Ano VII

Mulheres Apaixonadas

quarta-feira jan 4, 2012

Mulheres Apaixonadas (Women in Love, 1969), de Ken Russell

É lamentável que um cineasta tão expressivo como Ken Russell tenha sido tão pouco lembrado após morrer, no último dia 27/11. Mesmo em sua Inglaterra natal, Russell era dado como um velho louco, cujo sucesso no passado não foi suficiente para que mantivesse a respeitabilidade (ao morrer, aos 84, ele se encontrava em uma espécie de limbo artístico, queixando-se de, há décadas, não conseguir verbas para seus projetos).

A chegada recente de dois de seus melhores filmes em DVD no Brasil não tem relação com a morte de Russell, mas seus fãs podem tomar a liberdade de ver os lançamentos como uma maneira de homenageá-lo. São eles Mulheres Apaixonadas (Versátil), de 1969, longa que o projetou internacionalmente e ainda hoje sua obra de maior prestígio, e Delírio de Amor (Classicline), de 1970, menos lembrado hoje em dia, mas controverso quando lançado.

É justa a aclamação a Mulheres Apaixonadas: é uma ousada e bem-sucedida adaptação do livro homônimo de D.H. Lawrence, feita em um barroco hipersensualizado que impressiona pela sofisticação visual. A história se passa na Inglaterra do pós-1ª Guerra e se centra em torno de quatro personagens: as irmãs Gudrun (Glenda Jackson) e Ursula (Jennie Linden), o industrial Gerald (Oliver Reed) e seu amigo Rupert (Alan Bates). O durão Gerald inicia um romance com a liberada Gudrun, mas a falta de sintonia entre a sensibilidade de ambos e a competição de suas personalidades possessivas torna o relacionamento um fracasso. Já Rupert, embora mantenha desejos (não tão) ocultos pelo amigo, envolve-se com Ursula, que ele crê amar; mas a união heterossexual, mesmo feliz, não lhe é suficiente.

Diferentemente dos filmes futuros de Russell, aqui os personagens escapam à caricatura; são, aliás, bem complexos (e por vezes até imprecisos) e de surpreendente modernidade. O filme apresenta diversos temas relacionados às diferentes formas que cada pessoa tem de ver o amor, mas a que se sobressai é a confusão sexo-sentimental de Rupert (que Lawrence criou baseando-se em si mesmo). Seu interesse por pessoas do mesmo sexo não se limita ao desejo físico: tem natureza também espiritual. Para se sentir completo, Rupert precisa amar e ser amado por uma mulher e por um homem; os dois amores jamais concorreriam – seriam complementares. O seu drama é justamente não conseguir encontrar uma forma de exercer e receber esse amor (como convencer o objeto de sua afeição dessa via amorosa se Rupert sequer é capaz de formulá-la em palavras?). As leituras mais simplistas (do livro e do filme) reduzem a inquietação de Rupert à sua mera dificuldade de assumir essa homo/bissexualidade, mas o que Lawrence (e Russell) propõe vai além: é a existência de uma outra categoria amorosa, que escapa às rotulações básicas da hétero, bi ou homossexualidade.

Mulheres Apaixonadas condensa alguns dos procedimentos fílmicos que Russell utilizaria (e levaria ao extremo) até o fim da carreira, principalmente a estrutura baseada em cenas relativamente rápidas e, digamos, “descomplicadas”, que acumulam uma tensão que só vem com força à tona em sequências posteriores, mais extravagantes, de natureza catártica; estas pontuam e complementam as antecessoras em termos emocionais. E no filme, pelo menos meia dúzia dessas grandes sequências são de altíssimo nível, figurando entre as melhores da carreira do cineasta inglês (com o tempo, Russell foi se perdendo em sua obsessão pelo rococó, e seus filmes de a partir de meados dos anos 70 se afogariam na própria excentricidade, muitas vezes atingindo um lastimável mau gosto).

Das grandes sequências do filme, uma foi tão chocante que praticamente eclipsou as demais: a cena homoerótica de luta, em que Reed e Bates se enfrentam nus, diante de uma lareira. É de fato a melhor, mas o filme traz diversas outras também memoráveis (Glenda dançando diante de um rebanho de touros ferozes; Bates em êxtase, esfregando o corpo nu em plantas ásperas; Reed dando chibatadas em seu cavalo para chamar a atenção de Glenda). São cenas vagas, ambíguas, mas é improvável que alguém fique indiferente a elas – se não são claras quanto ao seu significado diegético, fazem apelo imediato aos nossos sentidos.

Bruno Ghetti

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