Ano VII

Olhar de Cinema 2019

domingo jul 7, 2019

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Balanço do 8º Olhar de Cinema

Por Sérgio Alpendre

Foi a terceira edição que acompanhei do Olhar de Cinema. A primeira foi em 2012, quando o festival surgiu. Voltei dela com uma forte gripe. A segunda foi em 2016 (5ª edição), e apesar da temperatura negativa em duas madrugadas, voltei intacto. Em ambas, tive a companhia do velho e saudoso amigo Cid Nader, de modo que foi um pouco doloroso voltar lá desta vez.

Algo diferente aconteceu nesta minha terceira experiência com o festival. A programação do 8º Olhar de Cinema, pelo menos em sua mostra competitiva, fez parecer que o cinema brasileiro está acima da média do cinema mundial. Os filmes internacionais novos mais fortes (A Portuguesa, Cinzas e Brasas) passaram fora de competição. Que se registre que, entre os novos, dei prioridade aos filmes brasileiros, vendo somente os dois acima citados entre as sessões não competitivas.

As sessões eram sempre apresentadas por um dos curadores, que por vezes convidavam críticos e pesquisadores presentes para ajudá-los na programação. Segundo Aaron Cutler, se num festival os programadores são as estrelas, o festival não é bom. No que eu concordo plenamente. Pena que não pude atender aos seus convites para apresentar alguma das sessões. Ou eu não conhecia o filme, ou veria outro no horário, ou não me lembrava do filme que iria rever. Sinto muito, Aaron.

Foram muitos os filmes exibidos no festival e era impossível ver todos eles. Diria até que é impossível ver a maioria deles, a não ser quem os tivesse visto em outros festivais. Cada filme tinha uma reprise, normalmente no dia seguinte e em outro cinema. Muitos filmes, sobretudo (ou só) os novos, eram seguidos de debate. Nesse sentido, não ter havido grandes atrasos (ao menos não fiquei sabendo de nenhum) foi um feito e tanto da produção.

Pensei em diversos textos a partir de ideias que me vinham após os visionamentos dos filmes. Passou o tempo e essas ideias meio que se esvaíram, mas não de todo. Elas ressurgirão em outro momento. Por enquanto, seguem alguns breves comentários sobre os filmes que vi no Olhar, incluindo aqueles que eu já havia comentado no blog.

banquete

Banquete Coutinho, de Josafá Veloso, começa com a menina Luiza, que encerra Últimas Conversas, o derradeiro filme de Eduardo Coutinho. Ela fala as coisas que só cabem numa cabeça de criança, coisas mágicas como “Deus é um homem que morreu”, e em sua saída, após entender a mão estentida de Coutinho apontada para a saída da sala como um convite para um “high five” meio tortuoso, sai da sala e volta após os aplausos da equipe para agradecer. É um dos trechos mais mágicos de todo o cinema do diretor, sobretudo porque a menina é um assombro de charme e carisma, uma pequena criatura que roubaria qualquer cena de qualquer filme.

O que Veloso pretende é uma homenagem a Coutinho que mostra a maneira como ele se colocava nos filmes, como sua voz enrouquecida pelo cigarro dominava o som de seus últimos filmes. Uma homenagem composta em sua maioria por uma entrevista feita com o diretor em 2012. E aí o jogo fica fácil, porque em 2012 Coutinho já tinha atingido há muito um estágio em que podia falar o que bem entender, sem medo de ser incompreendido ou tomado por grosseiro. E diz coisas mais ou menos assim: “Deixei de querer ser artista e comecei a fazer documentários. Quer dizer, eu quero que os outros me considerem artista, porque nós somos contraditórios”. Então ele se torna um personagem dos sonhos, é quase como ligar a câmera e esperar que ele se entregue, fazer do caçador a caça.

Mas Josafá Veloso não se contenta com isso e busca dialogar com a obra de Coutinho de modo corajoso, incluindo um curta de formação no IDHEC. Ainda que sua pergunta principal – “Coutinho faz sempre o mesmo filme?” – seja um tanto óbvia (seu método se repete principalmente de Santo Forte em diante, com algumas variações), assim como sua resposta – “É sempre o mesmo filme, mas é outro filme” – os caminhos proporcionados por essa ideia são interessantes. E o filme trata de seguir esses caminhos, alternadamente e um tanto aleatoriamente, o que não prejudica a construção geral, justamente porque as indagações originadas a partir da indagação principal permitem esse lado aleatório. Mais do que homenagem ao cineasta Eduardo Coutinho, Banquete Coutinho é uma investigação sobre seu cinema. Uma investigação que não é guiada somente pelas palavras do próprio realizador, mas procura seu próprio meio de entender sua obra.

