Ano VII

Ao Cair da Noite

quarta-feira jul 5, 2017

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Ao Cair da Noite (It Comes At Night, 2017), de Trey Edward Shults

Casa

Como já disse Pierre Rissient, “não basta gostar de um filme, é preciso que se goste pelos motivos certos”. Embora não seja exatamente uma grande obra, Ao Cair da Noite tem um ou outro elemento capaz de fazer soar um discreto “hmmm” da boca de um cavaleiro minimamente interessado em cinema de horror.

A estrita manutenção das fronteiras entre o público e o privado, entre o espaço interno e o externo e a maneira como o rompimento de tais barreiras pré-estabelecidas provoca a desgraça e a danação se configuram como bons requisitos para se aprovar o longa-metragem de Trey Edward Shults. A condução da família por parte de Paul, que a mise-en-scène trata de colocar sempre que possível no nível da fisicalidade, com o personagem movendo-se agressivamente pelo plano, é peça fundamental para que a moral do filme seja cuidadosamente estabelecida. Moral essa que pode ser definida pela frase de um engenheiro na versão literária de 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke: “podemos projetar um sistema que seja à prova de acidentes e estupidez, mas não podemos projetar um que seja à prova de maldade deliberada”.

Paul, o pai – e, também, professor de história, para que fique claro que as ações do personagem têm o respaldo do tempo palpável – monta um rígido sistema baseado na disciplina e no método para sobreviver ao mal inominável e desconhecido que vem de fora. Sistema esse que depende da proatividade, força física e ética rígida: a aparente praga, sugerida na narrativa, que desolou o mundo e isolou as famílias em pequenos núcleos, devolveu, como se vê, o homem a um estágio anterior da (de)evolução. Se o longa-metragem precedente de Shults é sobre uma protagonista que é a materialização do caos dentro de uma ordem familiar – e trata-se de um filme bastante deplorável em vários sentidos – Ao Cair da Noite passa boa parte do tempo mostrando, com fascínio justificável, o esforço de Paul em manter o estado das coisas. Gostamos de ver personagens que tomam decisões, se movem com objetivos e expressam opiniões.

O sistema de Paul, o patriarcal, é infalível até mesmo contra a tolice de seu filho Travis, jovem apático que vive em um mundo idealizado e é incapaz de compreender o real, o que faz dele, para que prolongar os eufemismos, um sujeito burro. Uma vez que o mal não se propaga pela burrice e sim pelo mal em si, é a chegada de outra família o agente responsável pela destruição do sistema de Paul. Sedução carnal, mentira, dissimulação: a praga corrói o lar por dentro. Como conto moralizante sobre o caráter preventivo da intuição, ferramenta fronteiriça ao pré-conceito, muito útil à sobrevivência do ser humano durante boa parte da sua existência, Ao Cair da Noite é forte o suficiente para despertar interesse – o sentimento de crescente apreensão provocado pelo filme surge de como o plano expressa a desconfiança de Paul diante da nova família que passa a habitar sua casa; vemos claramente o conflito movendo sutilmente as expressões faciais de Paul, em cada contraplano das conversas com os recém-chegados. Mas, os prenúncios da desgraça são todos ignorados – menos por nós, o público, que entende logo de saída o caráter premonitório dos pesadelos recorrentes de Travis; em um filme sobre invasão de privacidade e violação do lar, em que o espaço fora de campo é quase sempre mantido em segredo, é claro que o mal infiltrar-se-ia primeiro pelo subconsciente.

Tirando o caráter moralista, sobra pouco a se gostar em Ao Cair Da Noite, um longa-metragem cujo sistema é à prova de imagem: se as cores têm outras cores durante a noite, melhor ficar de olhos fechados e evitar qualquer susto? Aí está mais um desses filmes de horror chic que só querem vestir a fantasia de monstro e temem sair de casa.

Wellington Sari

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