Ano VII

Ave, César!

domingo out 16, 2016

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Ave, César! (Hail, Caesar!, 2016), de Joel e Ethan Coen

Ave, César! não quer enrolar seu espectador. Assim, desde a primeira cena coloca à mesa tudo o que poderíamos esperar deste 17º longa-metragem dos irmãos Coen. Ver Eddie Mannix (Josh Brolin) na penumbra de um confessionário, remoendo sua derrota diária contra o fumo e dialogando com um padre impaciente e de voz gutural, já bastará para, de duas, uma: 1) brindar-nos com a confirmação de nossas expectativas; 2) entediar-nos com mais do mesmo. Tal sentimento, é claro, dependerá de seu gosto por tudo aquilo que o cinema da dupla americana se tornou mais famoso por mostrar, pois as próximas 27 horas na vida deste protagonista se mostrarão uma coletânea disso, uma versão Hanna-Barbera das obsessões de seus criadores.

Mannix é o faz-tudo da Capitol Pictures, o mesmo estúdio fictício que contratara Barton Fink no filme homônimo de 1991, a única, até então, incursão dos Coen no mundo de Hollywood. Entretanto, se antes ficávamos à margem do coração da indústria, na maior parte do tempo presos dentro de um quarto de hotel decadente e assombrado, agora somos jogados para o centro do sistema de estúdios, na realidade para seu crepúsculo, nos anos 1950. Mannix está às voltas com a produção de “Hail, Caesar!”, épico sobre o Império Romano cuja estrela é Baird Whitlock (George Clooney). Astro vaidoso e sem noção, será sequestrado por uma seita comunista auto-intitulada “O futuro”, formada por roteiristas egressos dos piores pesadelos de Joseph McCarthy. Entre seus membros, um professor chamado Marcuse e um cão que atende por Engels.

Sabemos que o sequestro, quando se trata dos Coen, induz invariavelmente ao erro, seja por uma espécie de visão torta de justiça sentimental (Arizona Nunca Mais), seja para enganar alguns idiotas (O Grande Lebowski) ou para conseguir tirar uns trocados de um sogro insensível (Fargo). Em Ave, César! o esquema continua, e Whitlock passa logo a aceitar sua condição de sequestrado. Após tentar negociar a divisão do resgate, abraça os ideais soviéticos com uma bela taça de dry Martini em mão.

Whitlock é apenas o primeiro de uma série de farsantes que irá compor o circo ao redor de Mannix, o “homem sério”, justo, o único capaz de enxergar o absurdo no qual todos estão inseridos. Obsessivo com horário, consulta o relógio a todo instante. Seu grande fardo, sua cruz, é o vício em tabaco. Não é à toa que quando um conhecido vai lhe tentar com a proposta de um trabalho mais honrado e digno, um cigarro estará lá, provocante, a sua frente. Por ora, ele terá de realizar as mais variadas tarefas, lidando com gente como duas colunistas de fofoca (no caso, as gêmeas interpretadas por Tilda Swinton); uma namoradinha da América grávida (Scarlett Johansson), mas que não sabe ao certo de quem; e Hobie Doyle (Alden Ehrencheich), o cowboy com cara de bom menino, uma espécie de Roy Rogers juvenil.

É através dele, aliás, que vemos um dos grandes trunfos dos Coen aqui em plena forma: reconhecidos por seus diálogos, o fato curioso é que seus personagens raramente conseguem se comunicar, sendo essa mesma a causa dos erros que irão ditar as incontáveis reviravoltas de suas tramas. Diferentemente de um filme de Quentin Tarantino – onde por mais tensa que possa ser a situação dos interlocutores, entre eles há a medida do que está em jogo –, nos roteiros dos Coen a mínima troca de informação parece custosa, quando não impossível. Lembremos da entrevista da policial grávida com as duas meninas em um bar, em Fargo, ou da dinâmica entre os três personagens centrais de O Grande Lebowski: em um mesmo enquadramento, no boliche, enquanto um destilava a mais fina filosofia de botequim, o outro falava sobre “I am the walrus” enquanto o terceiro resmungava misoginias.

Outro traço que faz de Doyle um personagem tipicamente coeniano (bem, aqui todos o são) é a musicalidade de suas falas, carregando no sotaque texano. Ao repertório das menções que sozinhas trazem um sorriso ao rosto, como o “Osbourne Cox” de Queime Depois de Ler ou ao “yah” de Fargo, seu “would that it were so simple!” aparece como o mais hilário momento do filme. Esse humor mais leve, menos corrosivo do que o habitual, é quebrado apenas quando a montadora (Francis McDormand) deixa sua echarpe ser engolida pela moviola, situação tão inusitada quanto a confusão com a bomba de asma em O Amor Custa Caro.

Tais sucessões de esquetes fluem em uma estrutura aparentemente menos rígida do que aquela que podíamos esperar. A ideia de vagar de estúdio a estúdio, de filme a filme, faz da mistura de gêneros algo tão evidente quanto divertido, e se falamos sobre os diálogos e as frases de efeito, a genealogia musical americana tem também aqui um novo capítulo. Após as raízes da música folclórica (E Aí Meu Irmão, Cadê Você?) até sua forma mais moderna (Inside Llewyn Davis), do gospel (Matadores de Velhinhas) ao psicodelismo (Um Homem Sério) e ao rock brega setentista (O Grande Lebowski), os números musicais são os homenageados da vez, na figura de um Channing Tatum habilmente emulando Gene Kelly. Ou seja, após dois belíssimos filmes ligeiramente fora da toada esperada (Inside Llewyn Davis e Bravura Indômita) – filmes que conseguiam escapar das manifestações biliáticas dos detratores regulares –, os Coen voltam com uma pequena obra totalizante de seus tiques e fixações: Ave, César! é como uma faixa bônus no relançamento de um grande disco, algo quase naturalmente menor, sem medo de sua possível autocomplacência e, no limite, satisfeito com sua irrelevância.

Bruno Cursini

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