Bimi Shu Ykaya é um filme curioso, com direção tripartida (Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube), sobre Bimi, anciâ de uma tribo que é escolhida para uma posição normalmente ocupada por homens: a organização de uma aldeia. O tema implícito desta edição do Olhar foi o direito das mulheres, tema guiado sobretudo pelo ótimo filme de Helena Solberg, A Dupla Jornada (1975), exibido na mostra Diálogos no Exílio. Bimi Shu Ykaya é assinado por três cineastas formados pelo Video nas Aldeias, que agoram encontram terreno para fazer valer seu olhar personalíssimo e de certo modo original, com alguns dos plongées e contra-plongées  mais sutis e bem inseridos do cinema brasileiro recente e um ritmo facilitado pela duração de 52 minutos. Além disso, o filme nos permite conhecer costumes curiosos da etnia, como os curiosos cantos em falsete, as perfomances com violão e os rituais de iniciação.

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A Rosa Azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, repete parcialmente, como já muito percebido e dito por aí, a estratégia do longa anterior de Vinagre, Lembro Mais dos Corvos, sem a delicadeza que permitia a este último alguns momentos de maior interesse. Pelo contrário: Rosa Azul é bem direto e reto. Até mesmo a perdição da câmera, com seus balanços descontrolados causados por alguma tentativa de ajeitá-la, parecia mais adequada nos Corvos, provocando, neste Rosa Azul, apenas irritação. Muitos críticos me confessaram repulsa por este longa. Penso que não é para tanto. Sua força está muito mais na ideia do que na execução, pois o filme acaba inserido num momento de resistência contra a barbárie fascista. Se a adesão ao filme me parece vir muito dessa condição, talvez a repulsa a ele seja também uma reação impensada ou mesmo infantilizada a essa adesão fácil. De todo modo, o filme tem ao menos um momento realmente arriscado de um ponto de vista artístico (o plano inicial e o plano final são arriscados de um ponto de vista da censura homofóbica): a cena do velório, composta por dois planos, um muito longo que se encerra com um zoom e um curto, mais aproximado. É quando os diretores deixam evidente um outro caminho possível a partir do longa anterior: uma espécie de aprofundamento daquele momento, do outro filme, em que Julia Katharine veste um quimono. Há também uma volta ao tom mais sexualizado de Nova Dubai, famoso curta de Vinagre. Em dado momento, lembrei de Georges Bataille. E o protagonista lembra em seguida, da História do Olho, no episódio do leite de amendoa. Bataille inspirou João César Monteiro – referência (consciente?) na já mencionada cena do velório. Nessa briga de gigantes, Vinagre e Carneiro são meros aprendizes. Mas souberam escolher bem seus mestres, o que é importante. Só não sei se a estratégia do choque pelo choque que o filme adota nos últimos dez minutos é a melhor maneira de resistência. Quando entramos literalmente dentro de um ânus, somos devorados pelas entranhas humanas e não temos mais o distanciamento crítico que permite uma resistência mais pensada. Até entendo: por vezes só é possível a radicalização.

Família da Madrugada, de Luke Lorentzen, é um documentário mexicano sempre interessante, embora pouco ou nada memorável, sobre uma família que se mata de trabalhar numa ambulância particular. O veículo funciona para compensar a escassez de ambulâncias do serviço público numa Cidade do México de classe média para alta. É um negócio, que visa lucro, e por isso atende parcelas privilegiadas da população. Mas é um negócio que surge para suprir uma deficiência, mais ou menos como os motoristas de aplicativos, que muitas vezes até usam o carro como dormitório – algo parecido com o que fazem os membros da família Ochoa, que acompanhamos com um misto de apreensão e curiosidade. É uma espécie de versão de Vivendo no Limite (de Scorsese), com uma forte porção documental. O que ganha em impacto com essa opção mais, digamos, verdadeira e urgente, sobretudo porque conhecemos melhor a noite da capital mexicana, perde em invenção e dramaturgia, embora sua faceta de docudrama (o tipo mais comum de filme nos festivais de hoje) seja perceptível e se encarregue de fornecer ao menos um pouco de dramaturgia, ainda que disfarçada pelo aspecto de reportagem. Para ver uma só vez, o longa até funciona bem. Mas a meu ver é cinema em modo tímido, quase inexistente.

