Ano VII

A casa que Jack construiu

quarta-feira mar 27, 2019

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A casa que Jack construiu (The House That Jack Built, 2018), Lars von Trier

Europa (1991) é um agudo ponto de vista sobre a Alemanha de 1945, recém derrotada e traumatizada da experiência da Segunda Guerra Mundial. Apesar dos malabarismos visuais e afetações como o uso do preto e branco e a alteração para colorido em alguns trechos e alguns pontos do quadro, o longa de 1991 ainda é um filme que consegue segurar o espectador e, sem muitos truques, nos arremessar dentro de uma sequência em que aquilo que importa é se a bomba vai ou não ser desarmada no trem, ou seja, aquilo que importa é sua narrativa, ainda que todo um comentário histórico seja inevitável dado o tema trabalhado. Em Ondas do destino (1996), o já maduro estilo de Von Trier surpreendentemente sobe aos céus e se encanta com sua protagonista Bess ao final, tomando para si a crença das personagens como crença pessoal e estética. Isto posto, Lars Von Trier não é um grande cineasta. Longe disso, atualmente, ele se aproxima muito mais de um mal publicitário.

Assistir a uma série de filmes do dinamarquês em conjunto através da seleção da Mostra Internacional de São Paulo de 2018 (dado o lançamento de A casa que Jack construiu), é uma oportunidade de constatar aquilo que grita em sua filmografia mas que parece passar incólume ao longo dos anos. É, a partir dos filmes, se perguntar como ele foi enganando produtores, distribuidores, críticos, atores, curadores e chegou em um patamar de realização no alto clero da produção artística norte-americana que tem, igualmente a seu financiamento e distribuição, entrada nos diversos festivais do mundo.

A pobreza temática e estética abissal sob o qual um filme como Elemento de um crime (Forbrydelsens elemento, 1984) é alçado é quase que totalmente protegida pelo efeito de estranhamento e distanciamento que o diretor atinge em sua distopia estilizada de uma Europa vazia, molhada e atemporal. O efeito atingido no filme quase consegue apagar a má consciência da filiação de Von Trier com o noir; também coloca o filme como algo entre o que tem de mais rasteiro em um Terry Gilliam e um Jean-Pierre Jeunet – daí à trucagem incensada e à enganação do público não precisa muito.

A partir principalmente de Os Idiotas (1998) – filme “não creditado” como parte da jogada de marketing Movimento Dogma – Lars Von Trier parece cada vez mais trilhar uma jornada auto indulgente, amoral e pseudo intelectual alternando entre o choque gratuito, procedimentos de agressão, malabarismos estéticos e esterilidade erudita, muitas vezes unindo todas essas características. Parece também deleitar-se a cada piscadela que imprime em suas sempre ligeiras e incessantes sequências meta-reflexivas. A câmera na mão e o uso maciço de teleobjetivas, presentes em todos os seus trabalhos desde Ondas do Destino somente traduzem um efeito truqueiro, uma fórmula, uma negação da encenação pelo efeito de encenação, uma negação da substancia formal pela produção de um efeito de complexidade – um academicismo no pior sentido do termo, portanto.

O que seria a dobradinha Dogville (2003) e Manderlay (2006), cuja negação do espaço cênico, do objeto cênico e do cenário propriamente dito – que implode a própria ideia do movimento do qual o diretor fazia parte – senão uma simples constatação chantagista de charlatanismo? O tom grave da história, fabulesco, moral, o olhar supostamente esclarecido sobre a formação da sociedade retratada tornam tudo mais aceitável e forçosamente empurra o constrangimento e incomodo goela abaixo de seu público através de um discurso de hipotética seriedade crítica. O que seria o díptico Anticristo (2009) e Melancolia (2011) senão a repetição exaustiva de procedimentos formais como fórmulas?

Passando pelas peças mais francamente marqueteiras Ninfomaníaca – volumes I e II (2013), A Casa que Jack Construiu parece vir como uma sequência natural daquilo que o diretor parecia destinado a imprimir nos filmes imediatamente anteriores. O sexo e a vida da personagem Joe dão lugar à Jack e aos assassinatos que cometeu durante sua vida de serial killer obsessivo. Como já observado antes, novamente estamos diante de uma fórmula e de uma adaptação ao imaginário com o qual diretor trabalha para o encaixe perfeito em seu modus operandi. Von Trier está interessado muito menos na trama e nos assassinatos em si do que em, através deles, tecer suas reflexões morais acerca da humanidade. Assim como em Ninfomaníaca, há sobretudo a deturpação de qualquer ideia de moralidade através do cinismo, do sadismo e da publicidade. O falatório em off de Jack para Verge ilustrado sempre por uma profusão de imagens poderia muito bem ser uma campanha publicitária de algum banco que costumamos ver nos cinemas antes das projeções dos filmes em cartaz, poderia também ser algum vídeo institucional realizado por e para uma grande empresa de modo a animar as dinâmicas de grupo e auto ajuda coletiva constantemente realizadas pelos coordenadores no mundo corporativo.

A realidade é que a perversão grosseira metaforizada nas imagens de Von Trier dizem muito mais sobre a crise no olhar, nos pontos de vista, no modo de se relacionar com a imagem que vivemos, do que sobre o que quer que seja que ele almeja criticar. A realidade é que a fórmula mercadológica, servil e miserável à qual o diretor dinamarquês se sujeita está escancarada para quem quiser enxergar. Blindado por um moralismo pusilânime Lars Von Trier apenas se aproveita de um público que aceita e aplaude um tipo de cinema que caminha na direção oposta de tudo o que de realmente desafiador e complexo foi realizado ao pensarmos em imagens que se propõe a serem imagens de cinema. Nada em Von Trier parece verdadeiro. Tudo o que ele manifesta e realiza aparentam vir de uma mesma fonte milimetricamente arquitetada e exposta na medida ideal: sua ode à Hitler na coletiva de imprensa no festival de Cannes de 2011 é tão verdadeira quanto sua crença na profundidade do protagonista vivido por Matt Dillon em seu último trabalho.

Essencial notarmos, porém, que na mesma Mostra internacional de cinema que abre espaço para a exibição de lançamento de A casa que Jack construiu (com sessões muito disputadas e esgotadas dias antes), temos também a oportunidade de presenciar e assistir o lançamento de um verdadeiro monumento do cinema mundial: Le livre d’image (2018, de Jean-Luc Godard), filme este que, na direção completamente oposta daquela traçada pelo dinamarquês, remonta a história do cinema, da imagem e do século XX de maneira nada conciliadora ou reconfortante, o que torna a experiência de se apreendê-la muito mais complexa e desafiadora do que os gracejos retrógrados de Von Trier. Fiquemos, portanto, com Godard.

Rafael Dornellas

Texto escrito como cobertura da “42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo” (18-31/10/2018)

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