Ano VII

Bedúino

sábado fev 17, 2018

beduino

Beduino (2016), de Júlio Bressane

Quando realizou Filme de amor, em 2003, Júlio Bressane entrava em uma fase de sua carreira na qual encontra-se no atual momento, em que Beduino é sua última manifestação. Do confinamento do trio protagonista no filme de 2003, passando pelo exercício imponente de mise en scène e postura cênica na qual a obra-prima Cleópatra (2007) se constrói; pela relação do casal central e da obsessão pela imagem construída em A erva do rato (2008); pela dinâmica tutelar entre Áurea e Áureo conforme o desmantelamento e questionamento do próprio estatuto da imagem – a película em primeiro plano, a matéria traduzida em exercício de obstinação – se faz presente em Educação sentimental (2013); pela mineralidade portentosa, ponto de virada enigmático e árido, que são os planos de Garoto (2015); chegamos finalmente à Beduino, e constatamos que seu realizador continua a adentrar os terrenos explorados nessa última década de realização, assim como realiza aquele que talvez seja um de seus melhores trabalhos dos últimos anos.

As intimidades do casal protagonista são filmadas como que adentrando à fechadura exposta ao início do filme – a palavra, o corpo, a sedução, as batalhas internas externalizadas dentro da sala da casa, a morte. Estamos no terreno das aparências, do mergulho na imanência dos planos provocado pelo colocar em cena de Bressane. Buscar entender uma suposta narrativa ou um fio condutor dramatúrgico como relação direta com o material não parece ser uma boa solução. O que está em jogo, aqui, é o significado mais bruto que aqueles enquadramentos e a relação entre planos se dá.

Após filmar o sertão em Garoto como quem adentrava em um território novo em sua filmografia, o retorno ao interior das quatro paredes revela uma espécie de síntese – o jogo de sedução entre o casal protagonista, a elevação do corpo de Alessandra Negrini como caminho do qual se chegará à imagem desejada, à exploração do digital em detrimento do ônus gerado pelo fim da película, a retomada de Memórias de um estrangulador de loiras (de 1971) e com ela novamente o revelar do processo de filmagem, o corte, a claquete, a moldura, o cabelo falso utilizado pela atriz, o estrangulamento reencenado.

Se o que importa em Beduino, assim como nos últimos filmes de Bressane, é muito mais a imagem construída em si do que o significado e o desvelamento das citações e referências, o ato de filmar, a mise en scène, revela-se peça central, matriz por onde tudo ecoa e é depositado. Filia-se, portanto, a um cinema muito pouco realizado atualmente. Presencia-se, logo, um enigma fascinante cujo encantamento passa preferencialmente pelo campo das sensações, cuja tradução não se dá através da decodificação do mesmo, mas sim da constatação de sua beleza ontológica.

Ao citarmos Cleópatra poderíamos pensar naquele filme como membro de um grupo seleto de longas-metragens que compuseram um conjunto de anos como um dos últimos grandes momentos do cinema brasileiro. Anos antes, em 2005, Rogério Sganzerla havia realizado O signo do caos; em 2006, Andrea Tonacci realizou Serras da desordem; em 2007, Carlos Reichenbach realizou Falsa loura; em 2008, José Mojica Marins realizou Encarnação do demônio. Todos obras primas. Todos, à sua maneira, desafiando a construção formal da imagem cinematográfica e empurrando sua execução garganta abaixo de uma “indústria” de cinema que já não dava sinal ou espaço à adesão desses realizadores já veteranos.

Daqueles anos pra cá, além das perdas de Sganzerla, Reichenbach e Tonacci (cujo último longa Já visto, jamais visto, é um marco), somente Bressane continua realizando com frequência, e cada vez mais parece se reservar ao pouco alcance que seus lançamentos possuem, ao público reduzido. Se há 10 anos atrás já era uma tarefa hercúlea colocar no mundo um filme como Cleópatra, no cenário atual tal empreitada parece ainda mais trabalhosa. A solução aponta à síntese reduzida, ao cenário menor, à imagem digital por fim. Se o choque direto entre as cenas originais de Memórias de um estrangulador de loiras e sua situação reencenada em Beduino salta aos olhos, o que fica ainda mais nítido é a capacidade de Júlio Bressane em continuar desafiando o aterrador e triste cenário do cinema brasileiro com tão pouco, e tirando disso um resultado gigantesco, em uma luta solitária e constante através dos já 50 anos de realização. Que continue por muito tempo.

Rafael Dornellas

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