Quanto ao argentino De Novo Outra Vez, de Romina Paula, enquanto o via ficava pensando na improvável, porém bem-vinda contaminação de mais esse retrato familiar por algum elemento de horror. Por exemplo, se aquela avó simpática, mãe da diretora, revela-se uma bruxa com feitiços capazes de fazer o netinho se transformar num mutante, algo assim. Porque a crise de imaginário afeta muito o cinema brasileiro, que é o que melhor conheço, mas percebo que afeta outros cinemas também: o argentino, por exemplo. E aí temos mais um documentário que flerta com uma certa dramaturgia do real, quando de fato há apenas a ilusão da dramaturgia, não mais a ilusão do real. Não se trata, pelo amor de Mizoguchi, de desprezar a história de vida e as crises da diretora. Pelo contrário. Reconheço que seu filme, dado o limite óbvio da proposta, tem seus momentos belos, e que o filme finalmente encontra um eixo na segunda metade, e com isso cresce. Mas é que cada vez mais o cinema está refém desse tipo de prospecção, que é bem diferente daquilo que faz Sinai Sganzerla com sua mãe, uma pessoa com história no cinema. Se o filme de Romina Paula está acima da média desse tipo de proposta é porque ela sabe brincar com o som desconectado da imagem, como na bela sequência final, e com os slides que funcionam como ambientes para confissões das personagens, um ex-namorado e uma garota com quem tem uma fugaz aventura amorosa. Finalmente, é difícil não notar que é mais um filme do 8º Olhar influenciado pelo cinema de Chantal Akerman.

Um outro filme argentino, dirigido por Santiago Loza, é o que encerrou a 8ª edição do Olhar. Breve História do Planeta Verde mostra a viagem de Tania para realizar os desejos de sua avó recém-falecida. Na companhia de dois amigos, Tania deixa as baladas e a intensidade da urbanidade para desbravar o país num ônibus, até o local onde sua avó morava na companhia de um alienígena. Estamos distantes da poesia e do lirismo demonstrados por John Carpenter no inesquecível Starman (1984), no qual Jeff Bridges interpreta um alien amoroso. Aqui, desde o início, entramos numa atmosfera em que a estranheza comanda, já nos movimentos da câmera, que parecem o olhar de uma pessoa calma que passeia invisível por mesas de sinuca e cômodos das casas sem ser notada a não ser pelo espectador, que vê o que ela vê. Depois a câmera se naturaliza, fica menos estranha conforme é colada aos três amigos. O alien não é um homem maduro, bonito e carismático, mas um pequeno e desajeitado monstrinho, com corpo magérrimo e dois enormes olhos dominando a enorme cabeça. Parece ter sido desenhado por uma criança imaginativa. O momento em que somos apresentados à história da avó e do alien é dos melhores. Vemos a narração com stills monocromáticos, um drible inteligente na dificuldade de representar o alien sem maior orçamento. A missão de Tania é então revelada: levar o alien moribundo ao lugar onde ele fora encontrado por sua avó. A aventura podia começar, num filme que começa simpático (não mais do que isso), e vai perdendo a força na segunda metade.

A coisa mais bacana de Entre Dos Aguas, de Isaki Lacuesta, é a mistura entre documentário e ficção, feita de um jeito que nos desnorteia, promovendo a saudosa abolição dessas fronteiras desnecessárias e colocando ficção no documentário e documentário na ficção. Não são nada novas essa mistura e essa abolição, e por isso o filme também tem seu limite. Boas cenas com as crianças, um plano belo no cemitério, já perto do fim, e alguns momentos de graça das pessoas captadas. Fora isso, é longo, com suas mais de duas horas. E nunca empolga de fato, para além de seu conceito híbrido e desses momentos esparsos.

Cinzas e Brasas, de Manon Ott, mostra um bairro perifério da cidada francesa de Flins, onde vivem muitos dos trabalhadores da Renault, fábrica que parece assombrar o bairro como um castelo medieval. O hip-hop e as parcas condições de vida prevalecem no lugar, ilustrando o outro lado do capitalismo cruel que tem se aprofundado desde o fim do século 20, aumentando os contrastes sociais criminosamente. A diretora recorre a um preto e branco granulado e impactante, quase no limite do excessivamente belo, o que poderia levar o filme em outra direção. Felizmente prevalece o incômodo, a denúncia, a crítica e a ligação com a história, pois o filme nos deixa saber da migração dos habitantes de Magreb e da África subsaariana para lá nos anos 1960, incluindo aí menções às rebeliões de 1968, por meio de imagens de arquivo que de certo modo constroem uma ponte entre nossos tempos e aqueles anos utópicos em que se acreditava ser possível uma mudança no mundo.

Quanto a Still Recording, confesso ter alguma dificuldade com esse tipo de filme que parece mais jornalismo que cinema. As câmeras querem testemunhar os fatos a qualquer custo, não importando a qualidade desse testemunho. A ordem é registrar em imagens a história em construção: a história da rebelião na Síria em uma de suas cidades, Douma, a poucos quilômetros de Damasco.

O que ocorre é que essa construção, com o filme pronto, revela-se inevitavelmente muito mais fraca do que o material filmado, seja qual forem as imagens escolhidas no final. Esse tipo de filme parece viver do acúmulo, mais do que do sentido. Mas acontece que deseja-se chegar a algum sentido, senão qual seria o propósito dessa seleção? Esse sentido por vezes tem força, principalmente quando fica evidente que ele é produzido, pensado.

