Ano VII

Diário – Parte 3

segunda-feira out 22, 2012

Parte 3 – Malaventura, Alpes e revisões de Tarkovski

Como nunca acompanho cobertura de festivais internacionais, não sei como esse mexicano maluco chamado Malaventura foi recebido. Pela ausência de burburinho, imagino que tenha sido ignorado ou bastante criticado. Como não dou a mínima para burburinhos ou para a ausência deles, encaixei o filme em minha programação, na sala grande do Cine Livraria Cultura, pela intuição de que iria ver ao menos algo curioso. E, sendo curto, não iria atrapalhar as sessões que veria a seguir na cinemateca.

Pois minha intuição estava correta. Malaventura é uma brincadeira de estilo com pose de filme sério, e apesar dessa descrição, é bem interessante. Michel Lipkes adota a câmera quase sempre estática, observando um dia na vida de um homem idoso e solitário, que anda pela Cidade do México fazendo coisas típicas de velhos solitários: misturar bebidas compartilhando o quadro com um charmoso gato que se posta num entre-degraus, vender balões, entrar em cinemas decadentes, se imaginar tocando fogo em uma mulher que dorme (foi o que ele fez com a falecida esposa?). Raramente a câmera se move, e quando o faz é um movimento bem discreto, em harmonia com o tom de desolação proposto. Raramente também é abandonada a observação e adotada a subjetividade. Quando isso acontece, vemos a folha na mão do velho que a admira. Uma folha de desenho tão rico e cheio de vida quanto a palma de sua mão. No entanto, é uma folha morta.

Com 66 minutos (e um scope que, felizmente, é intencional, e não obra de algum projecionista fanático pelo zoom que preenche e transborda a tela) , o filme acaba justamente quando começa a ficar cansativo. E fica cansativo principalmente porque tudo é meio arbitrário, tornando quase impossível qualquer identificação com alguma coisa que está no filme. Mas Lipkes não é um desses raros diretores que se esbaldam com brincadeiras inconsequentes. É, por outro lado, um diretor que pode fazer algo bem forte caso ultrapasse a fase das brincadeiras e faça cinema de verdade.

Alpes da Grécia

Não vi o tão comentado Dentes Caninos, do diretor grego Yorgos Lanthimos, mas a julgar por este novo filme dele, Alpes, não perdi grande coisa. Curiosamente, Alpes tem uma ligeira relação com Holy Motors, uma vez que em ambos temos a profusão de máscaras, personagens e atuações (em Alpes, fala-se em substituições no lugar de atuações, mas é algo parecido, apesar de ter motivações bem diferentes), e da necessidade de se prender a tais coisas. Obviamente o filme de Carax é muito mais instigante, enquanto o de Lanthimos tenta ser um comentário sobre a falta de identidade das pessoas no mundo contemporâneo, não tendo, ele próprio, uma identidade. Vai do rigor estético a um desleixo calculado em questões de segundos, sem que um ou outro se justifique.

Lanthimos tem uma queda pela imagem-choque (o bastão golpeando a cabeça indefesa, a humilhação pública, a ameaça  que intimida pela violência, os rostos ensanguentados), mas não se preocupa em fazer com que esse choque dure, simplesmente porque não é capaz de criar um único personagem de interesse em todo o filme.

Na sala Petrobras da Cinemateca Brasileira, dois Tarkovski em sequência: Stalker e O Sacrifício. Desnecessário, por enquanto, falar da excelência dos filmes do diretor falecido em 1986. Fica para o fim da mostra. Por enquanto, o reforço de que esses filmes, salvo Nostalgia, passam em excelentes condições.

A cópia de Stalker está ótima, mas o projecionista fez o favor de se atrapalhar duas vezes com a troca de rolos, causando interrupções de dez minutos que quebram o fluxo drasticamente. É como se alguém chegasse e fizesse lascas, estragando a escultura de tempo tarkovskiana. Logo com Stalker, que de todos os filmes dele é o que mais depende de uma visão contínua.

A cópia de O Sacrifício é coisa de outro mundo. Mesmo visto numa tela que não é lá muito grande, a força das imagens de Sven Nikvist permanece, e o final é atordoante, com a árvore crescida botando o ponto final em uma das filmografias mais coerentes da história do cinema.

Sérgio Alpendre

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