Ano VII

As ruínas da civilização americana

segunda-feira ago 15, 2016

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As ruínas da civilização americana e o cinema experimental de Sam Peckinpah

Por Guilherme Savioli

As anedotas em torno dos percalços enfrentados por Sam Peckinpah em suas produções são, desde sempre, vastamente conhecidas. Hoje, os casos mais emblemáticos são, talvez, aqueles de Juramento de Vingança [1965] e de Pat Garrett & Billy The Kid [1973]. A epopeia do Major Amos Charles Dundee, em sua caçada a Sonny Chariba foi, completamente, mutilada quando de seu lançamento, ganhando o direito à uma versão parcialmente reconstruída, em 2005. Já o duelo crepuscular entre Garrett e Kid pode ser considerado um exemplar ainda mais forte desse princípio de incompletude, que sempre assombrou a obra do diretor. Mesmo tendo obtido a oportunidade de retrabalhar, posteriormente, a montagem do filme, Peckinpah preferiu preservá-lo em seu inacabamento/mutilação, cabendo ao montador e pesquisador Paul Seydor (em conjunto com alguns dos montadores originais do filme) um trabalho, também em 2005, de reconstrução de uma possível versão final, a partir de uma das versões de teste (a que esteve mais próxima de um aval final de Peckinpah, mas que posteriormente fora, da mesma forma, mutilada pela Warner em seu lançamento comercial).

Poderíamos continuar enumerando exemplos em que o intervencionismo por parte de produtores ou executivos – e a consequente incompletude da obra, em relação ao desejo original do diretor – ditaram a tônica na filmografia de Peckinpah: desde seus primeiros trabalhos ainda nos seriados westerns para a televisão (The Rifleman, por exemplo), passando pelo seu trabalho de estreia no cinema (O Homem que Eu Devia Odiar), por uma de suas obras-primas (Meu Ódio Será sua Herança), até chegarmos aos seus últimos trabalhos (o caso de Comboio [1978] é notável, nesse sentido). No entanto, mais do que simplesmente lamentar ou exaltar o “gênio podado pelas forças dominantes”, é necessário interrogar (para além da saborosa boutade que é considerar Pat Garrett & Billy The Kid como uma obra-prima esfacelada, por exemplo) até que ponto Peckinpah internalizou em suas construções e encenações a própria noção de incompletude e inacabamento – provavelmente, em sua concepção, um princípio inerente à arte que escolheu para se expressar – levando-as a um paroxismo estético que transborda e toma conta de sua própria visão da existência.

Seus temas – principalmente de seus westerns – são amplamente reveladores (e bem conhecidos também) da expressão desses choques e abalos, pontos de origem dessas fissuras que, em sua progressiva separação tectônica, parecem tomar conta de tudo, constituindo a base geográfica mesma do filme. Geralmente, tais obras situam-se num período de transição (notadamente, ou no fim da guerra civil americana ou na virada do século) e expressam, portanto, uma mudança na ordem, a sobreposição do “velho” pelo “novo”. O interesse reside, sempre, nos efeitos sentidos pelo “velho”, sendo que este, em Peckinpah, nunca é aquele que absorveu com dignidade e altivez a passagem do tempo, muito pelo contrário: o “velho” (sendo que o mesmo pode ser encarnado tanto por um único personagem – seu protagonista – quanto por toda uma sociedade) é, aqui, sempre o escorraçado, o desgarrado, aquele que foi deixado para morrer, aquele que persegue insaciavelmente uma vingança (e quando encontra a oportunidade de efetuá-la, hesita e se questiona sobre a perda de sentido após a execução de seu desejo).

Em suma é o não-reconciliado, num sentido muito diferente daquele encarnado pelos protagonistas straubianos. Novamente, em Peckinpah, não se trata de uma resistência tenaz, mas sempre de um arrastar das ruínas, sendo que as memórias carregadas por essas nunca se mostram como o ideal ao qual se aspira retornar, mas sim como um ponto qualquer de uma trajetória desencantada. Assim, o grau de diferença entre passado e presente é expresso apenas pelo instante em que a violência – saindo de seu estado de latência – toma conta, de fato, de toda a realidade.

