Ano VII

Brasília – 2º Dia

quinta-feira set 20, 2012

2º Dia – Que País é Esse? (A Memória que Me Contam, Kátia)

Algumas coisas não se pode cobrar do cinema de Lúcia Murat (Uma Longa Viagem, Quase Dois Irmãos, Que Bom te Ver Viva). Uma delas é a insistência no assunto dos rastros da Ditadura. É chover no molhado dizer isso, mas quem faz filme parte de um ponto de vista, o seu, e se posiciona no mundo com suas experiências.

E há muito ficou claro que Lúcia tem no cinema a maneira de se manter viva, sobreviver a si mesma – é sabido que, tal como muitos de sua geração, a cineasta foi presa e torturada pela Ditadura Militar, sequela da qual jamais se recupera.

Pode-se cobrar, obviamente, que faça filmes bons. Mas não se pode reclamar de ter sido enganado: quando vamos assistir a um filme de Lúcia Murat já sabemos que estará em discussão o Brasil sob o ponto de vista da geração que lutou contra a truculência militar, uma avaliação de seus méritos/deméritos e invariavelmente uma desilusão com o que se tornou o país (especialmente a questão da esquerda no poder, o cenário pós-Lula).

Talvez mais interessante do que reclamar que é mais do mesmo seria perguntar por que não tocam no assunto com filmes as gerações que não viveram a tortura na pele? Ou de quem viveu aquele momento de maneira diferente, tal como Ugo Giorgetti e seu cinema humanista consegue com Cara ou Coroa? Não residiria a possibilidade de frescor na entrada de outros cineastas, mais jovens talvez, nesta seara?

Fim do prólogo porque é preciso falar do filme. E A Memória que Me Contam é possivelmente o mais duro filme de Lúcia, em que todos os seus personagens/tipos são colocados num divã – o espectador é quem os escuta. Seus personagens não têm vida própria, mas estão a serviço de uma ilustração: daquele que entregou quando torturado, daquela que se coloca como autista quando lhe lembram da violência, daquele que chegou ao poder mas não consegue utilizá-lo para desafiar os militares.

O que os reúne é a morte iminente de uma das amigas, Ana – personagem abertamente inspirada na trajetória de Vera Sílvia Magalhães. Também é fácil de enxergar o que há de Cesare Battisti no personagem de Franco Nero e de Paulo Vannucchi no de Zecarlos Machado.

A Memória que Me Contam não é um tributo à ação como Cabra Cega ou um alerta aos horrores dos milicos como Batismo de Sangue. É um filme-testemunho do que pensa uma geração, de como ela se vê, de como ela vê os que hoje estão na casa dos 30 anos e de como ela acha que estes, os jovens, as vê.

Gosto da preocupação que o filme tem ao representar um fantasma – pois é assim que o filme vê Ana –, muito parecida com a de Tata Amaral em Hoje. Mas por mais que as discussões me toquem, por mais que A Memória que Me Contam tenha a mais bonita cena de sexo gay na produção brasileira (que ainda sofre com o recalque), ainda me incomoda a impossibilidade de o filme abrir uma janela para seus personagens além da ilustração, do tipo.

Há pequenos momentos – o abraço que o personagem de Zecarlos Machado dá em Otávio Augusto após acusá-lo de alcaguete. Mas até a cena mais bonita – a da transa – é uma ilustração: a geração que entendia que a homossexualidade não era pauta prioritária, que a demanda dos gays seria automaticamente contemplada numa sociedade não-capitalista, teve de admitir sua falência no assunto.

A questão da sexualidade é o que dá a relevância em Kátia, de Karla Holanda, o outro longa exibido na noite de quarta-feira no Festival de Brasília. Trata-se de Kátia Tapety, primeira travesti eleita vereadora no Brasil (por três mandatos) e também vice-prefeita, o que ocorreu na pequenina Colônia do Piauí.

Ótimo que conheçamos sua existência e trajetória. Há o fator autoestima, fundamental para qualquer minoria num país conservador como o Brasil. Bem-vindo também observar a inserção de quem tem lugar cativo na exclusão. Mas isso é apenas o começo. É preciso ir além. Aí entra o cinema, o olhar do documentário em reter o momento de acaso, de trazer na imagem o sentido político de sua personagem – ainda mais num documentário de observação como este.

Kátia anda bem até por volta dos 40 minutos. Da cena da festa em diante – um belo plano em homenagem ao feminino que há na personagem – torna-se indissolúvel o hiato entre a afirmação política e o cinema. Com os encontros posados, com as falas de como ela é vencedora e lutadora, fica explícita a dificuldade de Kátia ser discurso pelo cinema.

Heitor Augusto

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