Ano VII

Sob o sol de Satã: Bernanos e Pialat

segunda-feira jul 2, 2012

Sob o sol de Satã: Bernanos e Pialat

A obra do escritor francês Georges Bernanos foi relançada no Brasil recentemente, o que reacendeu o debate sobre a sua obra e a relação desta com cinema. Cinema de Pialat, que adaptou dele Sob o Sol de Satã, e de Robert Bresson, que adaptou Diário de um Pároco de Aldeia e Nova História de Mouchette (um parêntese: pouco se fala do cinema de Bruno Dumont, um bernanosiano feroz, e não só nos últimos Hadewijch e Hors Satan). 

Pialat e Bresson chegam, no entanto, a Bernanos por caminhos diferentes. Se o par Bernanos /Bresson aproxima-se pela religiosidade, pelo mundo sem Deus, de Pascal, pelo jansenismo que Bernanos tangencia e pelo sentimento trágico de Bresson – que sempre negou ser jansenista ainda que muitos o acusem de sê-lo; o par Bernanos/Pialat se aproxima não pela religiosidade, nada presente em Pialat, nem pela visão política, Bernanos era de direita ainda que se estranhasse também com ela, mas por uma leitura de mundo desencantada, na qual impera e prevalece o homem fadado ao mal e ao fracasso. E esse desencanto se dá, e os une, por terem vivido momentos históricos diferentes, mas nos quais a sensação de derrocada da experiência humana era muito forte e decisiva.

Bernanos viveu de 1888 a 1948, testemunhou no front e no corpo os terrores da Primeira Guerra, tendo sido ferido algumas vezes; viu surgir por toda a Europa regimes nacionalistas como o de Franco na Espanha que retratou no livro Grandes Cemitérios sob a Lua. Livro, aliás, que o indispôs tanto com a direita como com a esquerda europeia e o fez, estando isolado e vendo a Europa em ruínas, partir para o Brasil. Bernanos viveu por aqui de 1938 a 1945, a maior parte deste tempo em Barbacena, no sítio com o sugestivo nome de Cruz das Almas. Ainda assim, participava à distância e ativamente da resistência francesa ao nazismo. Fato que fez o General De Gaulle, após a guerra, oferecer ao escritor, no retorno deste à França, o cargo que quisesse. Bernanos recusou a oferta – assim como recusou honrarias como a Legião de Honra e a Academia Francesa – e acabou indo morar na Tunísia, voltando à França apenas meses antes da sua morte, em 1948.   

Já, Pialat, como foi abordado em outros textos deste dossiê, viveu o pós 68 e a ruína do sonho revolucionário com a acentuação de toda a barbárie do mundo moderno. E é a experiência do homem neste novo mundo, mundo burguês da técnica, da tecnologia e do consumo, que ambos tematizaram, cada um ao seu jeito.

 

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Sob o Sol de Satã foi escrito em 1926 e é o primeiro e principal livro de Georges Bernanos. Principal porque sintetiza todas as questões que trataria depois e porque é, certamente, o seu livro mais famoso e mais complexo.

O professor João Cezar de Castro Rocha em palestra que marcou o relançamento do livro no Brasil, pela Editorá É (o vídeo da palestra está na internet e vale a pena ser visto), afirmou que a questão chave de e em Bernanos é se “há condições para a experiência da espiritualidade no mundo moderno? Se é possível crer no homem e na sua “santidade” após a primeira guerra?” Neste sentido, o principal para Bernanos, segundo João Cezar, é apontar, no meio rural, onde tais valores estão mais entranhados, e por meio de uma galeria de fracassados, esse mal estar moderno, no qual a tecnologia vira uma máquina de morte – ele lembra também do suicídio de Santos Dumont, por causa do uso que fizeram do avião -, e na qual o homem comum é sempre um pecador, convivendo inevitavelmente com o mal onipresente, não o mal absoluto, de certa forma intangível, mas o mal das pequenas ações que nem sempre nos damos conta. Na sua bela análise do livro, o professor vai dizer ainda que, em essência, o verdadeiro protagonista do romance é o pecado, daí o título Sob o Sol de Satã

Lembra João Cezar, que o Padre Donissan só aparece na segunda parte do livro, chamada “A tentação do Desespero”, e que outros dois personagens são fundamentais no primeiro e no último capítulo do livro. No primeiro, Mouchette e no terceiro, com o padre já morto, o escritor Saint-Marin.

