Ano VII

Roy Andersson

segunda-feira ago 15, 2016
Canções do Segundo Andar (2000)

Canções do Segundo Andar (2000)

Apontamentos sobre os longas de Roy Andersson

Por Sérgio Alpendre

1.

Fazer cinema sob a sombra de um gigante. Assim começa a carreira de Roy Andersson, nos anos 60, cineasta de cinco longas que, junto de Bo Widerberg, Vilgot Sjoman e Jan Troell, entre outros, teve de desenvolver uma carreira sabendo que ela poderia ser (como, de fato, foi) eclipsada pela de Ingmar Bergman, sinônimo de cinema sueco. Esse infortúnio Bergman também teve, mas o superou com certa facilidade. Quando se estabeleceu como um dos grandes, as carreiras de dois outros gigantes, Victor Sjostrom e Mauritz Stiller, já se haviam acabado há mais de vinte anos. Andersson e companhia não tiveram a mesma sorte.

Apesar de dois longas realizados nos anos 1970 e de mais quatro curtas e um média, Roy Andersson raramente aparece em livros de história do cinema feitos no século 20 e, quando aparece, geralmente é uma citação minúscula o suficiente para que poucos se aventurem a procurar seus filmes. A que se deve esse esquecimento? É certo que Giliap (1975), seu segundo longa, foi um fracasso retumbante que lhe fechou por um bom tempo as portas para o cinema. Não um fracasso artístico, como também não bom o suficiente para ser defendido por críticos e historiadores como uma das injustiças da História do Cinema. Mas seu primeiro longa, Uma História de Amor Sueca (1970), é uma pequena jóia que encantou críticos e platéias à época. Por muito menos, cineastas bem menos talentosos mereceram maior espaço nas histórias. Por que não Andersson? Por que sua carreira só seria olhada e estudada a partir de Canções do Segundo Andar (2000), longa que inicia uma trilogia e que ganhou o prêmio do júri no festival de Cannes daquele ano?

“Slapstick Bergman” é como o chamam. Slapstick tem a ver com o burlesco, o que, se pensarmos na Trilogia do Ser Humano (Canções do Segundo Andar, Vocês os Vivos [2007] e Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre Sua Existência [2014]), faz todo sentido, e sobre isso voltaremos a falar. Mas Bergman? Apesar de algumas semelhanças (tratados sobre a humilhação, visão crítica da sociedade capitalista e do “modo de vida sueco”, atores olhando para a câmera), penso que a denominação que inicia este parágrafo se deve mais a um preconceito que tende a reduzir todo e qualquer cineasta sueco a um Bergman tipificado do que às possíveis semelhanças entre os dois diretores.

2.

Na Trilogia do Ser Humano, a ironia, já no título, é dominante. O que vemos são zumbis, autômatos, pessoas dilaceradas por amores não correspondidos, armadilhas corporativas, instituições daninhas e muita incompreensão. São demasiadamente humanos, talvez, mas dificilmente os reconhecemos como tal. Parecem viver numa espécie de umbral, e é de lá que Andersson parece nos mandar seus relatos.

O burlesco está presente no humor físico, mas também na visibilidade. Descontente com as sombras, Andersson enche de luz seus enquadramentos (como na publicidade, onde burilou esse estilo). Cinema da clareza e da evidência, ainda que essa evidência esteja muitas vezes disfarçada. Os personagens olham para a câmera, por vezes buscando ajuda na platéia, como Chaplin e outros cômicos do burlesco faziam quando se sentia perdido em alguma situação. Muitas vezes, o burlesco está presente em algum detalhe que pode nos escapar por estar no fundo do quadro. A profundidade de campo exige uma tela grande e/ou uma boa definição de imagem. Muitas informações estão no fundo, inacessíveis para quem se ocupa exclusivamente da frente do plano.

Desesperançado com o tipo de atuação predominante no cinema contemporâneo, Andersson adota, na Trilogia (com sinais fortes já em Gilliap), o anti-naturalismo para melhor criticar a sociedade e seus desvios. O homem adulto sueco aparece então, sem qualquer traço de naturalismo, como competitivo, grosseiro, machista, inevitavelmente frustrado, frequentemente impotente em vários sentidos. A mulher adulta aparece como infeliz, desesperada, solitária, vítima do patriarcado. As pessoas em geral são consumistas, extremistas e intolerantes. Tudo isso em tons frios, cores de morbidez, exceto em alguns momentos, como na visita à tapeçaria em Vocês os Vivos, quando vemos um balanço mais natural de cores, ou no sacrifício de uma menina que salta no abismo em Canções do Segundo Andar, um plano em que a parcela episcopal, localizada à esquerda do quadro, veste cores mais vivas.

O estilo cataliza o humor. Num dos melhores planos de Vocês os Vivos, um homem ensaia com seu bumbo numa sala asséptica e quase impessoal como todas as salas que aparecem na Trilogia. Após suas primeiras batidas no bumbo, vemos a porta atrás dele ser fechada com alguma força, mas não vemos quem empurrou a porta. O efeito é de um humor que chega inusitado e ao mesmo tempo banal. Extrair humor dessas situações banais é um dos maiores trunfos de Andersson.

