Ano VII

Millennium – texto 2

sábado fev 11, 2012

Millennium, de David Fincher

Após uma dispensável sequência techno de abertura (parece vinheta do Hans Donner), o thriller de David Fincher narra basicamente o ritual de iniciação de uma super-heroína, a hacker Lisbeth (Rooney Mara). Ela restaura o equilíbrio de um mundo do qual está excluída e depois sai sozinha pilotando sua moto por um beco escuro, como num bom clichê de história em quadrinho.

A princípio, o filme desenvolve duas linhas narrativas paralelas: uma com Lisbeth como protagonista e outra com o jornalista Mikael (Daniel Craig), que denunciou um escândalo sobre um magnata mas foi acusado de calúnia e perdeu no tribunal. Embora tenha investigado Mikael para uma grande empresa que a contratou, Lisbeth não o conhece pessoalmente. Só mais tarde os dois irão se encontrar e se unir numa outra investigação: a do misterioso sumiço de Harriet, sobrinha de um milionário, caso ocorrido há quarenta anos, mas ainda carente de explicação.

Os ecos de filmes anteriores do diretor são evidentes: Seven, Vidas em Jogo e Zodíaco, mas sobretudo A Rede Social, que, ao contar a história da mais popular rede social da internet, acabou por se revelar um filme sobre a solidão – um filme escuro e deprimente. A noite constante do inverno nórdico também confere a Millennium uma luz, ou melhor, uma ausência de luz que casa perfeitamente com a vontade de escuridão do cinema de Fincher. Em seus filmes recentes, ele vem tentando captar os indícios e rumores de uma espécie de nova idade das trevas.

A Rede Social já falava de um mundo dividido entre a interface, a superfície reluzente em que imagens e textos se inscrevem, e o código, a caverna onde números, letras, senhas e criptogramas se misturam num verdadeiro painel hieroglífico que só o olhar perito pode decifrar e organizar. O principal argumento de Zuckerberg contra as acusações de roubo de propriedade intelectual feitas pelos gêmeos que o processavam era: “Eu não usei nada do código de vocês”. O código, portanto, é o que conta; é nele que reside a estrutura conceitual da Ideia, a essência verdadeira da coisa. A semelhança entre as interfaces, ou entre as aparências, não quer dizer nada: se não há semelhança no código, não há plágio da ideia, logo não há roubo de propriedade intelectual. A dicotomia código-interface se estabelece em substituição aos termos platônicos de Ideia/forma inteligível-realidade aparente/forma sensível. A verdade está no código; a interface contém apenas o mundo sedutor e ilusório das aparências.

Do mesmo modo que uma rede social de internet se estrutura como uma interface sedutora e colorida sustentada por um código subjacente denso e obscuro, a vida social retratada nos filmes de Fincher ganha essa composição dualística: há o mundo das aparências, da superfície visível (digamos, Mikael e sua amante), e o mundo das cavernas, do underground, da rede criptografada de signos (Lisbeth e seus amigos hackers). A Rede Social mostrava toda a atmosfera de solidão e toda a inabilidade social que subjazia à vida do criador do Facebook, o dono da ideia, ou melhor, do código (a ideia mesma nem é só dele). Em Millennium, há também essa vontade de investigar o que está por trás da interface. A casa do psicopata é uma construção espacial que ilustra isso muito bem: em cima, o lar requintado, moderno e transparente (as paredes são de vidro) onde ele recebe seus convidados para jantares finos; no porão, a sala de tortura onde ele executa suas vítimas (a transparência do andar de cima era falsa, portanto). A boa interface é aquela que consegue manter em silêncio as ações subterrâneas que a permitem existir – como Harriet, na chave oposta à do seu irmão psicopata, manteve em silêncio que ainda estava viva e deixou para trás seu passado traumático. A interface é enganosa; sua função é encobrir a verdade estranha e indesejável gravada no código. A vida psíquica também é tragada nesse sistema: os traumas, as neuroses, as perversões, as zonas misteriosas da mente não aparecem na interface amena das redes sociais.

Uma sequência chave é aquela em que Lisbeth se disfarça de loira fatal e viaja para um paraíso fiscal a fim de operar as manobras financeiras que incriminarão o inimigo público de Mikael. Naquele momento, ela cruza a fronteira, passa para o lado das pessoas que “mantêm a aparência”. É o colapso dos dois mundos retratados pelo filme. Lisbeth ajeita a vida de Mikael, conferindo a estabilidade de que ele precisava para retornar à rotina, mas isso inclui ele retomar seu romance com a coeditora da revista em que escreve. Ele prefere a mulher madura e sofisticada. Lisbeth é rapidamente expelida do mundo “normal” com que flertara por uns dias.