Para não ficar tanto no livro e ir ao filme, é interessante notar que Pialat modifica totalmente a estrutura da narrativa do livro. Ele começa e termina o seu filme com o Padre Donissan. É ele o personagem principal da obra na sua encruzilhada muito próxima a do personagem de Police, vivido pelo mesmo Depardieu, dos amantes em Loulou, da personagem de Sandrine Bonaire em Aos nossos Amores e do personagem masculino de Não Envelheceremos juntos.

Poderíamos então dizer que, enquanto Bernanos pensa no homem enquanto categoria, no homem sem Deus de Pascal, Pialat trabalha o sujeito, ou o casal, no caso de Loulou, espremido por circunstâncias que o emparedam dentro de um espectro mais amplo que o do sagrado e da religiosidade. Esse emparedamento – Susan Sontag trabalha questão semelhante em Bresson e aí também por um viés mais religioso – em Pialat, e no conjunto da obra dele, dá conta da (im)possibilidade de viver de maneira feliz e de modo completo sob o ponto de vista social, existencial e humano. Dá conta da experiência possível do sujeito que vive o pós 68. Temática semelhante à de Philippe Garrel e sua galeria de suicidas, mas Pialat tem um distanciamento maior em relação aos seus personagens.

Deixando a digressão e voltando às diferenças entre livro e filme, o personagem vaidoso e deslumbrado do escritor Saint-Marin que irá se converter para aumentar a fama, alusão segundo o professor João Cezar à Anatole France, não existe no Sob o Sol de Satã de Pialat. Ele, no livro, encarna a busca da fama, a celebridade tão presente nos dias de hoje e que passava a ocupar o espaço antes, e de certa forma, do sagrado, seja ele religioso ou não. É este personagem, o do intelectual ambicioso que vai ter seu lugar de destaque no romance moderno; até porque o protagonismo do padre, personagem tão comum a uma época, vide o livro de Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro, entre outros, é neste livro e em Diário de um Pároco anacrônico, sobretudo, se pensarmos em um mundo no qual a religião perdeu se posto de destaque.

Pialat substitui todo o contexto da busca da fama de Saint-Marin por uma cena bem no final do filme, na qual o padre Donissan ao ir atender a criança que está prestes a morrer tem que parar, a contragosto, para dar autógrafos a uma massa que o cerca. No mesmo contexto, outra alteração é que se no livro é o escritor que está à procura de Donissan, quando este jaz no confessionário; no filme, quem o procura é o Padre Menou-Segrais, mestre de Donissan. Esta alteração nos remete a questão temporal no livro e filme.

No livro, existe uma divisão temporal bem mais clara que na obra de Pialat. A divisão do livro é o seguinte: o primeiro capítulo trata de um dia na vida de Mouchette, o dia em que ela acidentalmente mata seu amante; o segundo capítula trata da história do Padre Donissan, seu encontro com Satã, a quase conversão de Mouchette, o suicídio desta e a reclusão por causa disto do padre Donissan; já o terceiro capítulo do livro também se passa em um dia e relata a morte do Padre Donissan, agora santo de Lumbres, quarenta anos depois do suicídio de Mouchette. E a partir da morte do Padre, que ocorre logo após o seu fracasso na tentativa de ressurreição do garoto, temos a história de Saint-Marin que vai transcorrer com a busca de Donissan que está morto dentro do confessionário.