Resulta então que quanto mais pensado mais o filme fica interessante e mais se afasta perigosamente de sua essência, que é a do registro dos fatos. Temos então uma história que é construída aos nossos olhos, ordenada segundo a vontade de seus diretores, com a finalidade de mostrar ao mundo uma situação.

Força e fraqueza. Ao mesmo tempo que nos interessamos pelas imagens registradas cruamente, ficamos tentados a entender essa construção, mesmo quando ela soa arbitrária, o que acontece com frequência indesejada.

Verdade e mentira. Se há construção, há mentira, ordenação subjetiva das coisas. Se há espontaneidade e testemunho, há verdade. Mas num e noutro há também o seu inverso. A construção é também verdade, porque é feita de testemunhos, de verdades, e é, afinal, a verdade de um ponto de vista. Mas o testemunho é mentira, uma vez que passa a servir a uma construção da história. Mas aqui já começo a viajar demais.

A mentira está também em algumas posições e alguns movimentos de câmera. Isso já fica claro na rave da primeira meia hora de filme. São apenas poucos minutos, mas o suficiente para percebermos uma manipulação das coisas. E de certo modo tudo no filme é manipulado. A verdade é manipulada. E apesar disso, uma outra verdade se revela por trás da manipulação. E por isso Still Recording se torna semelhante a de Redacted, de Brian De Palma. Falta-lhe, contudo, o senso crítico e o talento do diretor de Carrie.

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O primeiro longa da competição que vi foi Pretérito Imperfeito, da chinesa Shengze Zhu (de quem vi, três anos atrás, o superior Um Outro Ano). O filme segue os youtubbers chineses (é outra plataforma, exclusivamente chinesa e mais desenvolvida, ao que parece, que seu equivalente internacional) e a interação deles com a legião de seguidores e com outros performáticos. Confesso que não entrei em momento algum na pegada do filme, apesar de reconhecer alguns personagens carismáticos, como o homem que não cresceu, uma espécie de Ferrugem oriental. Mas trabalhar com found footage tem suas facilidades, o que torna difícil fazer qualquer coisa de realmente bom com esse tipo de material.

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O segundo longa da competição é um filme impressionante sobre a experiência paulistana no trato com viciados em crack: Diz a Ela que me Viu Chorar, de Maíra Buhler. O filme flagra alguns dos moradores do hotel no centro da cidade que serviu de abrigo para os viciados. Vemos um tipo de testemunho que só se consegue com muito convívio e muita abertura, o que é um inegável mérito da diretora e de sua equipe.

Pode ser viagem minha, mas senti alguma influência do Hotel Monterey de Chantal Akerman. Neste que é o primeiro longa da genial diretora belga, um hotel decadente de Nova York serve como pretexto para Akerman fazer suas pesquisas visuais com a luz e com o espaço. Totalmente sem som, Hotel Monterey nos entrega o ritmo do hotel e de seus hóspedes e moradores, incluindo uma câmera dentro do elevador por alguns minutos, artifício que Maíra Buhler também usa muito bem. Claro que no filme brasileiro pode-se partir ou não do filme da Chantal Akerman, mas o importante é que se chega a um olhar muito pessoal para aquela situação, e a força do filme vem desse olhar atento, cúmplice, respeitoso com os excluídos.

Vi ainda mais dois filmes, o interessante brasileiro Casa, de Letícia Simões, e o fraco belga Etangs Noirs, de Pieter Dumoulin e Timeau De Keiser.

No filme brasileiro, filha, mãe e avó se encontram em Salvador e lidam com suas diferenças, principalmente entre a mãe e a avó, sendo que a filha é Letícia, a diretora do filme. Mas o encontro começa em 2015 e termina em 2017, com a avó já falecida. Há uma insistência em enquadramentos que cortam personagens. Num dos planos mais interessantes, vemos mãe e avó e só a ponta do nariz de Letícia (e mais alguma coisa de seu corpo), indicando que a diretora quer mesmo é jogar os holofotes naquelas que entende ser suas melhores personagens. De fato, são duas das personagens mais cativantes do cinema brasileiro recente. E se digo personagens é porque a verdade que elas mostram ali é claramente encenada para a câmera, pelo menos da parte da mãe, mais consciente de seu carisma (um carisma um tanto vilanesco, como a filha pretende forçosamente fazer-nos crer).

Casa não é tão forte quanto Diz a Ela que me Viu Chorar, mas é bem digno. Se o filme mostra que o cinema baiano continua pulsante, mostra também que a crise de imaginário do cinema brasileiro recente continua, o que faz com que jovens cineastas muitas vezes procurem o real a qualquer custo, inventando a partir dele. Pelo menos agora já se trabalha melhor dentro desse registro.