O Oeste dos primeiros westerns peckinpahnianos encarnam, perfeitamente, tal incompletude. Não estamos mais nas vastas paisagens walshianas, que ao olharem o homem de volta, obrigavam-no a forjar, com as próprias mãos, seu destino; não se vê mais os largos horizontes de Anthony Mann, que ao circunscreverem o protagonista, impunham-no o redimensionamento, com os elevados – porém, ao mesmo tempo, generosos – parâmetros divinos, da própria existência; muito menos nos deparamos com as montanhas fordianas, que abrigavam, em sua própria constituição geológica, a história petrificada – portanto, os conflitos em permanente tensão – de toda uma civilização. O Oeste de Peckinpah é uma cidade abandonada, à qual se vai apenas para enterrar os mortos; é uma rota habitada pelos mais sórdidos saqueadores-assassinos, a qual liga um decadente – e pouco lucrativo – acampamento de mineradores à uma cidadezinha qualquer; é a fronteira entre México e EUA constituída por vilarejos miseráveis, nos quais a população vive no perpétuo fogo cruzado de uma guerra que não lhe diz respeito.

Falávamos, assim, de O Homem que Eu Devia Odiar [1961], de Pistoleiros do Entardecer [1962] e de Juramento de vingança [1965]. Vale frisar, porém, que em Peckinpah tal território nunca é o mito revisitado – e reavaliado – pelas pressões da época corrente (como em Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas [1967]); não se trata, tampouco, da tentativa de uma nova síntese dos conflitos, através do direcionamento de um olhar quase que virginalmente selvagem e, por isso mesmo, apto a captar/atualizar as forças ali tensionadas (a promessa de liberdade dos novos tempos em contraste com a violência bestial-primordial, em Sem Destino [1969]); muito menos da tentativa de continuar realizando westerns como se nada tivesse se alterado. Trata-se de outra coisa: são as ruínas que se arrastam e persistem, pouco importando o olhar estar de acordo ou não com elas, o essencial é encará-las, explicitando, justamente, o percurso e os motivos da persistência das mesmas (nesse sentido, seria difícil avaliar a modernidade do gesto de Peckinpah, tomando os mesmos parâmetros estabelecidos na qualificação de seus contemporâneos agrupados sob a égide de Nova Hollywood, mas certamente é possível pontuar seu radical anti-classicismo).

O Homem que Eu Devia Odiar (1961)

O Homem que Eu Devia Odiar (1961)

O que acontece no decorrer das obras acima citadas, passando pelo intervalo até seu filme seguinte – Meu Ódio Será sua Herança [1969] – é o aperfeiçoamento na forma como o olhar faz a inquisição desse espaço, delineando – e meditando sobre – o percurso de arrasto dessas ruínas que mencionávamos. É patente, nesse sentido, a forma como se dá o emprego do zoom pelo cineasta. Vê-se, já em O Homem que Eu Devia Odiar, o modo como se relaciona a imbrincada dinâmica dos tempos internos e cortes entre os primeiros planos do rosto de Brian Keith e de Maureen O’Hara. Na troca de olhares entre ambos, suscita-se não apenas o embate direto com o “outro que se deveria odiar” (a linha direta que se estabelece a partir do “olho no olho” entre as personagens), mas a própria negação pessoal do sentimento, incompreensível e inevitável, de uma possível aceitação e conseguinte paixão (os breves instantes nos quais o olhar vacila, rompe a tal linha e se entrega à uma fortuita contemplação do horizonte ou até mesmo do solo, simplesmente).

Essa dinâmica tortuosa, que a todo tempo reivindica um voltar-se para si mesmo – que se impõe a reflexão – passa, gradualmente, a ser construída através do zoom que rasga esse espaço de ruínas e chega aos rostos dos protagonistas. Esses, por sua vez, pendem, cada vez de forma mais acentuada, para a internalização e meditação dos conflitos externos. Pike Bishop (William Holden) e Deke Thornton (Robert Ryan) – de Meu ódio será sua herança - são casos paradigmáticos, construções exemplares: raramente eles cruzam olhares (apesar da sugestão de sempre estarem encarando o âmago um do outro), mas internalizam todas as tensões quando miram o horizonte, em primeiros planos erigidos, frequentemente, através da modulação pelo movimento de aproximação óptico. Diferentemente do travelling, nesse movimento altera-se o ponto de fuga, acentuando-se a sensação de desorientação e, portanto, reforçando o próprio abalo sofrido pela personagem no acúmulo das tensões internalizadas: os protagonistas de Peckinpah funcionam como panelas de pressão sem válvula de segurança.

