Ano VII

O Exorcista e continuações

segunda-feira out 17, 2016

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A mise-en-scène bate à porta: O Exorcista e duas continuações

Por Wellington Sari

Casa

Se a possessão é uma forma de invasão domiciliar, é coerente que a arquitetura da mise-en-scène de um filme sobre exorcismo atente-se para as passagens entre os cômodos, dedique-se a explorar a relação entre área privada (os quartos) e área social (a sala), além de fazer da janela um elemento de fragilidade. Friedkin foi, talvez, o primeiro William a captar não um filme de casa assombrada, ou, Castle assombrado, especialidade de outro William, mas um filme de corpo assombrado que toma posse de uma residência. A genialidade de O Exorcista mora no confinamento, no minúsculo quarto do padre Kerras, na sala entulhada de objetos do apartamento de sua mãe, nas máquinas de raio-x que engolem Regan em movimentos circulares, repetitivos e obscenos. Melhor do que isso: ao deixar o horror escondido atrás da porta do quarto, Friedkin faz do batente a morada do Cérbero, monstro da mitologia grega que guardava as portas do mundo subterrâneo.

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Na medida em que o filme avança, mais doloroso (e perigoso) parece ser adentrar o cômodo de Regan, de onde emanam batidas secas e impropérios em voz grave, no fora de quadro. Muito do caminhar de O Exorcista – e, de fato, anda-se muito nessa outonal Georgetown de Friedkin, cujas calçadas repletas de folhas douradas servem de pavimento para as dúvidas morais dos personagens, em que os passos externam o sentimento de busca por algo concreto: a cura para uma suposta doença, uma resposta de deus – é feito de fora para dentro: do set de filmagem, para a festa com o piano na sala de estar, do pátio da faculdade para o degrau das escadas diante da porta do quarto de Regan. O Exorcista é uma espécie de prequel de Halloween, de Carpenter, não só pela semelhança entre a introdução de Tubular Bells, música de Mike Oldfield que acompanha uma das caminhadas de Chris com o tema principal do longa de 1978, composto pelo próprio Carpenter. Também pelo lento andar de uma força maligna que vem de fora da normalidade (o Oriente Médio “hediondo” no primeiro, a insanidade no segundo) e a invade de modo brutal. Que outra instância melhor representa a normalidade, com todas as suas contradições, do que o lar?

O plano mais famoso de O Exorcista, quiçá dos filmes de horror, mostra o padre Merrin diante do portão da casa. É a partir da chegada do religioso é que adentraremos para valer o quarto em que habita o demônio. Com Kerras e sua fé em dúvida, a entrada no quarto era sempre tateante, fragmentada. Friedkin, de maneira progressiva, deixa Reagan imóvel, até amarrá-la na cama. O som vindo de fora de quadro é prosseguido pela abertura da porta, que esconde um novo choque visual: a cama voa, o rosto da menina está desfigurado, fumacinha sai da boca dos personagens. Quando Merrin e Kerras iniciam o exorcismo, tem-se mais de dez minutos de embate, cerrado naquele pequeno espaço. O longa atinge o ápice dramático e visual, apenas para que, durante a calmaria, terminada a batalha para exorcizar Reagan, nos coloque novamente diante da porta fechada do quarto da jovem. Enquanto Kerras descansa, Merrin havia entrado no cômodo e, desta vez, o jogo de revelação imagética não é precedido pelo som, mas pelo silêncio. O mal age às portas fechadas e nunca será possível saber exatamente o que matou o padre Merrin, nem o que ele viu por último.

Mente

O Exorcista II – O Herege, é, justamente, sobre o ato de olhar. A arquitetura da clínica em que Regan, agora uma adolescente, realiza tratamento, lembra uma série de neurônios conectados. As portas e as paredes, todas de vidro, convidam o olhar a passear pelo espaço interior. Não por acaso, uma bizarra máquina que emite luz pulsante, usada para hipnose, é objeto central do filme. Trata-se, claro, de uma analogia ao projetor de cinema, nesta obra onírica em que o objetivo do padre da vez é cavar da memória de Regan as imagens vistas pela garota no quarto em Georgetown.