Etangs Noirs me pareceu uma estupidez completa. O protagonista JImi deseja entregar um pacote a uma mulher que ele não conhece. O que tem nesse pacote que ele recebeu por engano, e quem será essa mulher? Mal sabemos, e mal saberemos no decorrer do filme. Jimi procura saber encontrar essa mulher, chamada Sayenna. Descobre onde ela trabalha, mas ainda não conhece seu rosto. Segue a mulher errada na saída do metrô. Invade a casa da mulher certa, mas está sem o pacote, deixado com um vizinho. Na casa, vê uma foto e passa a procurá-la no metro tendo a foto consigo, no horário que ela costuma sair do trabalho, segundo o informaram. Ele encontra Sayenna, hesita, e finalmente entrega, do jeito mais sem graça possível. Tudo isso filmado por uma câmera bêbada, usando por vezes a famigerada estética da nuca que cansou antes mesmo de se tornar moda, e apostando nas interrogações para segurar o espectador.Os diretores pretenderam brincar com o McGuffin hitchcockiano numa narrativa totalmente farsesca. Mas o tratamento dado à câmera e o tipo de interpretação adotado, talvez por escolha dos diretores, por Cédric Luvuezo, ator que vive Jimi, comprometem a ideia e tornam um filme de 70 minutos algo penoso de acompanhar.

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A Noite Amarela subverte ferozmente os filmes de terror com adolescentes. Mas subverte tanto que se torna um portentoso enigma. Não é todo enigma que desejamos decifrar. Alguns filmes se tornam herméticos, mas continuam estúpidos, de modo que o suposto hermetismo mais nos afasta do que intriga. O diretor Ramon Porto Mota corre o risco de nos afastar em diversos momentos do filme, mas logo retoma as rédeas e nos mantém enredados nesse campo gravitacional do qual ninguém pode escapar.

Esse campo parece forçar os personagens a entrarem numa espécie de looping, forçados a repetir frases e a ocupar cada qual um quadro diferente; mesmo quando eles saem em três grupos de dois para procurar a garota desaparecida (já tragada por um quadro que não conseguimos ver), eles teimam em se separar, dividindo o quadro em alguns momentos chaves, em que algo do passado vem à tona, ou mesmo alguma birrinha tola aparece, e algo os impele de novo a se separarem.

O split-screen procura colocar mais de um dos adolescentes num mesmo quadro, embora o quadro esteja dividido. Mesmo assim, a dificuldade persiste. Nesse momento, já se abriram as portas da força que os mantém cada vez mais isolados em quadros que se perdem. Os embates anteriores ficam definitivamente para trás: rock contra tecno brega; narrativa da moça meio dark contra narrativa da princesinha; homens de um lado, mulheres do outro, e sobretudo uma resistência à mistura com as outras turmas (as quatro meninas roqueiras se bastam). O enigma da lua que não se mexe no céu se aprofunda cada vez mais, e a estátua da mão decepada parece dizer que não há saída.

A despedida é a imagem de celular que circula do nada pouco antes do fim, uma espécie de celebração do momento em que quase todos ocuparam o mesmo quadro (ficou de fora quem estava segurando a câmera). Estavam felizes, bêbados, num momento que não havíamos acompanhado e não sabemos se realmente aconteceu. Porque desde o começo a comunhão do quadro é quase uma impossibilidade, a não ser nas fotos que vemos dos amigos na balsa (enquanto as imagens em movimento da balsa os mostravam distanciados um do outro), ou nos planos mais abertos da chegada à ilha, ou ainda em alguns outros raros momentos (em que os sete amigos já não conseguem ocupar o mesmo quadro sem que algo, uma sombra ou uma fenda artificial, os separe). No final, todos serão tragados pela escuridão total, onde não há quadro possível.

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O dia ruizbressaniano

A dobradinha Ruiz-Bressane garantiu um dia inesquecível no 8º Olhar de Cinema. De Bressane, a revisão de Memórias de um Estrangulador de Loiras (1970) e a primeira visão de Sedução da Carne (2018). De Ruiz, a primeira vez que vi o raro O Teto da Baleia (1982) e também o média As Divisões da Natureza (1979).

É curioso ver no mesmo dia um Bressane de 1970 e outro de 2018. O tempo passa e o diretor continua irredutível na prática de um cinema que não se rende a modismos ou fórmulas para festivais. É certo que fazer isso agora que seu nome já tem uma grife muito forte é mais fácil. No entanto, ele parece ousar ainda mais atualmente, desde as imagens da primeira parte de seu penúltimo filme (há um outro, co-dirigido por seu montador Rodrigo Lima), algo como um Godfrey Reggio dos trópicos, imagens que procuram levar as pesquisas visuais de Garoto para um outro lado, até a típica conversa bressaniana entre Mariana Lima e um papagaio mudo, com as habituais brincadeiras visuais de perspectiva, foco e nitidez.