Em Meu Ódio Será sua Herança ocorre, também, a primeira materialização de um flashback na obra de Peckinpah: tanto Thornton quanto Bishop rememoram o passado e essa recordação nos é mostrada (o que ali se passa é a gênese das feridas que retornam, cobrando seu decisivo preço, no presente desses personagens). O passado é o combustível do tormento e a estrutura sob a qual ele se expressa é, evidentemente, a vingança. Não se trata, contudo, da mesma organização feita, por exemplo, por Ford, particularmente em seus westerns. Nesse último, a vida pregressa das personagens anima toda a engenharia de um universo, coloca-o em um movimento que convoca não só o télos dos protagonistas para a sua estruturação, mas todos os prolongamentos daí suscitados, que em sua diacronia terminam por inferir um sentido a esse mundo. As ruínas que se arrastam não conferem essa precisão ordenadora ao universo peckinpahniano: a narrativa parece ser levada a frente sempre aos sobressaltos, o peso do passado surge não como um motor, mas sim como uma âncora (as ruínas pesam e deixam evidentes marcas em seu deslocamento). Por isso, a vingança nos filmes de Peckinpah é, quase sempre, fracassada ou abortada, já que o movimento de internalização toma conta e fratura a concreção da mesma (por isso que em seus filmes, a violência carrega, sempre, em seu bojo, tanto a face da satisfação, quanto a da extrema perversidade: são sempre faces da mesma moeda).

Nesse processo de acúmulo e interiorização dos conflitos externos, por parte das personagens, acentua-se na trama a progressão via o sobressalto, intensificam-se os bruscos retornos antes de alguma tomada de decisão (vide a forma que toma, em A Morte Não Manda Recado [1970], o momento decisivo da vingança de Cable Hogue – a qual estrutura todo o filme – e como, após a fatídica e truncada resolução, seu destino é selado). Os protagonistas de Peckinpah medem suas existências e balizam suas trajetórias através de um outro, que não chega a ser seu duplo negativo, mas que conjuga uma série de características que querem expurgar (por isso a vingança) pelo medo de enxergá-las vivas neles mesmos: a tão falada violência do diretor não se volta, quando efetuada, apenas contra um outrem, mas muitas vezes desvela um golpe fatal contra aquele mesmo que a produz.

É assim em seu filme mais experimental, Sob o Domínio do Medo [1971], no qual existem, basicamente, apenas dois registros possíveis, dois pólos opostos: recusar a adoção da violência ou aceitá-la

Sob o Domínio do Mal (1971)

Sob o Domínio do Medo (1971)

enquanto única via possível de sobrevivência. O que se passa entre esses dois momentos é o centro de atração da obra, que se constitui, expressamente, em captar o momento em que algo se rompe (o intelectual decide resistir, mesmo que para isso tenha de promover um massacre), em que a matéria não resiste mais às provações, o instante a partir do qual será inevitável o trato com todas as consequências advindas da atitude tomada e do qual as ruínas precisarão ser arrastadas para algum outro lugar (o personagem de Dustin Hoffman dirige, após o banho de sangue, pela estrada, sem saber sequer o rumo do próprio lar).

As duas obras que Peckinpah realiza em 1972 – Dez Segundos de Perigo e Os Implacáveis, ambas protagonizadas por Steve McQueen – representam pontos de clivagem nessa estrutura de internalização (dos conflitos, das fraturas, da incompletude) por parte dos protagonistas. Se antes havia sempre a figura do outro, que embasava a tortuosa (e num certo nível autodestrutiva, também) vingança, aqui McQueen encarna a internalização total. O caubói que retorna à sua cidade natal, em Dez Segundos de Perigo, defronta-se, primeiramente com um touro (“eu já estou batalhando pelo meu primeiro milhão, você ainda está batalhando por oito segundos”, diz-lhe seu irmão) e depois com uma máquina que demole a antiga casa de seu pai: não são figuras as quais encarnarão, propriamente, um duplo, muito pelo contrário, são muito difusas, impõem outra espécie de questionamento ao protagonista.

