Ano VII

Isto Não É Um Filme

quarta-feira nov 30, 2011

Isto Não é um Filme (This Is Not A Film, 2011), de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb

Grandes artistas, no decurso da História, ficaram marcados pela capacidade de fazer da circunstância força motriz de sua criação. A censura e o opressor Estado Iraniano são óbvios alvos e, ao mesmo tempo, instâncias geradoras deste meta-documentário : proibido de fazer filmes pelos próximos 20 anos, em prisão domiciliar e com uma provável sentença a caminho, o diretor Jafar Panahi, supostamente entregando um “não-filme” (composto basicamente de imagens de um dia em sua vida, feitas pelo amigo e documentarista Mojtaba Mirtahmasb), concebeu uma das mais inventivas e dinâmicas peças do cinema atual. Desde o título até o (genial) uso dos créditos, passando pela banalidade das cenas caseiras (captadas, por vezes, por câmeras digitais de baixa resolução) e o formato mezzo-reality show (como se houvesse uma câmera onipresente, isenta de direção), o (não) filme é norteado pelo fator limitador (afinal de contas, trata-se de uma questão séria: a cabeça do diretor em jogo), mas aproveita-se do mesmo não só para provocá-lo (e nesse sentido, refletir sobre tal) como também, a partir do rompimento de barreiras entre o real e a encenação (o que o aproxima, de certa forma, a um Verdades e Mentiras, de Orson Welles, ou Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho), nos faz repensar a força e os limites da imagem cinematográfica – aqui talvez o seu maior valor enquanto objeto artístico.
A sequencia onde, diante de uma grande TV, Panahi exibe e comenta trechos de dois de seus filmes, corrobora essa relação entre real e ficcional, intenção e circunstância: numa, o gestual e o revirar de olhos de um personagem são creditados ao ator (um não-profissional); noutra, a atriz mirim, cansada, pede para parar o onibus onde a cena se desenrolava, desce, senta à calçada e tira o gesso que usava – despindo a personagem, enquanto a filmagem continua e outra cena acaba por nascer dali. O grande cinema é aquele onde não há zona limítrofe entre ator e personagem. “Quero tirar o gesso”, complementa o diretor, agora um ator encenando sua própria vida.

Talvez um dia tenhamos acesso à informação de qual parcela do que vemos aqui é incidental e qual é deliberada (provavelmente, a vasta maioria); por hora, é justamente a soberania da imagem projetada que nos interessa : pouco importa se o “substituto de zelador” que surge no segmento final é mesmo um funcionário ou um ator se passando por tal, é sua função como personagem (ligação entre vários pontos levantados, além de uma espécie de “libertador” do interlocutor, que finalmente resolve empunhar a câmera principal) que o faz necessário. E se falamos em personagem, podemos pensar em diegese – e é por esta via, refletindo a realidade mas com uma organização própria, que o diretor consegue impor o seu discurso, seja driblando e alfinetando seus algozes com a habilidade de um Chico Buarque em seus melhores dias ou usando a todo tempo artifícios do cinema narrativo para torná-lo mais envolvente. Artifícios esses que vão dos stablishing shots (na mesa onde, tomando um café da manhã, Panahi liga ao amigo dizendo que “tem uma idéia” e no quarto onde, pela secretária eletrônica, a mulher – seus parentes só se fazem presentes por via telefônica – avisa que o filho deixou a câmera ligada) até a montagem paralela onde, num acesso de lamentos e uma certa melancolia, a câmera começa a perder interesse pelo ator e resolve acompanhar sua enorme iguana escalando uma estante. Momentos como esse, de chacota à própria condição, também auxiliam a fruição de uma terrível realidade, resultando num trabalho ao mesmo tempo socialmente consciente, desafiador e acessível, onde o espectador não precisa de conhecimentos prévios a respeito do contexto que cerca a obra para compreendê-la ou apreciá-la.

O conceito de “mensagem” numa obra é bastante limitador, mas se nos permitirmos achar que existe um mote em Isto Não é um Filme, este é : proibir um homem de criar é proibí-lo de pensar. O campo-contracampo onde ambos filmam e são filmados por suas respectivas câmeras (uma delas, um celular) sugere que as mesmas são partes integrantes, representações de seus intelectos. Privá-los de suas câmeras é tentar domá-los, ação que sempre ensejará uma reação, quase como uma resposta natural – a catástrofe no Japão (resposta da natureza ao homem) vista pela moldura da TV, os fogos de artifício de ano-novo misturados à bombas de protesto (resposta dos cidadãos ao ambiente opressor do país) vistos pela moldura da janela, o filme que vemos pela moldura da tela de projeção.  Os DVDs piratas, estrategicamente expostos ao lado da TV, parecem outra forma de provocação ao severo regime de controle local (onde até o acesso a certos sites de internet são bloqueados, conforme outra cena faz questão de ilustrar) – também posicionando a obra ante questões atuais como a evolução tecnológica e o consequente impacto na forma de produzir (as câmeras digitais utilizadas, desde o modelo de maior definição até o já mencionado celular), pensar e no caso específico distribuir o cinema (a disseminação de gravadores de dvd ou até os downloads, enfim os efeitos do acesso facilitado – convém lembrar que o filme saiu do país num pen drive dentro de um bolo). Um filme consciente de seu tempo, trazendo à baila essa “era pós-moderna” do cinema, ou a nova forma de pensar e encarar o cinema e a mise-en-scene que talvez só encontre paralelo no Godard de Filme Socialismo.

Dizem que o grande cineasta, quando por questões financeiras ou outras, tem um hiato indesejado em sua carreira, continua sua “produção” pensando filmes – mesmo que estes se desenrolem apenas em sua mente, mesmo que sirvam apenas para agregar ao próximo a ser rodado. Isto não é um Filme, alicerçado por todos os filmes que Panahi teve soterrados pela censura, é o mais próximo que já chegamos da materialização desta idéia.

Leandro Schonfelder

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