Mais curioso ainda é chegar à conclusão que Memórias de um Estrangulador de Loiras, o mais raro e cultuado de seus filmes de exílio, é uma espécie de pré-Elefante, o de Alan Clarke, com uma série de estrangulamentos de loiras (as mesmas atrizes, aliás, são estranguladas diversas vezes) por Guará, o assassino de Londres. Na minha memória, havia menos estrangulamentos e mais deambulações de Guará pela cidade. Estava enganado. O bebê do início pode sugerir um trauma. Guará estaria se vingando pela sexualização de sua primeira infância. Mas Bressane é chegado a pistas falsas, então convém não dar por certo o que é duvidoso, como sempre é em seu cinema.

Do mesmo modo, é fácil entender Sedução da Carne como um filme que advoga contra a matança de animais. Mas o que entendi é que fica explicitado o prazer culpado de quem adora comer carne, mesmo sabendo do sofrimento dos animais. As imagens de Le Sang des Bêtes, o assustador filme de Georges Franju de 1948 (que o filme informa equivocadamente ser de 1938), sugerem essa terrível culpa. Ainda não se fez, ou pelo menos eu não vi, imagens tão eloquentes a favor de uma vida sem ingestão de carne animal do que esse filme de Franju, cineasta sempre subestimado. Mariana Lima, que interpreta uma intelectual que enviuvou há três anos, é perseguida por um pedaço de carne crua, até que termina possuída por vários pedaços de carne crua (elas se multiplicam como gremlins), seu corpo se contorce de prazer.

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Mudando para o chileno Ruiz, se o francês As Divisões da Natureza impressiona pelas distorções radicais do castelo que ele pretende retratar, as imagens do holandês O Teto da Baleia teimam em ficar na cabeça mesmo após duas outras sessões históricas do festival (é o mal de não poder ver um filme e tirar o dia de folga, sem ver mais nada). Causa-me estranhamento o fato de esse filme não ser tão badalado quanto As Três Coroas do Marinheiro, A Vocação Suspensa ou Hipótese do Quadro Roubado, ou mesmo tão elogiado quanto O Território ou A Cidade dos Piratas, todos dessa fase mágica que vai de 1978 a 1983. No auge do maneirismo, Ruiz aprofunda algumas pesquisas de Fassbinder com texturas (há um plano que me lembrou muito de Nora Helmer, telefilme que o diretor alemão dirigiu em 1974) e provoca verdadeiras desconstruções da imagem, criando caleidoscópios e névoas misteriosas numa Patagônia exuberante. O humor é único, a maneira de enquadrar os atores parece um segredo que poucos conhecem, as atuações, por sinal, são algo entre o hipnotizante do Herzog mais radical, o humorístico blasé de um Tanner e o delirante de um Schroeter. Ainda assim, o cinema feito por Ruiz nesse período, com estilhaços por toda sua carreira posterior (vejam, por exemplo, Combate de um Amor Sonhado), parece não ter filiação. É uma obra alienígena, ainda, com a qual temos de lidar com parâmetros ainda não muito conhecidos.

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Toshio Matsumoto é da mesma geração dos três da Shochiku – Nagisa Oshima, Masahiro Shinoda e Yoshishige Yoshida – que deflagraram a Nova Onda japonesa, também conhecida como Nuberu Bagu. Contudo, por ser mais radical e por ter feito, durante quase toda a década de 1960, apenas curtas, ele se tornou membro do movimento posterior, de um cinema experimental que conjugava sexo, violência e ativismo político com uma radicalidade formal permitida, justamente, pelos excessos da Nuberu Bagu. Foi graças a filmes como O Enforcamento (1968) e Três Bêbados Ressuscitados (1968), de Oshima, Eros + Massacre (1969) e Purgatório Eroica(1970), de Yoshida, e Duplo Suicídio em Amijima (1969), de Shinoda, entre outros de Shohei Imamura, Susumu Hani, Yasuso Masumura e Seijun Suzuki, que a explosão que é O Funeral das Rosas (1969) torna-se possível.