O lado detetivesco do filme funciona igualmente nessa lógica contemporânea que Fincher observa com precisão. Para descobrir os fatos obscuros do caso Harriet, é preciso, entre outras coisas, imergir na poluição de signos dos meios computadorizados e suas ramificações e achar as interligações das imagens e informações encontradas.

A sequência em que Mikael e Lisbeth analisam as fotografias feitas no desfile no dia do desaparecimento de Harriet é talvez a mais instigante do filme. O elemento revelador do crime está numa imagem indicada por outra imagem: trata-se da fotografia tirada por uma mulher que aparece empunhando sua máquina fotográfica numa das imagens analisadas por Mikael e Lisbeth, justamente a imagem em que Harriet está assustada com alguma coisa que ela avista no espaço fora de quadro. É esse contracampo perdido, esse campo cego que precisa ser encontrado. Uma vez localizada, entretanto, essa fotografia não fecha o quebra-cabeças, mas abre um novo campo de possíveis: qual dos rostos ali registrados corresponde à identidade do assassino? A resposta só vem pela conexão. O olhar não deve apenas ver a imagem, mas conectar os signos extrínsecos que possibilitarão sua leitura, seu reconhecimento óptico. Em outras palavras, é preciso achar, fora da imagem, o elemento de sutura, o termo de ligação.

A investigação, em Millennium, está condicionada ao paradigma do mundo virtual e da ultravigilância. As táticas à moda antiga (cruzar informações, checar fontes, interrogar envolvidos, fazer pesquisas em bibliotecas e arquivos…) se conjugam às novas táticas: hackear, fuçar na internet, instalar microcâmeras. Lisbeth é o cérebro moderno, o raciocínio adaptado às novas formas de significação e rastreamento que têm na internet seu instrumento principal.

O ambiente virtual se caracteriza, de um lado, por uma incrível abundância de signos (vindos de todos os lados) e, do outro, por uma carência de elementos sintáticos ou peças de transição que possam agrupar esses signos em uma cadeia coesa. O resultado é uma circulação inflacionária de significantes puros, desprendidos de seus significados originais, “cacos de linguagem” arrancados a uma sequência coerente e abandonados à própria sorte. O herói competente, nesse contexto, é aquele que, além de invadir as redes de troca de informação privadas, sabe conectar e sincretizar os signos mais díspares, religar os fragmentos dispersos, passar de um link para o outro.

Ao contrário de David Lynch, Fincher não tira proveito das energias liberadas pela destruição da cadeia significante. Ele tenta restabelecer a ordem, reconquistar o sentido perdido. O inquérito de Millennium leva a uma certeza, a um culpado, a um desenlace. A parte investigativa do filme decepciona, para dizer a verdade. Um assassino em série que cita a bíblia, que tem filiação nazista e estupra suas vítimas antes de matá-las é algo que o cinema e a televisão já codificaram e massificaram. O fundo do mistério, portanto, não passa de um clichê (no sentido fotográfico e simbólico). Nada de imprevisto. Mesmo as perversões, os comportamentos desviantes – ou ainda: sobretudo os comportamentos desviantes – já estão catalogados e armazenados no banco de dados da cultura. O filme frustra o espectador que acreditou que algo de diferente podia sair disso. Nem o thriller cyberpunk nem a parte romântica da intriga nos dão algum alento. Só existe o previsível.

Desde Hitchcock, o suspense repousa sobre uma dúvida fundamental: há mesmo um segredo ou tudo está à vista e qualquer coisa a mais terá sido invenção sem propósito? E se o crime no apartamento da frente não passar de uma fabulação da cabeça de James Stewart? Tão logo se faça essa pergunta, o pavor se instala, porque o suspense, no fim das contas, não é o medo do que quer que possa existir para lá das aparências, mas sim a angústia perante a possibilidade de que não haja nada. Isso equivaleria a constatar um mundo opaco e completamente alheio aos nossos desejos de visão. Um mundo assustador porque monótono e sem resposta. Como em Zodíaco: os signos se somam no vazio, cada nova revelação conduz a um novo labirinto sem saída.

Millennium dá um passo atrás: achamos a saída, e ela é o clichê (a única coisa que ainda pode dar liga e cimentar nossa experiência com as imagens?). Melhor ficar com a questão realmente interessante do filme: a representação de um mundo em que o real e o virtual se misturaram numa ambiência sombria e assustadora. Pessimismo de Fincher?

Luiz Carlos Oliveira Jr.

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Millennium, por Heitor Augusto

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