Ano VII

Cosmópolis

quarta-feira set 12, 2012

Cosmópolis (Cosmopolis, 2012), de David Cronenberg

Melhor filme de Cronenberg desde Marcas da Violência (o último produzido também nos EUA), Cosmopolis faz para Robert Pattinson algo parecido com o que A Cor do Dinheiro fazia com Tom Cruise em 1986. Há uma adaptação da canastrice do ator principal com o personagem que ele interpreta. No filme de Scorsese, Cruise interpretava um garotão abobado e convencido, uma espécie de Neymar da sinuca. Em Cosmopolis, Pattinson tem uma performance estranhíssima como o bilionário Eric Packer, pessoa insuportável que vive em uma bolha móvel, sua limusine – lugar de escape, o único em que o capitalismo, aparentemente, deu muito certo. A estranheza de sua interpretação casa perfeitamente com o clima imposto por Cronenberg.

Tudo no filme é estranho. A primeira transa do bilionário é com Juliette Binoche. Transa vulgar, daquelas que escancaram o poder financeiro que compra tudo. Os cabelos inicialmente escondem o rosto de Binoche, como se ela estivesse envergonhada de tal ato. Depois do gozo, a liberação. Está num filme de Cronenberg, afinal. Deve se preparar para tudo. A atriz finalmente mostra seu rosto e inicia o primeiro de muitos diálogos estranhos que Eric terá dentro ou fora da limusine. Diálogos que nem sempre são compreensíveis, e quem tentar acessá-los pode perder o que o filme tem de melhor: a sensação de que nada mais faz sentido, de que o mundo atravessa uma espécie de buraco negro, cheio de caminhos de desfechos incertos.

A limusine é o lar de Eric, o menino da bolha, Travolta contemporâneo de um diretor muito superior a Randal Kleiser (o autor do sucesso televisivo de 1976: O Rapaz na Bolha de Plástico, que revelou John Travolta para o grande público da telinha). Dentro da limusine, Eric mantém-se atualizado da crise financeira, dos protestos de rua, dos ratos ameaçadores que fomentam a economia causando, de dentro, a falência do sistema. Protege-se, também, da hostilidade das ruas de Nova York (numa versão igualmente estranha e fake, uma vez que Cronenberg filmou em Toronto), dos manifestantes que picham o carro e batem no vidro, do mundo, em suma. Aparelhos de última tecnologia o auxiliam. Uma privada portátil permite o alívio urinário no meio do trânsito. Um segurança trata de atualizá-lo em tudo, sendo ao mesmo tempo sua consciência crítica e seu incentivador – e passando depois a ser vítima de um assassinato arbitrário.

Os personagens invadem a limusine desestabilizando aos poucos esse mundo protegido: primeiro Juliette Binoche, depois Samantha Morton, outros atores conhecidos aparecem na trama (Mathieu Amalric, Paul Giamatti), sempre com um tipo de interpretação que reforça a estranheza das situações. Eric começa o filme impecavelmente vestido e penteado, com classe e frieza em relação à violência das ruas. Aos poucos vai se tornando um farrapo, deixando de lado o terno impecável, conseguindo um corte de cabelo incompleto que o deixa com a aparência de um presidiário (ou um punk), e com a feição perdida e desnorteada. Sua jornada foi do céu ao inferno, com diversas e inusitadas escalas. Em uma delas, vê dois jovens jogando basquete, mata seu segurança a sangue frio (depois de mais um diálogo estranho) e joga a arma para os jovens, sem se preocupar com o fato de poder ser reconhecido. Experimenta a arma do segurança, que se carrega por um comando de voz.

No tom, Cosmopolis está mais para Gêmeos – Mórbida Semelhança do que para qualquer filme que Cronenberg tenha realizado neste século. Há uma certa altivez que insere o filme também dentro de uma bolha, transforma-o em um alienígena dentro da produção atual, um correspondente deste lado do Atlântico a Filme Socialismo, de Godard.

Sérgio Alpendre

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O melhor de Cronenberg (10 filmes essenciais do diretor canadense)  *

 

Calafrios (Shivers, 1975)

O primeiro de uma trilogia B que homenageia os filmes que encantaram Cronenberg na infância. Uma autêntica obra-prima de ironia e desespero, com o herói impotente cronenberguiano, que seria retomado em vários filmes posteriores, finalmente dando as caras.

Os Filhos do Medo (The Brood, 1979)

Derradeiro ato da trilogia, e um de seus melhores e mais perturbadores filmes. Poucos resistem à cena em que Samantha Eggar lambe um filho monstrengo que acabara de parir, frente ao olhar incrédulo de seu marido. O mundo está prestes a ser dominado por personificações da raiva humana.

Scanners – Sua Mente Pode Destruir (Scanners, 1981)

Uma cabeça explodindo logo no começo do filme faz com que todos achem que a cada ação dos Scanners uma nova cabeça irá explodir. Toque de gênio. A cena de uma scanner sendo “escaneada” por um bebê ainda na barriga da mãe já é um clássico do horror psicológico.

Videodrome – A Síndrome do Video (Videodrome, 1983)

A transmutação do corpo humano em uma nova forma de comunicação. O apocalipse segundo Cronenberg, via domínio das ondas televisivas. James Woods e Deborah Harry atuam neste que é considerado um dos grandes filmes do diretor.

Na Hora da Zona Morta (Dead Zone, 1983)

Um acidente, um poder paranormal, o mundo a salvar. Tipicamente cronenberguiano, mas baseado em romance de Stephen King, com Christopher Walken no papel principal. A seqüência final é digna de antologia.

A Mosca (The Fly, 1986)

Jeff Goldblum pode causar estranheza a muita gente, mas ele está muito bem como o cientista que falha em um experimento e vai, gradativamente, se transformando em uma mosca. A solução final é tocante e muito triste.

Gêmeos – Mórbida Semelhança (Dead Ringers, 1988)

Basta um plano, já no final, com os instrumentos que os doutores gêmeos haviam criado, para fazer gelar o corpo de qualquer um que esteja assistindo ao filme. O rosto pétreo de Jeremy Irons ajuda a conferir aos doutores uma aura de anjos caídos brincando de alterar a anatomia humana.

M. Butterfly (1993)

Um homem se apaixona perdidamente por outro, pensando que este outro trata-se de uma mulher. Faz sexo com ele, e acredita depois que o engravidou. O que seria isso senão a verdadeira reconfiguração do corpo humano? Poucos perceberam que o personagem interpretado por Jeremy Irons é um romântico incurável, e que seus desejos podem, sim, se materializar.

Crash – Estranhos Prazeres (Crash, 1996)

Após um  forte acidente de carro, o marido (James Spader), pergunta à esposa (Deborah Kara Unger): “Você se machucou?”, ao que ela responde negativamente. Ele, então, acrescenta: “Na próxima você consegue, amor”. Precisa dizer mais? Prazer associado à dor. A mente humana sendo dissecada pelo mais implacável dos cirurgiões: David Cronenberg.

Marcas da Violência (A History of Violence, 2005)

No maior filme de Cronenberg no século 21, Viggo Mortensen desempenha o grande papel de sua carreira como um pacato dono de bar que se revela um ex-gangster violentíssimo e implacável quando alguns bandidos aparecem tocando o terror em seu estabelecimento. O filme é também um momento mágico de Howard Shore, principalmente na ceia final, um dos melhores momentos do cinema do diretor.

(SA)

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* Comentários publicados originalmente na Revista Paisà # 0, em 2005.

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