Confesso que prefiro, em geral, os filmes da Nuberu Bagu, tanto os mais experimentais, sobretudo na segunda metade dos anos 1960, quanto os de juventude (Noite e Névoa no Japão, de Oshima; As Termas de Akitsu, de Yoshida; Desejo Assassino, de Imamura, etc.) do que os filmes radicais dessa turma que vai passar os anos 1970 botando fogo no cinema do país (o diretor mais talentoso dessa turma, pelo menos na questão da mise en scène, talvez seja Akio Jissoji). E percebo muita influência de Oshima e de Seijun Suzuki neste primeiro longa de Matsumoto (a cena da briga na rua, por exemplo, lembra O Portal da Carne, de Suzuki). Aliás, perguntado por Aaron Cutler se podia apresentar O Funeral das Rosas, tive de declinar, pois não lembrava muito dele, tendo-o descoberto e visto unicamente há cerca de 15 anos (cenas que eu pensava que eram dele devem ser do primeiro longa de Shuji Terayama, por exemplo, longa que, por sinal, parece comportado comparado ao de Matsumoto).

Algo no Funeral, em seu radicalismo ostensivo, me parece girar em falso. É como se o filme ficasse cada vez mais dependente de suas cenas de impacto, culminando no final sangrento: a interdição do olhar. Purgatório Eroica termina com um caminho sem saída para também refletir a quase impossibilidade do cinema japonês na virada para os anos 1970 e seguindo nesta década, e O Funeral das Rosas segue o mesmo impasse. É o que o faz tão belo, e ao mesmo tempo tão desesperançado. Por outro lado, não deve ser ignorado o modo como ele explicita o fazer cinematográfico, colocando a equipe de filmagem em cena, deixando pontas de negativo e até colocando um comentarista externo ao filme ainda antes do final, e com isso tudo amplifica o distanciamento crítico. Mas Imamura já tinha feito isso, com sutileza, em Desejo Assassino(1964) e de certo modo provocava ainda mais inquietações. De todo modo, O Funeral das Rosas talvez seja mesmo o melhor e maior exemplo do cinema radical japonês pós-Nuberu Bagu, tendo sido lançado enquanto a Nuberu Bagu começava a agonizar (e Oshima, contraditoriamente, fazia seus melhores filmes: Garoto, 1969, e Cerimônias, 1970).

A outra sessão do dia foi A Mulher da Luz Própria, de Sinai Sganzerla, sobre sua mãe, Helena Ignez. É corajoso e pertinente o modo como Ignez se assume como vítima do machismo da sociedade brasileira porque se envolveu com outro homem enquanto seu marido de então, Glauber Rocha, se envolvia com outra mulher no Rio e nada sofreu com isso. É curioso, embora seja compreensível, como ela rejeita o epíteto de musa (do cinema novo e depois do cinema dito marginal).

O filme de Sinai dá conta da multiplicidade de registros nas atuações de sua mãe, uma atriz que conseguia mudar completamente a expressão do rosto conforme o filme pedia. Isso fez dela uma atriz única, sem igual no cinema brasileiro, talvez mesmo no mundo. Quando passa para a direção, deixa uma ideia de que parece ter sentido alguma resistência, talvez por pensarem que estivesse se aproveitando do espólio do marido, quando de fato estava com a missão de terminar seus projetos não terminados. Foi um ato de heroísmo ter filmado a continuação do Bandido da Luz Vermelha, pois ela sabia que haveria esse tipo de questionamento imbecil, como se ela não tivesse o direito, ou mesmo a missão, como ela diz, de continuar o que construiu com Sganzerla. Assim como pode haver o mesmo questionamento besta sobre o caráter íntimo e pessoal do filme de Sinai, o que, convenhamos, é o que faz dele realmente tocante.

Tel-Aviv em Chamas, de Sameh Zoabi, é um filme israelense/palestino (em coprodução com Luxemburgo, França e Bélgica) sobre um jovem trabalhador de TV palestino e um militar israelense que se envolvem inusitadamente. O jovem palestino tem de passar todos os dias por um posto de comando israelense, pois mora em Jerusalém, mas trabalha em Ramallah. Lida então com militares quase sempre mal intencionados ou mal preparados, para acompanhar a gravação de uma novela palestina de sucesso: Tel-Aviv em Chamas, que se passa em 1967, pouco antes da Guerra dos Seis Dias entre Israel e Arábia. Um dia ele conhece o comandante do posto e sua vida muda. A esposa do comandante é fã da novela e essa relação faz com que ele passe a ser seu roteirista, mesclando costumes palestinos e israelenses e desagradando os que bancam a novela. Nesse fogo cruzado entre a vontade do comandante israelense e a dos produtores palestinos ele precisa encontrar uma solução conciliadora.

Falar de telenovela é um pretexto para que o filme se inicie da pior maneira possível: uma edulcorada imagem cheia de filtros e luzes, espécie de exagero do visual telenovelesco pelo mundo. Quando entendemos que vemos uma gravação, e que a trama vai orbitar na produção dessa novela, as imagens melhoram, mas só um pouco. A câmera é solta demais, bem de acordo com a estética qualquer nota que tem dominado o cinema contemporâneo há mais de dez anos, quando muitos diretores pararam de se importar com enquadramento e posição de câmera e resolveram que só o trabalho dos atores importa. Pode até dar certo, mas o mais comum é faltar cinema na equação. E a relação entre o agora roteirista e o comandante prossegue num tom entre o cômico (quando lembra um Tiros na Broadway bem menos inspirado), o tenso e o crítico.