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E quando o personagem de Richard Burton consegue penetrar nas lembranças ocultas de Regan, John Boorman escolhe projetá-las em uma das portas de vidro, sem nem mesmo tentar disfarçar que aquele não poderia ser o ponto de vista da menina nas imagens (ou de Kerras ou Merrin), e sim da própria câmera – os planos que compõem este flashback não foram retiradas diretamente do filme de Friedkin, são re-encenações. A fé aqui é a fé na imagem, uma vez que a busca do padre pela verdade passa pelas memórias de Reagan, o que não significa dizer que o filme acredita na veracidade infalível da imagem: há um descompasso muito acentuado e palpável na maneira como se porta o corpo de Linda Blair e a inocência e fragilidade que supostamente sua personagem deveria demonstrar. Blair emana voluptuosidade a cada aparição, em que, na maioria das vezes, está sem sutiã por baixo da blusa e molhando os lábios com a língua antes de falar. Blair, possuída ou não possuída, traumatizada ou não traumatizada, é uma adolescente em ebulição e o diabo no corpo é hormonal (quando Regan, próxima ao fim da narrativa, está realmente possuída e oferece sexo ao padre, não é preciso haver dilemas morais na alma do homem ou na do espectador; depois de passarmos mais de oitenta minutos sendo provocados por Blair, entendemos que o religioso está na beira do abismo e que só resta mesmo se atirar). As portas e paredes de vidro na clínica, a exibição da protagonista: tudo passa pela ideia dar uma imagem ao mal, ao invés de escondê-lo no corpo ou atrás da porta, como no longa de Friedkin.

Corredor

Um terceiro exemplar de uma franquia costuma trabalhar no acumulo dos elementos presentes nos exemplares anteriores. Ao mesmo tempo que se tenta resgatar a glória do original, procura-se algum tipo de desfecho por meio do resumo de tudo aquilo apresentado até então, sem esquecer, a redundância é necessária, do acúmulo dos elementos (se antes tínhamos portas, agora temos corredores). O Exorcista III – Legião certamente assim procede no campo narrativo. Só que também o faz, e brilhantemente, em outro aspecto, que é aquele de que estamos falando ao longo do texto: na arquitetura da mise-en-scène. William Peter Blatty, autor do livro que originou o filme de 1973 assume a direção e é absolutamente impressionante que um diretor novato (Blatty possui apenas dois longas na carreira) consiga construir uma sequência de pouco mais de cinco minutos que é de uma inteligência cinematográfica típica de um mestre, não de um aprendiz, como, em tese seria o caso de Blatty. O arranjo dos elementos na cena por si mesmos já seriam dignos de exaltação, só que além disso há um entendimento muito profundo de um dos aspectos fundamentais da imagem nos dois filmes anteriores, que é a porta como instância de ocultação e revelação.

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Estamos em um corredor, plano geral, câmera fixa, enquadramento simétrico. Quatro portas são visíveis na imagem, três do lado esquerdo e uma ao fundo, no lado oposto da câmera. Na banda sonora, o desenho de som enaltece um ruído não identificável. A enfermeira caminha pelo quadro, em busca da fonte de barulho. A porta em primeiro plano está ligeiramente entreaberta e é dali que a personagem percebe vir a perturbação. Depois de praticamente dois minutos, o primeiro corte: um plano detalhe da mão da enfermeira, lentamente abrindo a porta, revelando uma imagem aparentemente inofensiva – vemos uma cortina e um pedaço de cabeceira de cama. A fonte de ruído é mostrada no segundo corte: tratam-se de pedras de gelo que estalam enquanto derretem no copo. Subitamente, um paciente se levanta da cama, assustando a enfermeira. O jump scare, barato por natureza, é fundamental para a construção da sequência, como veremos em seguida. A enfermeira sai do quarto, cerrando a porta atrás de si, nos devolvendo ao plano geral. A jovem volta ao ponto inicial, ao fundo do quadro; a ela junta-se outro personagem, um segurança, que se posiciona em uma cadeira, próxima à enfermeira. Segue-se um plano/contraplano da moça olhando para outra porta fechada, depois de ouvir ruídos (diferentes dos primeiros). De volta ao PG, a funcionária apanha chaves no bolso e caminha até a terceira porta lateral, de onde parece vir o som estranho. O tilintar das chaves e o estalo da fechadura sendo destrancados recebem destaque no desenho sonoro (veremos o motivo), ao passo que o segurança se levanta e sai pela porta dos fundos. A enfermeira entra no quarto, ficando fora de quadro. O segurança retorna rapidamente, pega um chapéu em cima da cadeira e anda, até desaparecer por completo da imagem. Imediatamente, a enfermeira começa a retornar ao corredor. Ela “fecha” a porta uma primeira vez, e notamos que um feixe de luz branca a ilumina. Abrindo de novo a porta, a jovem apaga a luz do quarto, que agora emana luz azulada. No exato momento em que a moça “fecha” definitivamente a porta e se afasta para o lado oposto, um zoom in agressivo mostra que uma figura de branco atravessa o batente em direção à enfermeira, empunhando ferramenta usada para cortar ossos humanos, segurada exatamente à altura do pescoço da mulher.