Há também a ousadia de mexer com tabus. Uma das cenas mais fortes de seu cinema é aquela, longa e torturante, em Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre Sua Existência, que mostra homens e mulheres negras entrando em uma espécie de fornalha, que será ativada sem dó. O choque é substituido por um homem que acorda assustado e diz ter tido um sonho terrível. O sonho: velha desculpa para mostrar o abjeto. A mediação como solução para o que não deveria ser mostrado, nem sequer pensado. Como em Saló (as atrocidades vistas pelas lentes do binóculo do fascista). Como em Um Cão Andaluz (parábola do olho cortado como forma de alertar para um novo tipo de experiência visual). Como em Canibal Holocausto (uma equipe vê, conosco, as imagens terríveis de canibalismo, impalamento e afins, e decide, após termos visto tudo, que aquelas imagens não devem ser vistas por ninguém, guardando-as em segredo). Andersson vira o jogo e se iguala momentaneamente a Pasolini, Buñuel e Deodato ao nos confrontar com imagens fortes sem apelar para nada, a não ser para nossa própria consciência.

3.

O estilo de Uma História de Amor Sueca é totalmente diferente, praticamente oposto ao da Trilogia. No lugar da câmera fixa, uma câmera fluídica, que se movimenta pelas locações procurando os olhares dos adolescentes apaixonados. No lugar da grande angular e da profundidade de campo, a tele-objetiva e o foco muito curto, apenas o suficiente para flagrar o flerte ou a procura pelo flerte dos protagonistas. Melodia do olhar, dizia Nicholas Ray, e como se aplica a este filme que baila pelos olhares como se o diretor nascesse para filmá-los.

Na Trilogia e nos dois curtas que a antecederam (Something Happened, de 1987, e World of Glory, de 1991), ensaios brilhantes do que ele iria aprofundar na Trilogia, a câmera quase sempre fixa é olhada pelos atores-zumbis, nem sempre como no burlesco, o olhar-cúmplice, mas muitas vezes explicitando o incômodo que aquela presença causa, a câmera como uma indigesta testemunha da atrocidade humana. Em Uma História de Amor Sueca os adolescentes olham para um ponto muito próximo à câmera (e por vezes chegam mesmo a encarar a objetiva), ainda com outro efeito: o da catalização desses olhares. Para conseguir esse efeito catalizador, que nos deixa cativados a esses pequenos amantes, preparados para passar horas com eles, ele precisava de dois grandes atores adolescentes, que encontrou em Ann-Sofie Kylin e Rolf Sohlman. Ela, em especial, faz muito bem a garota que já é capaz de provocar os hormônios masculinos e ao mesmo tempo parece uma criança quando perto de seus familiares ou em momentos de diversão.

É esse momento preciso, da descoberta da sexualidade nos adolescentes, o rito de passagem da terrível puberdade para a idade plenamente sexual, que Andersson capta com raro sussesso, influenciado claramente por Bo Widerberg, de quem foi assistente de direção em Adalen 31 (1969) e pelo cinema da Nouvelle Vague francesa (sobretudo Truffaut, mas também o Rohmer de A Colecionadora). Annika passa por outros adolescentes fora de foco e seu olhar sempre encontra a câmera. É uma presença de incrível força, sem a qual o filme não seria a mesma coisa.

Sua câmera é bem menos generosa com os adultos do filme, quase todos retratados como frustrados, mentalmente problemáticos, competitivos e gananciosos. É esse mundo terrível que espera os adolescentes, como fica claro em uma cena perto do final, em que Annika e Par estão abraçados um ao outro e percebem, ao longe, os adultos voltando cabisbaixos de uma caçada que quase terminou em tragédia, e certamente terminou em desilusão. O mundo adolescente é levado pela música, pelos jogos de amor, pela ingenuidade do fumo e da jaqueta de couro como elementos da pose. A banda no palco, uma espécie de Procol Harum sueco, embala esses enamorados como num filme de Philippe Garrel. Uma História de Amor Sueca não é só o maior filme de Andersson, mas um dos grandes filmes suecos de todos os tempos.

4.

Em Gilliap, Andersson abandona o naturalismo do primeiro filme por um registro mais cínico. A trama tem toques pessimistas em relação à humanidade, e isso explica, mas não justifica, o fracasso comercial. Gilliap é um apelido dado por um gangster barato, um homem vil que o moço que ganhou o apelido aprende a desprezar e tolerar ao mesmo tempo. Ao ser perguntado, Gilliap diz que está ali, no restaurante de um hotel de luxo, temporariamente, o que provoca risadas de todos, pois é o que todos dizem ao começar a trabalhar ali. Esse hotel tem alguma espécie de poder, pois apesar de ter péssimas condições de trabalho graças a um patrão tirano, ninguém consegue abandonar o serviço.

A imobilidade da sociedade sueca que iria irromper fortemente na Trilogia já dava as caras em 1975. Gilliap lembra, no tom, um filme obscuro de Ermanno Olmi chamado Longa Vida à Senhora (1987). Nos dois filmes temos jantares, e uma visão muito crítica da sociedade, sobretudo de sua burguesia. E nos dois filmes essa visão crítica é sublinhada por um estilo sisudo, que exige um tanto do espectador, mal acostumado pelos filmes solares que normalmente fazem mais sucesso, e até pelo filme anterior de Andersson, encantador em quase todos os sentidos. Nos anos 70, década difícil, de muita violência e terrorismos, aceitava-se o clima pesado no cinema, desde que viesse da grife bergmaniana, estabelecida em tempos mais críticos. Andersson demorou para ser perdoado por retratar a sociedade sueca dessa maneira doente. Talvez seja melhor aceito hoje, quando tudo é mais facilmente embalado para consumo, até mesmo a crítica e o pessimismo, e o cinema de arte virou grife até maior que seus autores.

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Um Pompo Pousou…., por Heitor Augusto

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