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Já sabemos da demonização que a grande mídia fez com o MST. Já sabemos o que o governo atual, empenhado em defender os “cidadãos de bem” que provavelmente arderão no inferno (se este existir) está fazendo com a luta legítima por reforma agrária. Já sabemos do imenso valor desses trabalhadores, ou pelo menos da maioria deles, gente de força e dignidade muito além dos crápulas do dinheiro que comandam o país. Mesmo assim, é com tristeza que saímos da projeção de Chão, de Camila Freitas. Isso porque o filme é hábil na costura de suas cenas, seguindo num crescendo até a hora do embate com a mídia. E nos lembramos da nossa atual situação. Mas a tristeza logo dá lugar à esperança, quando vemos alguns desses trabalhadores rurais na sessão, empolgados por ver sua luta representada na tela, sensibilizados pela acolhida da maior parte do público, mesmo numa cidade 80% Bolso como Curitiba (basta conversar com as pessoas na rua para identificar que muitos desses já se arrependeram). Saímos também, ou melhor, talvez seja a hora de abandonar a suspeita primeira pessoa do plural e passar para o singular, e dizer que saí com a sensação de que até mesmo esse tipo de filme militante o cineasta brasileiro aprendeu a fazer, depois de anos de certa acomodação com a mania da adesão automática de parte dos críticos e “frequentadores de festivais” (ia dizer cinéfilos, mas seria mais justo dizer festivaleiros).

solmedhondo

Volto ao chão (sem trocadilho) no brevíssimo entre-sessões, mas disparo novamente ao espaço das incertezas estéticas já nos primeiros minutos do filme seguinte, o intenso e altamente impactante Ó, Sol (1967), de Med Hondo, cineasta da Mauritânia que assina este que é o segundo longa realizado no continente africano (o primeiro é La Noire de, de Ousmane Sembene). Filme desesperado e desesperante, me confessou Luiz Zanin na saída. Imperdível, disseram alguns outros amigos que tinham visto na sessão anterior. Sim, é tudo isso mesmo. Um grito de horror contra o racismo manifestado em diversas camadas da sociedade, muitas vezes de maneira inconsciente, o que é ainda mais perigoso. Sendo de 1967, época de filmes que ficam datados facilmente, por vezes maravilhosamente datados, Ó, Sol permanece um arroubo de ousadia estética e invenção na montagem e no uso do som, algo que até hoje pode causar calafrios em estudantes mais comportados de cinema, e uma ponta de inveja em quem trilha esse caminho difícil da criação (críticos inclusos, obviamente). Queria eu, queria qualquer pessoa com apetite para as artes, criar desse jeito, com tanta alternância de registros e tons, sem quebrar em momento algum a unidade crítica que o filme exibe em cada plano, e sem abrir mão de uma postura sempre aguda e contrária ao conformismo. Não há trégua. O longa de Med Hondo é tão forte que em pleno 2019 consegue nos despertar (ou pelo menos permitir que nos policiemos melhor) de certas armadilhas que caímos, nós, brancos, quando entramos na questão racial. Problemas ele têm, obviamente, frutos da dificuldade que era filmar naquele momento (e ainda é) e de uma certa vontade de falar de muitas coisas e de falar sempre com raiva. Quando o filme ameaça entrar num ponto de acomodação com sua própria verve combativa, há uma nova mudança de tom ou de registro para nos tirar o chão (vocês julgam se há ou não trocadilho).

Depois disso, era ou ir para o hotel e pensar na vida e no mundo em 2019 (e ver quanto evoluímos e quanto regredimos), ou ver algum outro filme na esperança de que seja escapista mesmo sem querer sê-lo. Foi o caso de Enquanto Estamos Aqui, de Clarissa Campolina e Luiz Pretti. Nem precisava falar das influências de Jonas Mekas e Chantal Akerman. Elas são evidentes. Em alguns momentos o longa parece querer continuar de onde News From Home, de Akerman, parou. Pretti citou ainda outra influência, Jem Cohen. E no debate, que não acompanhei, deve ter falado de outras. Claro que ver um filme logo após Ó Sol, sem nem tempo para respirar entre um e outro, é bem prejudicial ao segundo filme. Mas o lado escapista que vem sobretudo quando eles atingem uma certa abstração na câmera que filma muito de perto ou movendo-se muito rapidamente, dá um certo descanso, e o filme é um registro de vários exílios que nunca agride, embora pudesse ser menos derivativo.

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