A longa descrição da sequência é necessária, pois sua orquestração é minuciosa e inventiva, com cada peça agindo uma em função da outra, com bastante precisão. O que chama atenção logo de saída é a economia da decupagem: pouquíssimos planos delegam aos atores, e não à montagem, a tarefa de imprimir movimento e dinamismo à cena. O ritmo interno dos planos é guiado pelo caminhar da enfermeira e do segurança. A presença desta última figura é, aliás, fundamental para transmitir a falsa sensação de, bem, segurança, necessária para que o choque final ganhe mais potência. A chegada do personagem, logo após o susto banal sofrido pela enfermeira, faz o espectador colocar-se em estado de relaxamento – induzida pela própria postura do funcionário, que tranquilamente se posiciona na cadeira, demonstrando pouquíssima preocupação com qualquer coisa. O gelo derretendo, na primeira parte da sequência, é um análogo visual ao desenrolar paciente da cena, que caminha sem pressa para o ápice. Andar em plano geral já é, em essência, algo mais demorado do que em planos próximos, cuja ausência aqui é uma escolha das mais acertadas, uma vez que, além de questões rítmicas, tal opção contribui para a ênfase daquilo que é o grande truque cinematográfico da sequência: o jogo de plano/contraplano, passado o jump scare, tem como função deixar claro ao espectador que o novo barulho emana de um quarto, cuja porta está fechada. Quando voltamos ao PG depois do plano/contraplano, o desenho de som coloca em destaque o tilintar das chaves, o destrancar da fechadura a dobradiça da porta sendo movida. Além disso, as ações de abrir e fechar a porta são sublinhados em gestos repetitivos – a enfermeira “esquece” a luz acesa e precisa refazer o processo. Toda essa operação tem como objetivo nos fazer acreditar que ali realmente há uma porta, já que no plano geral não conseguimos vê-la propriamente – há um conveniente pilar posicionado logo antes do batente. Ao acreditarmos na existência da porta, somos pegos inteiramente de surpresa quando, ainda no plano geral em que estávamos há mais de um minuto, uma figura sai do quarto em um perturbador andar decidido na direção à vítima, apenas dois segundos depois de a fechadura ter sido cerrada. A continuidade do espaço-tempo neste plano-tableux (ou, nessa sequência-tableux), com suas entradas e saídas de “cena” e o caminhar preciso dos personagens poderia muito bem ser a gênese do cinema de Tsai Ming-Liang. No entanto, é evidente que toda a trucagem é aqui é hitchcokiana – tanto na direção do olhar e dos ouvidos quanto na apropriação de territórios atípicos para o suspense, à maneira de Intriga Internacional; claro que um corredor é mais familiar ao horror do que um campo aberto no Arizona é ao suspense, só que mesmo assim é possível afirmar que Blatty trata o corredor distintamente do que seria o típico em uma obra de horror qualquer: praticamente não há sombras no plano e a câmera não encerra o personagem em um pequeno espaço, deixando o fora de quadro aberto para sustos sonoros.

A porta é elemento chave do (bom) filme de horror pois o gênero sempre lida de um jeito ou de outro com a relação entre prisão e fuga. Se o cinema narrativo, como escreveu Daney, é um segredo atrás da porta, o inventivo diretor que se aventura a filmar o medo tem de possuir uma das sete chaves.

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