Ano VII

Marco Ferreri

quarta-feira dez 14, 2011

Dillinger Está Morto (Dillinger e’ Morto, 1969)

A Cadela (Liza, 1972)

Glauco (Michel Piccoli) volta para casa depois de mais um dia de trabalho (um trabalho bem esquisito, por sinal – meio futurista, o que combina com o que Ferreri pretende mostrar). Glauco resolve preparar comida no fim de noite, enquanto sua mulher (Anita Pallenberg) está no quarto dormindo e a empregada (Annie Girardot) exercita seu poder de sedução (não em direção a ele, mas para o espectador). Quando esse homem autista procura alguma coisa comestível na dispensa, encontra um revólver antigo embrulhado num pedaço de jornal que contém a notícia de que o famoso gangster dos anos 30, John Dillinger, havia morrido. Começa a tratar a arma como se ela fosse mais um ingrediente de seu jantar. Dá a ela até mesmo um banho de óleo. Mais tarde pinta esse revólver com uma tinta entre o rosa e o vermelho, cor sugestiva. Vemos todas essas ações, e algumas outras, com um mínimo de diálogo. O rádio ligado o tempo todo com sucessos da época não impede a constatação. Dillinger Está Morto é cinema mudo.

Imagens de um filme caseiro explodem na parede acompanhadas do som de um vinil não identificado de música brasileira (talvez o Quinteto Ternura, quem sabe?). Imagens de sua esposa e de uma morena em alguma viagem de férias. Dessa forma, conhecemos um pouco esse personagem. O suficiente para compormos um retrato parcial. Esse homem é, ou já foi, um grande bon vivant. Parece ter de tudo na vida. Tem uma bela casa, uma bela mulher e até mesmo uma bela empregada, mas pelo jeito não quer nada com elas, a não ser brincar com seus corpos como se fossem inanimados. Aparenta estar em algum tipo de transe. Faz micagens vendo seus filmes caseiros, brincando com o que é projetado. Adriano Aprá acertou na mosca: é um homem que regrediu à idade infantil, o homem da época (e, podemos dizer, ampliando o alcance do filme, o homem de hoje). Mas também um homem impotente. Curiosa análise do fim das utopias sessentistas, antes mesmo que estas se mostrassem caducas.

Dillinger Está Morto promove de maneira ainda mais minimalista o que Zabriskie Point promoveria com impacto no ano seguinte: a tentativa de destruição do mundo capitalista. Em Ferreri, há sua implosão. Em Antonioni, a explosão (que espalha eletrodomésticos pelo ar). Não por acaso, os dois cineastas foram muito próximos, e Ferreri já declarou sua admiração por Antonioni. O diretor de A Comilança ainda conseguiu, com algumas picaretagens, dinheiro para que Antonioni fizesse seu primeiro longa, Crimes da Alma (1950).

Na verdade, Ferreri é um Antonioni possuído pelo espírito de Buñuel, o que resulta numa combinação mágica. Em 1968, quando Dillinger foi filmado, Buñuel passava poucas semanas por ano na Europa. Morava no México há muito tempo, tinha deixado de ser europeu. Tivesse vivido o maio daquele ano mais de perto e respondido com um filme, provavelmente esse filme seria parecido com Dillinger Está Morto. As cenas urbanas no início, com a volta de Piccoli para casa, depois de umas experiências estranhas em seu trabalho estranho, são puro Buñuel (lembram tanto as cenas urbanas de A Bela da Tarde quanto as de O Discreto Charme da Burguesia, que ele ainda iria fazer). A relação de Glauco com a empregada também é buñueliana. Da mesma forma, a maneira como os dois cineastas lidam com o cotidiano burguês tem semelhanças pontuais (ainda que Buñuel seja menos sutil em seus ataques). Ambos trabalham com reenquadramentos constantes e movimentos de câmera discretos e funcionais. Mas Buñuel nunca filmaria um plano como a imagem de Anita refletida no espelho (criando um sobre-enquadramento simétrico). Seu estilo era mais conciso, mais distante do barroco.

Mas dizer que Dillinger Está Morto é uma reflexão sobre maio de 1968 seria reduzir sua força e sua amplitude. Glauco está cansado do mundo e da hipocrisia que reina na humanidade, o que torna esse personagem desiludido – e um tanto perdido ao lidar com essa desilusão – ainda atual. Quer partir para outra, apagar seu passado e viver uma nova vida. Pensa que essa nova vida, longe do contato com o mundo corporativo (uma vida em transe?), lhe trará paz de espírito. A relação, portanto, com o protagonista de A Cadela é evidente. Piccoli deu lugar a Marcello Mastroianni (que agora é rebatizado de Giorgio). Esse homem solitário, que vive em uma ilha deserta do mediterrâneo com raros contatos com a urbanidade, encontrou uma companhia melhor que a esposa (que tornou-se uma mulher perturbada, vivendo com os filhos em um apartamento de classe média alta em Paris). A companhia de Giorgio agora é um cachorro chamado Melampo. Quando surge uma burguesa em seu mundo, espevitada e mimada como quase todas as burguesas, sua vida tem nova mudança. Essa burguesa, aliás, Liza (Catherine Deneuve), provoca o afogamento de Melampo, e confessa o crime a Giorgio. O que acontece então é inusitado. Ele faz com que ela ocupe o lugar do cachorro, usando coleira e lambendo-lhe a face. Aproveita-se também das vantagens: fazer sexo com uma mulher é bem melhor que com um cachorro.

Perto do minimalismo corrosivo de Dillinger Está Morto, A Cadela parece um filme comercial (entre os dois, Ferreri realizou os importantíssimos A Semente do Homem e À Sombra do Vaticano). Por outro lado, é possível imaginar, hoje, atores desse naipe em papéis como esses? Já pensaram, Louis Garrel tratando Audrey Tautou como se ela fosse uma cadela? Troquem por Romain Duris e Cécile de France, ou por qualquer outro casal de atores do cinema contemporâneo. Impossível. Esse desprendimento dos atores e do diretor, a coragem de se arriscar em personagens antipáticos ou humilhados, é de outros tempos. Tempos em que a cultura da aparência (que sempre existiu) ainda não era dominante. Se A Cadela não chega a ser a obra-prima que é Dillinger Está Morto é porque Mastroianni ainda permite uma empatia com seu personagem, algo que Piccoli, com seu cinismo frequente, evita com facilidade (e é singular e corajoso que Ferreri busque a impossibilidade de empatia com seus protagonistas). Em um momento de A Cadela, Piccoli e Mastroianni se encontram. São grandes amigos do passado, na narrativa. Então é como se um amigo tivesse alcançado o que o outro havia tentado três anos atrás (ou havia sonhado?). A evolução misantrópica se completa.

O mundo continua um lugar apodrecido, onde a hipocrisia e a falsidade dominam. Seus contatos com a civilização nunca são aprazíveis. Melhor ficar só, ou com uma burguesa que, de tão vazia, esqueceu sua condição feminina. Giorgio não sabe se relacionar com iguais. Liza preferiu se tornar quadrúpede. E o homem que renega toda a tecnologia para adotar uma vida rústica (justificando o prólogo de Dillinger Está Morto), tem um avião cor-de-rosa como veículo para uma nova fuga, no lugar de um revólver de cor semelhante (lembrando ainda que Dillinger Está Morto termina com uma viragem vermelha no final, com o navio partindo rumo ao desconhecido). A cor avermelhada, em Ferreri, representa uma esperança de liberdade.

Sérgio Alpendre

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