Ano VII

Personal Shopper

sábado fev 17, 2018

personal

Personal Shopper (2016), de Olivier Assayas

A personagem de Kristen Stewart, Maureen, figura central no filme de Assayas, fala em tons baixos, de forma ligeira, de um modo a reiterar o caráter solitário no qual se encontra – que em sua relação com o mundo se dá justamente em um afastamento do mundo terreno, uma espécie de blindagem progressiva. Como ela mesma revela em determinado momento, seu irmão gêmeo acabara de morrer de uma rara doença cardíaca da qual ela também sofre. Desse elo quebrado, dessa perda irreversível, surgem as buscas metafísicas através das quais irá partir Maureen. Ela e o irmão eram mediúnicos e fizeram um pacto: o primeiro a morrer entraria em contato com o outro.

Dessa busca de Maureen, e de seu papel como conexão entre mundo real e mundo após a morte, começam os primeiros indícios do desamparo estético em que Assayas se encontra. Parece haver um desejo quase irrefreável entre determinados cineastas (e Assayas encontra-se nesse grupo em Personal Shopper de uma forma muito particular) de dar conta do “contemporâneo”, e se utilizar de premissas e pautas em voga para tecerem seus discursos e erguerem suas bandeiras à favor ou contra alguma outra pauta que também deve estar em voga. Assayas não se aproxima de um Ken Loach, ou dos irmãos Dardenne, por exemplo, em sua abordagem formal e dramatúrgica: sua diluição se dá por outra via, mas a falta de substância é a mesma.

Parece haver uma tentativa de partir de gêneros bem codificados, o horror e o suspense, e desconstruí-los. Maureen estabelece contato com alguém, supostamente de um plano não terreno, através de mensagens de texto em seu celular e a partir disso Assayas estabelece longas sequencias em que se filma a protagonista fechada nesse mistério, nessa tentativa de contato, nesse jogo: há uma perda progressiva de tato com o mundo a sua volta enquanto ela adentra em suas mensagens de texto, o que se torna aqui um prato cheio para se evidenciar um processo de desumanização tecnológica num universo regido pelas redes imateriais . Qual é o resultado desse discurso?

Em primeiro lugar um abandono de qualquer exatidão unido à diluição de códigos de gênero frente ao desejo de se construir um discurso: uma jovem perdida e simbolicamente fraturada frente à contemporaneidade extenuante e angustiante ao seu redor – cabe lembrar que Maureen, como o próprio título expõe, trabalha como personal shopper, realizando compras, de roupas e de joias, para uma celebridade cujas responsabilidades e aparições públicas não a permite realizar tal ofício. Em segundo lugar, apesar de todas as tentativas de constituir elementos concretos para seu mundo invadido por espíritos, apesar de logo no início do filme nos depararmos com uma cena em que Maureen é assombrada por um fantasma que “vomita um ectoplasma” (como ela mesma descreve), a construção cênica de Assayas, progressivamente, se dissolve em um constante vazio em que a vontade por discursar acerca de uma contemporaneidade rasa unida à vacância de uma protagonista mergulhada em mensagens de texto no mundo luxuoso das celebridades acaba por resultar em uma falta de concretude que só intensifica um sistema oco e pueril refém de seu programa crítico.

Ao término de Personal Shopper nos deparamos com um cinema que deseja muito, que lança mão de inúmeras discussões, que se prende ao seu discurso e acredita nele, mas que resulta em nada. É um produto falho, que não se consuma nem no campo da narrativa nem no desejo por cumprir com sua temática, muito menos na realização formal – que, se voltando contra o próprio filme acaba por salientar toda a esterilidade da própria situação encenada. No fim, o que nos resta é apenas um deslumbramento em filmar a presença de Kristen Stewart em um universo sem vida e asséptico.

Um filme cujas forças caminham rumo a uma renúncia do mundo filmado não poderia ser mais sintomático em representar diversas características mais atenuantes de um cinema contemporâneo que deseja filmar o jovem mas o exime de responsabilidades, que se objetiva em pautar agendas políticas e sociais sem pensar antes naquilo que irá constituir sua mais frontal resolução ou seu completo fracasso – sua forma, que, aqui, se preza por diluir todas as barreiras possíveis entre gênero matricial, cinema contemporâneo, desconstrução narrativa e modulações temporais, sem encadear rigorosamente em seu sistema cênico todas essas diluições. Não à toa um cinema que deveria ser olhado com atenção e cuidado, pois extremamente necessário, realizado nos dias atuais, encontra-se no extremo oposto do que vemos em Personal Shopper – pois rigoroso e resistente em sua mise en scène: Costa, Brisseau, Green, Gray, Kurosawa, Carax, Vecchiali, entre outros poucos.

Um dos momentos chave neste último trabalho de Assayas consiste em uma sequência, na qual um personagem sai de um hotel de luxo, filmada duas vezes da mesma maneira – em uma delas vemos um homem saindo do local, na outra não vemos nada pois se está filmando um fantasma deixando o hotel. Não poderia haver melhor maneira de simbolizar o aporte cinematográfico representado por Personal Shopper senão dentro de sua própria sequência chave: uma mise en scène cuja alma filmada resulta na própria substância formal da qual se origina e se objetiva – um vazio completo.

Rafael Dornellas

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br