Ao velho herói cabe apenas manter-se vivo num antigo – e agora muito pouco prestigiado – espetáculo; seu objetivo é muito mais essencialista, de uma sobrevivência quase metafísica (os oito segundos; chegar à próxima cidade, que abrigará a etapa seguinte do rodeio; oferecer uma passagem de avião ao pai; realizar uma ligeira e arriscada conquista amorosa, mesmo que ela acarrete uma briga generalizada). Há algum sentido nisso tudo, mas ele está completamente resguardado dentro da inflexibilidade de Steve McQueen, e é apenas isso que interessa a Peckinpah filmar.

Em Os Implacáveis poderia cogitar-se tanto o criminoso que liberta McQueen da cadeia, arquiteta o assalto e o trai, quanto o incansável perseguidor encarnado por Al Lettieri, como possíveis antagonistas/duplos. Nesse filme de ação (um dos raros sucessos comerciais da filmografia do diretor), do tipo assalto a banco (o qual, na verdade, se resolve muito rapidamente na trama), o que interessa a Peckinpah não é confrontar seu protagonista com essas duas figuras (o líder da quadrilha é eliminado no primeiro ato e McQueen passa quase que todo o filme sem saber que Al Lettieri sobreviveu e que está em seu encalço), mas sim filmar a sobrevivência de um casal (no sentido físico, uma vez que estão sendo anunciados como procurados em rede nacional, mas também na tentativa de manter a erodida relação) que rompe com o mundo.

Seu gesto só tem paralelo, quase que na mesma época, ao do Godard de O demônio das onze horas [1965], com uma diferença crucial. Sete anos antes, o francês trabalhava a extrema dilatação das bordas do cinemascope (movimento que se estendia também aos tempos dos planos, prolongados através das varreduras panorâmicas das paisagens), procurando englobar – e nesse movimento, sugerir que os limites impostos pelas bordas eram insuficientes – todas as informações capazes de darem conta daquele mundo fraturado, anestesiado, do qual o casal se punha em fuga (o campo de batalha do qual falava Fuller). O cinemascope de Peckinpah é, em Os Implacáveis, a internalização total, a delimitação pura. Passa-se da concentração na face do protagonista em Dez Segundos de Perigo, para a síntese pictórica na composição do quadro: cada sequência do casal (em particular aquelas em que a continuidade em conjunto do caminho é posta em questão diretamente) é filmada de forma a se atingir um plano que é a eminência da desintegração (ao contrário de Godard, não parece caber mais nada, então, no cinemascope peckinpahniano).

É famoso o tiro final de Pat Garrett (James Coburn) estilhaçando o espelho, no qual vê refletida sua imagem, após o assassinato de Billy The Kid. O “velho” que resolveu sobreviver à mudança de ordem e que, para isso, prestou-se ao papel de aniquilador das ruínas que compõem sua própria essência, não suportou ver internalizado e concentrado, no anteparo especular, ele mesmo como o catalisador dessa cisão. O único caminho é fragmentar ainda mais, arrebentar essa internalização cristalizada em tal imagem. O exemplo é pontual, o mais conhecido, mas há toda uma genealogia da presença da imagem especular na obra de Peckinpah. Elemento agônico, ela sempre surge como materialização privilegiada das sucessivas internalizações, acúmulos, sofridos por seus protagonistas, do qual falávamos. Após um réquiem em Tragam-me a Cabeça de Alfredo García [1974] (filme muito mais transtemporal, do que propriamente atemporal, como geralmente se afirma, uma vez que pretende muito mais estabelecer uma ligação/continuidade entre épocas distintas, do que gerar um lugar indefinido), no qual a imagem refletida no espelho pontua os momentos de inflexão e intensificação do martírio do protagonista, passa-se do especular à imagem televisiva, nos últimos trabalhos do diretor. Das ruínas da civilização americana – arrastadas, principalmente, ao longo de seus westerns – passa-se, tanto em Comboio [1978], mas principalmente em O Casal Osterman [1983], à pulverização total empreendida pela imagem televisiva: nada mais é possível ser fixado nesse novo tipo de espetáculo social.

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