Ano VII

Campo Grande

domingo ago 14, 2016

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Campo Grande (2016), de Sandra Kogut

Campo Grande começa nos jogando no centro ação: como os personagens do condomínio, ignoramos de onde aquelas crianças vieram, sabemos apenas que elas estão ali, mudas, irredutíveis, brotadas do nada, deliberadamente reforçando o aspecto surreal da situação (a empregada comenta que “em outro prédio também deixaram duas crianças”, como se a prática de abandonar rebentos em prédios de classe média alta, numa espécie de vingança de classe via redistribuição de responsabilidades, estivesse se tornando comum — num futuro distópico não-tão-distante-assim?).

Esse mergulho abrupto no universo do filme, além de uma estratégia de roteiro baseada no flerte com o nonsense, é sustentado ainda por um conceito de direção: as primeiras cenas se colam sistematicamente ao ponto de vista das crianças. A câmera está sempre à altura delas, enquanto os adultos aparecem muitas vezes cortados pela cintura ou em enquadramentos enviesados, sempre distantes (sobre este ponto de vista infantil, lembrar ainda da cena “lúdica” dos dois pequenos brincando com as roupas no varal). Ora, na segunda metade do filme esse ponto de vista será invertido, precisamente no momento em que Carla Ribas pega o carro e decide levar o menino, Ygor, de volta para casa, em Campo Grande, se deparando com o “horror” do Rio de Janeiro profundo: a Av. Brasil, e a partir daí espaços semi-urbanizados onde nos deparamos com carroças, vira-latas, porcos, pessoas.

Ao se fiar ao ponto de vista dos personagens, Campo Grande imprime um olhar táctil sobre a cidade: captação do zum-zum-zum da cidade, britadeiras, chuva, a edição de som pesada que reforça a materialidade dos ambientes. Mas essa tactilidade, embora se imprima com uma força, criando um olhar impressionista sobre o espaço urbano, não deixa de constituir finalmente uma bolha, que compreende o ponto de vista de cada um dos personagens. Essa bolha até é permeável à cidade, que se faz sentir indiretamente, mas nosso olhar permanece sempre ancorado nela, muito próximo dos personagens. Pois afinal é disto que trata Campo Grande: um filme sobre a incomunicabilidade entre dois espaços, dois territórios, duas classes — Ipanema e a família de classe média alta de um lado, Campo Grande e as crianças sem família do outro.

Sandra Kogut é fiel a seu dispositivo até a cegueira: é como se, fascinado por esse olhar táctil, impressionista e hiper-detalhista sobre a cidade, o filme se tornasse incapaz de ver, de romper a bolha conceitual que ele próprio constrói — o grande problema do filme talvez seja dar muita atenção ao micro (à atuação de cada figurante: o camelô, a garçonete do bar) e negligenciar o macro: o ponto de vista da cineasta sobre a cidade e os problemas expostos. Uma questão social é levantada, mas a resposta (dramática) do filme é se refugiar no melodrama interior de cada bolha: afundar-se no luto, neste terreno autoindulgente onde “ninguém é culpado”. As duas bolhas se encostam sem nunca se chocarem ou se interpenetrarem de fato: cada núcleo dramático tem seu drama à parte, e ao final do filme cada um seguirá seu caminho, tão separados quanto antes. Fim do filme.

***

Faz hoje mais de quinze anos desde que Fernanda Montenegro tomava o caminho para o Brasil profundo em Central do Brasil, também sob o pretexto de levar um menino para casa — em Campo Grande, apenas aguardamos o momento em que Carla Ribas irá desmaiar no camelódromo, como na cena da procissão de Central. Dezessete anos separam os filmes. O que se passou nesse tempo? O cinema brasileiro cresceu, se modernizou, conectou-se às modas do cinema internacional. No filme de Kogut, por exemplo, sente-se qualquer coisa dos filmes de Lucrecia Martel, na construção da paisagem sonora e no forte uso do fora de campo (A Mulher sem Cabeça também se passava inteiramente dentro de uma bolha conceitual). O fato é que, hoje, o cineasta brasileiro sabe operar com conceitos — mas o conceito pode muito bem funcionar como um escudo para aqueles que não têm nada a dizer.

Campo Grande até encontra alguma espessura dramática em certos momentos dos atores (todos muito bem, sem exceção). O que nos incomoda é o olhar global: não menos alienado do que o dos próprios personagens. Se a visão de Brasil do filme de Walter Salles parece hoje bastante ingênua, o filme de Kogut sem dúvida é mais astuto: mas essa astúcia conceitual, no fundo, parece apenas servir de máscara para sua própria impotência.

Calac Nogueira

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