras…, não estou almejando “buscar na vida a explicação da obra”, até porque eu acredito que é a obra que explica a vida. Estou apenas fazendo uma tentativa de descrever um pouco da nova língua que o filme cria e sua estreita relação com a experiência real de estar no mato. A segunda levou à primeira: tradução cinematográfica bem sucedida. Misturando o Preto e Branco com imagens coloridas de forma não óbvia, abusando de imagens sobrepostas, abolindo toda e qualquer divisão entre ficção e documentário sem cair no tédio dos “filmes de dispositivo” e trabalhando a trilha sonora e os cortes de forma extremamente intuitiva, não se pode “engavetar” Serras… somente como um filme experimental (o termo é muito redutor). É um filme mestiço.   

Logo entendi que o hiato de 35 anos entre os dois longas não era uma questão a ser respondida – por não haver uma única resposta simples e apesar de ser uma questão importante a ser pensada.  . Na contramão do atual profissionalismo que dita os rumos do cinema nacional, Tonacci filmou pouco, mas quando retornou realizou um filme mais valioso do que 20 anos inteiros de “Retomada”. Eu já havia escrito pelo menos 2 textos sobre Serras da Desordem, mas sempre soube que nenhuma espécie de intelectualização é capaz de capturá-lo em toda sua riqueza, que só pode mesmo ser experimentada no ato de ver, ouvir e sentir o filme.

Por fim, o cérebro humano aliado à racionalização extrema do mundo de hoje tende a desconfiar tenazmente de qualquer opinião fanática ou dotada de traços de exagero. No entanto, no caso de um filme como o Serras…, cuja desproporção entre grandeza e influência pública é gritante, pensar um pouco com o coração se fez necessário.   

Fernando Watanabe

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Anteriormente, na Paisà (republicado no Chip Hazard, blog pessoal do editor Sérgio Alpendre)

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