No filme, Pialat cria uma estrutura narrativa que une todos estes tempos. Temos, como primeira sequência, o diálogo de Donissan com seu tutor o Padre Menou-Segrais, algo que está no segundo capítulo do livro, e, na sequência seguinte, depois do momento que Mouchette comunga, Pialat faz um sútil flashback para contar a história desta, que esta na primeira parte do livro; voltando depois a Donissan para segui-lo perdido pela mata rumo a uma aldeia próximo onde ocorre seu encontro com o vendedor de cavalos que encarna Satã e que lhe concede o dom de ver o pecado das pessoas. Dom que o fará enxergar Mouchette em toda a sua culpa e fraqueza quando a reencontrar neste tour, também de force, e quando revelará a mesma que sabe do seu crime, que Deus não a culpa e que todos na aldeia, à sua medida, são também pecadores e dominados pelo mal. Mouchette ao ouvir tais revelações se desespera e acaba pondo fim à vida. Logo depois do suicídio, Pialat emenda o filme com a história do Padre em sua paróquia em Lumbres, fato que no livro se dá 40 depois, com o mesmo desdobramento do livro, só que, como já foi dito acima, sem o personagem Saint-Marin e com o retorno do personagem do Padre Menou-Segrais que no livro, a essa época, já estaria morto.

Bom lembrar que, como explica o próprio Bernanos na epigrafe de Nova História de Mouchette, livro que lançaria em 1937, 11 anos depois de Sol o Sol de Satã, “a Mouchette de A Nova História não tem em comum com aquela do Sob o Sol senão a mesma trágica solidão onde vi ambas viverem e morrerem”. São como Donissan e o pároco sem nome de Diário de Um Pároco, que Bresson filmaria, desdobramentos do mesmo ser humano em confronto com o mal.

Mouchette, no francês “mosquinha”, ilustra em Sob o Sol de Satã e também em Nova História de Mouchette aquilo que Artaud via como marcante em Bernanos já a partir do seu segundo livro, Impostura: “raramente algo ou um homem me fez sentir a dominação da infelicidade, raramente vi o impasse de um destino recheado de fel e de lágrimas, encurralado por dores inúteis e negras como nessas páginas cujo poder alucinatório não é nada perto dessa exalação de desespero que delas emana. Não sei se sou para o senhor um pária, mas de qualquer maneira o senhor é para mim um irmão com lucidez desoladora”.

Pensando no paradoxo etimológico do termo, lucidez desoladora, lucidez como algo luminoso e desoladora como desamparo, falta de luz, queda do sol num brincadeira poética, esse encontro de luz e sombras da pintura e do texto de Bernanos encontra em Pialat, que era pintor, e também em Bresson, alguém apto a potencializá-la em toda à sua grandiosidade pictórica.

Inúmeras cenas do filme remetem a quadros. Depois da morte de Mouchette, por exemplo, Donissan tomado por Satã leva o corpo da adolescente para o altar para devolvê-la a Deus, algo que tentou pouco antes, mas, ao passar da medida, ao exacerbar o dom dado teve efeito contrário, como todo remédio, pharmacos, que carrega sua dose de veneno. A cena dele, Depardieu com Sandrine Bonnaire no altar é um quadro dos mais belos que o cinema já realizou, seja pelo ponto de vista imagético, seja pela significação. E aqui, recorro, novamente, à inteligência de João Cezar de Castro Rocha que afirma, na palestra já citada, que como quem se suicida é Deus de si mesmo, pois decide pela hora de sua morte, Donissan neste quadro tenta, desesperadamente, reverter o pecado último de Mouchette entregando-a Deus no sagrado altar da igreja. Outro plano assustador de composição que remete à pintura é o plano final do padre morto no confessionário com a sua luminosidade perturbadora.

Para fechar essas considerações entre Bernanos e Pialat, vale apontar também, e neste terreno das artes plásticas, a observação do jornalista Antonio Gonçalves filho que no mesmo evento que contou com o professor João Cezar, explicou porque a escolha de Pialat pelo quadro "Angelus" de Jean-François Millet na cena em que o Padre Donissan, após fracassar na ressurreição dos filhos de camponeses escreve sua carta derradeira. No quadro, tempos um casal de camponeses e, entre eles, um cesto e um vazio enigmático. O jornalista explicou que Salvador Dali, que como Van Gogh era apaixonado pelo quadro, descobriu depois que Millet havia suprimido, coberto para ser mais exato, a figura da criança morta que estaria no centro do quadro, provavelmente pela pressão que recebeu de amigos. A supressão aproxima filme e quadro e cuja presença no filme serve como mais uma demonstração cabal da forte relação pictórico do filme de Pialat com o livro, relação, entre outras, que este artigo buscou minimamente explorar.

Cesar Zamberlan

       

 

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